GUSTAVO MAGALHÃES_2023
Anastácia e a máscara: sete variações
Rainha ou princesa escravizada: a negra santa imaginada
Henrique Marques Samyn | Edição 197, Fevereiro 2023
I. DE ANASTÁCIA: A SANTA
Afirma a tradição que era rainha
ou que era uma princesa escravizada
(aquela que este povo em ladainhas
evoca): a negra santa imaginada
que as brancas em beleza superava
assim como as sinhás, pela nobreza;
a que nenhum castigo ou chibatada
jamais assujeitou; a que estas rezas
um dia atenderá – ao menos isso
é o que esta gente espera, a cada dia
(pois dizem que a fé do povo oprimido
todo poder supera). Se heresia
a Igreja o considera, o povo canta:
“Será sempre Anastácia a nossa santa.”
II. DA MÁSCARA: O SENTIDO
O que não pode ser enunciado:
esta ânsia genocida que se oculta
em cada gesto; o sempre calculado
motivo que em ação se configura
no exato e cauteloso movimento
que nunca se revela em sua essência
(pois tudo o que se omite na aparência
é o seu sentido atroz e violento);
o que se vê: a máscara que sela
a boca, para que não seja dito
o que nós bem sabemos – que é preciso
dizer – que a razão branca oculta e nega.
A máscara: o silêncio imposto ao nome
da dor que a cada dia nos consome.
III. DE ANASTÁCIA: A IGREJA
Na vala foi erguida outrora a igreja
por negras mãos unidas na irmandade:
erguida pelo acordo de vontades,
e assim se fez a singular beleza –
a talha, as folhas de ouro, o cortinado
agora só persistem na memória:
porque se foi no fogo tudo embora
naquele dia vinte e seis de março.
Porém, restou a imagem entre as cinzas:
a efígie de Anastácia, a escravizada
que jaz sob este solo – ainda intacta,
como compete às santas. Eis reerguida
a igreja: a Anastácia; a Nossa Senhora;
e a ti, são Benedito, toda a glória.
IV. DA MÁSCARA: OS PROPÓSITOS
O primeiro propósito da máscara
(segundo diz o branco, sempre cínico)
escapa ao ordinário, porque tácito,
assim como ao geral, porque específico:
propósito moral: tolher o vício
que (diz o branco) nos escravizados
é quase inevitável, porque típico
(do negro é próprio o ser degenerado);
propósito segundo: o suicídio
conter, não permitindo o comer terra
qual fazem os monjolos. Que orifícios
existam – mas seja a medida certa.
Da máscara são vários os propósitos;
forjaram-na com ferro, estanho e ódio.
V. DE ANASTÁCIA: O CORPO
Eis que aqui está o corpo de Anastácia:
o corpo que não podes ver, no entanto;
o corpo: em volta dele, uma mortalha
aos olhos invisível. Corpo santo,
embora nunca visto e nem tocado;
corpo cuja beleza causa espanto
(por jamais visto, nunca devassado
pelas perversas mãos dos homens brancos).
Aqui, sob esta igreja sepultado,
o corpo de Anastácia enfim repousa:
aqui, neste terreno tão sagrado
(contudo, também sob igrejas outras).
Que o corpo de Anastácia sempre esteja
onde houver negra fé que nele creia.
VI. DA MÁSCARA: O FIM
A máscara que a negra voz não cala,
porque uma só não há: diversas vozes
o povo negro diz; (vozes) tão fortes
que o rígido metal sucumbe e esgarça
quando (essas negras vozes) o perpassam,
rasgando-o como folha de papel;
como se o ferro fosse um fino véu
ao fim, desfeito em ínfimos pedaços.
Que sejam nossas vozes sempre muitas
e alegres como um canto (não lamento);
que o medo não mais faça o seu silêncio;
que não exista mais máscara alguma.
Que as negras vozes nunca nada cale:
ressoem sempre o som da liberdade.
VII. DE ANASTÁCIA: A FÉ
Em mim habita – e em ti – nos nossos corpos
que negros são: se faz em nós morada,
assim nos honre a carne feita casa
da negra santa – outrora escravizada,
a quem nós ofertamos este pós-
tumo louvor, para que ao nosso lado
perene, permaneça: asilo e amparo
(se está conosco, nunca estamos sós) –
santa Anastácia, vela pelo povo
que chama por teu nome, noite e dia:
a negra gente ampara e auxilia:
oferta a tua luz e o teu socorro –
para isso outrora te fizeram santa:
para que sejas, na dor, a esperança.