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    Montagem de Thallys Braga com imagens reproduzidas da internet

questões políticas

O sistema do mito

Imagens tiveram papel fundamental na produção da multidão bolsonarista

Miguel Antunes Ramos | 15 fev 2023_09h36
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Subindo a rampa do Congresso Nacional em meio à multidão de iguais, vestindo uma camiseta da Seleção e um chapeuzinho com a bandeira do Brasil, um homem grita, desesperadamente: “Comunismo não.” Sua atenção se divide entre o grito, que vem com um gesto militaresco feito com a mão direita, e o celular, com o qual registra a si próprio, usando a mesma mão direita. 

O vídeo é uma das mais recentes imagens dentre as milhares que há alguns anos parecem ter sequestrado a atenção, a psique e o olhar de todo um país. Como um feitiço, ou uma armadilha, enfrentamos a produção deliberada de um estado de afasia coletiva, que imobilizava um país que afundava a olhos vistos. Talvez esteja aí um sentido possível da palavra “totalitário”, pois, apesar de metade do Brasil não apoiar e nem ter votado em Jair Bolsonaro, a sensação desde sua eleição em 2018 era de que ele exercia um domínio total dos espaços de comunicação – por toda parte e durante anos, sempre e apenas o nome dele. Penso que essa produção imagética e discursiva é parte relevante de seu poder político. É preciso, portanto, compreendê-la. Este texto é uma contribuição nesse sentido.

Pensemos, por exemplo, no slogan utilizado na campanha de 2018: “É melhor Jair se acostumando.” O slogan coloca a vitória como inevitável. No discurso, Bolsonaro já havia ganhado. Há aqui algo central em seu procedimento: eles instauram na linguagem a realidade que querem produzir. Depois, restaria ao real apenas copiar a imagem – se acostumar a ela. Essa relação particular com a linguagem é sagaz, pois, afinal, imagem produz realidade. Foi na imagem que eles primeiro tomaram o poder. Repetidas vezes, como em um ensaio – a encenação de uma coroação.

A partir de janeiro de 2018, as redes sociais do então candidato começaram a ser tomadas por vídeos muito parecidos, nos quais Bolsonaro aparecia chegando em aeroportos e sendo recepcionado por uma pequena multidão que o carregava nos ombros e gritava: “Mito!” Em alguns, o candidato usava uma réplica da faixa presidencial. A escolha da locação é inteligente: dado o espaço restrito dos saguões dos aeroportos, um número não tão grande de pessoas parecia uma multidão pronta a tomar o país. Nas imagens deste vídeo, por exemplo, postado em 28 de março de 2018, que registra a chegada do candidato a Curitiba, podemos ver a multidão do lado de fora do aeroporto: não é tanta gente, mas nas imagens do espaço interno parece uma aglomeração imensa, que grita com ênfase.

Crédito: Reprodução de internet

 

A profusão de vídeos, testada inicialmente na campanha de 2018, é em si uma novidade política. Neles, a autoria das imagens não é clara: não temos como saber se o autor é alguém contratado pela campanha ou apenas um apoiador – talvez ambos. Havia uma rede de produção e consumo de imagens que se retroalimentava, já que vídeos feitos por apoiadores acabavam compartilhados nas redes do candidato. 

As imagens eram sempre feitas por celulares – e assistidas, depois, nesses aparelhos. Mais do que a busca por um quadro excepcional, o que havia era a construção de um fluxo – um fluxo de imagens semelhantes. Como em um transe. A multidão exaltada não era apenas produzida pelos vídeos, mas também os produzia. Eles não serviam apenas de apoio ao candidato, mas produziam seu movimento. E isso parecia conferir exaltação à turba.

Nas imagens deste outro vídeo, publicado em 11 de setembro de 2018, Bolsonaro é carregado por uma multidão de apoiadores. Após alguns instantes, ele desce dos ombros dos seguidores e desaparece no meio deles, como um igual. Agora, na ausência do líder, a multidão vê apenas a si mesma, e exulta.

Crédito: Reprodução de internet

 

Bolsonaro foi o primeiro candidato presidencial que trouxe à política a estética do influencer, com uma imagética nova, supostamente amadora e criando uma sensação de proximidade com o público. Neste vídeo, de 28 de julho de 2018, vemos o então candidato conversando com a câmera, enquanto é atendido por um cabeleireiro. 

Crédito: Reprodução de internet

 

A imagem é eficiente em fazer com que um deputado federal, que exerce o cargo há quase trinta anos, pareça um cidadão comum: um homem simples, que aparenta sinceridade, cortando o cabelo num barbeiro de bairro, que de repente invade meu celular e sorri pra mim, em close. É significativa, nesse sentido, a duração dos vídeos. Parte deles é postada na íntegra, com quase uma hora de duração e sem edição, como se Bolsonaro exibisse sua “inteireza”, sem cortes.

Em 5 de março de 2018, ele publicou o vídeo de uma viagem ao Japão, durante uma missão oficial pela Câmara dos Deputados. Registrado por seu filho Eduardo com um celular, o material mostra um quarto pequeno e, dividindo uma cama de casal, Bolsonaro e seu filho Carlos. De forma simpática, ele olha para a câmera e diz: “Quarto aqui de casal, mas eu tô dormindo com o moleque aqui… Voltou a dormir no quarto do papi, depois dos 30 anos de idade…”

Crédito: Reprodução de internet

 

Há aqui a bem-sucedida construção da imagem de um “homem comum”, que dorme em um quarto modesto, sem luxos. Cria-se, também, uma intimidade estranha do público com ele e seu filho, registrados em um momento privado, prestes a dormir – Carlos, inclusive, já está sem camisa.

Por fim, em um vídeo caseiro publicado em 11 de janeiro de 2018, vemos Bolsonaro, com uma camiseta de futebol e registrado em um ângulo torto, afirmar: “O que tá em jogo é que sou uma pessoa totalmente de fora do establishment. Eu sou o diferente! Aquele intruso no poder.” Forma é conteúdo, e suas imagens foram muito eficientes na transformação de um deputado do baixo clero, herdeiro dos porões da ditadura, em um outsider da política.

Crédito: Reprodução de internet

 

Mas essa proximidade estranha com o público foi levada mais a fundo no evento-chave da campanha de 2018: a facada sofrida em Juiz de Fora. No dia 16 de setembro daquele ano, de dentro do hospital, Bolsonaro publicou um vídeo de vinte minutos, sem cortes, em que aparece fragilizado, com uma sonda saindo pelo nariz. Bolsonaro, o machão, o viril, constrói aqui uma imagética improvável de fragilidade. De vítima. Uma virilidade sob ameaça, que precisa ser salva, e que para isso precisa de ajuda – da sua ajuda.

Crédito: Reprodução de internet

 

No vídeo, olhando para a câmera, ele diz: “O que está em jogo não é o meu futuro, mas o dos duzentos e poucos milhões de brasileiros. Pra onde está partindo o Brasil? Eu dou graças a Deus por ter chegado onde cheguei.” Uma fragilidade que esconde sua virulência. Como pode ser ele o violento, se é tão frágil? Se quase foi assassinado? Se é, afinal, a vítima? No vídeo, Bolsonaro chora.

A dessacralização do corpo é uma novidade. Não me ocorre nenhum líder global, de nenhum país, que tenha registrado a si mesmo sob o signo da fragilidade. Donald Trump, por exemplo, quando teve Covid durante as eleições de 2020 e precisou ser levado a um hospital com falta de ar, não registrou o momento – não convinha à sua estética de macho alfa. Bolsonaro, ao contrário, parece remeter aqui não a uma tradição imagética de líderes políticos, mas ao próprio Messias a que alude em seu nome do meio. Na imagem mítica do homem comum, Bolsonaro inclui suas fragilidades como potência. Um político que é antipolítico, um deputado que é antissistema, um mito que é frágil.

Crédito: Reprodução de internet

 

A força das imagens de Bolsonaro vem, também, de uma relação particular com nossa história. No Palácio do Planalto está a Galeria dos Presidentes. Nela, é possível observar os retratos de todos os presidentes da história do Brasil. São 38 retratos, afixados lado a lado. Nas figuras variadas, dos mais diversos períodos, a imagem do poder é semelhante: o enquadramento, a iluminação, o tamanho. Embora os governos sejam diferentes, algo na imagem oficial se mantém igual.

Crédito: Miguel Antunes Ramos

 

Aqui, não vemos o autorretratar contínuo da base bolsonarista, mas a força da encarnação dos retratos oficiais. O mais “encarnado” deles, sem dúvida, é o de Getúlio Vargas, produzido em 1934:

Crédito: Miguel Antunes Ramos

 

Getúlio, o presidente que mais tempo ficou no poder, transformou sua imagem em assunto de Estado, fazendo do retrato oficial uma encarnação de sua figura. Quando o presidente não pudesse estar, que sua imagem estivesse, por delegação. Na celebração do 1º de Maio de 1942, no estádio São Januário, no Rio de Janeiro, milhares de pessoas celebraram Vargas por meio de seu retrato, como se aquela imagem fosse a corporificação do líder. 

A força do retrato era tanta que o jingle de sua candidatura, em 1950, dizia: “Bota o retrato do velho outra vez/bota no mesmo lugar/o sorriso do velhinho/faz a gente trabalhar.” Era o retrato que estava sendo eleito. Quando Getúlio se suicidou, em 1954, seus apoiadores, chorando, brandiam o retrato encarnado do presidente, como se pudessem reter com a foto algo de sua presença.

Crédito: CPDOC FGV

 

Já com Bolsonaro, seus retratos são tudo, menos encarnados. Ele não tem foto, mas fotograma. Alguns vídeos em sua página no YouTube mostram apoiadores, em locais diversos do país, que publicaram nas próprias redes vídeos elogiosos ao então presidente. O presidente antissistema possui na verdade um sistema produtor de imagens. Uma máquina poderosa que é também um contato novo com a base, uma comunicação de duas vias entre apoiadores e líder. Não é mais o broadcast de via única de Getúlio, no qual seu retrato era visto pela população. No sistema de Bolsonaro, a população é ativa: ela produz seus próprios retratos e, no meio, está a imagem do líder, sempre movente, sem fixidez nem encarnação, como mostra este vídeo publicado em sua página no YouTube, em que ele, já eleito presidente, conversa com um beneficiário do extinto auxílio emergencial.

Crédito: Reprodução de internet

 

Bolsonaro: a originalidade insuportável do primeiro líder popular de extrema direita do país (desde pelo menos Plínio Salgado), fundada não mais em um retrato encarnado, mas em um autorretratar contínuo, que une o líder e a base num mesmo sistema de imagens. 

Crédito: Miguel Antunes Ramos

 

Entre o retrato de João Goulart, o presidente deposto pelos militares em 1964, e o de Castelo Branco, o golpista, pouca coisa muda. A iluminação, a roupa, a posição da faixa se mantêm. Golpista e golpeado, pendurados lado a lado. Nas imagens abaixo de um cinejornal de abril de 1964, o mesmo filme narra a assinatura da lei de remessas e lucros, por Jango, e minutos depois, a posse de Castelo Branco. Como se a imensa ruptura de um golpe militar não tivesse produzido também uma ruptura na produção imagética.

Crédito: Reprodução de internet

 

A ditadura militar se esmerava em produzir imagens de continuidade, buscando dar ares de legalidade ao arbítrio de um golpe. Mas algo precisa ser expulso do visível para que a imagem de continuidade possa existir. A partir de 1968, a ditadura produziu diversas propagandas em tom ufanista. Começou naquele ano uma dupla produção imagética, uma visível, outra recalcada. Ao mesmo tempo em que se erguia o edifício da propaganda oficial, cada vez mais ufanista, era cavado o fosso que levaria aos porões secretos dos centros de tortura pelo país. Dirigida e organizada pelo núcleo do governo militar, a tortura se torna assim uma imagem recalcada. Os militares nunca admitiram a tortura que produziram. Sempre esconderam suas imagens, e se recusaram a abrir os próprios arquivos. É desse recalque que se alimenta a figura de um capitão que explodiria o silêncio militar ao manifestar, em pleno Congresso Nacional, a existência inequívoca da tortura, agora em chave de exaltação, no momento que dedicou seu voto no impeachment de Dilma Rousseff ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Crédito: Reprodução de internet

 

O último dos presidentes militares, João Figueiredo, deixou o poder pedindo para ser esquecido. A imagem abaixo é seu retrato oficial. Podemos ver aqui, lado a lado, Figueiredo registrado à maneira militar, na época em que era comandante do regimento Dragões da Independência, e em sua foto oficial, como presidente.

Créditos: Miguel Antunes Ramos/Acervo do governo federal

 

A verdade militarista do ex-chefe do SNI é escondida em um retrato civil, sorridente, como se fosse um político da oposição. Era assim que os militares pretendiam comandar a transição, em uma abertura “lenta, gradual e segura”. Os óculos que Figueiredo escondeu materializam o fora de campo do retrato. Trinta e três anos depois, na campanha presidencial de 2018, Bolsonaro vestiria os “óculos da lacração”. Em uma série de vídeos, falas “polêmicas” do então candidato são entrecortadas por imagens com os óculos da lacração e a música Turn Down for What, indicando que o candidato teria “lacrado” na resposta.

Crédito: Reprodução de internet

 

A imagem foi tão difundida que o candidato duplicaria a linguagem do meme, ao vestir no “mundo real” de um aeroporto uma réplica dos óculos da lacração:

Crédito: Reprodução de internet

 

Herdeiro da memória dos porões da ditadura, Bolsonaro convoca a imagem dura dos óculos militares de Figueiredo para em seguida transformá-los em meme. Aquilo que foi recalcado não apenas retorna, mas o faz em roupagem engraçada, como piada, como gozo, como pulsão sorridente de morte.

 

O declínio da ditadura militar foi também o momento em que novas imagens de multidão entraram em cena – os comícios de operários, que organizaram grandes greves a partir do fim dos anos 1970. E, com a multidão, apareceu a figura de um novo líder popular: Lula. Desde seu surgimento na esfera pública, Lula é registrado discursando a uma multidão de apoiadores, como nas fotos abaixo, durante as greves do ABC de 1979:

Créditos: Juca Martins; Partido dos Trabalhadores

 

Nessas imagens, temos a construção do líder, acima da multidão. Ele é aquele que representa os trabalhadores, aquele a quem a multidão delega o poder. A câmera enquadra Lula sempre no centro do quadro, em posição de destaque.

Dez anos depois, na primeira eleição direta para presidente desde 1960, Lula chega ao segundo turno. Em um país conservador, recém-saído de uma ditadura, um líder operário fala para e em nome de uma massa de trabalhadores. A imagem a seguir encena não uma tomada de poder, mas uma delegação: alguém que poderia assumir o governo em nome da multidão, acima dela, representando-a.

Foto: José Paulo Lacerda/Estadão

 

Treze anos depois, Lula finalmente subiria a rampa. A imagem a seguir talvez seja o ápice da Nova República. O líder popular que assume o poder. A seu lado, um grande empresário, escolhido para a vice-presidência. Ao redor dos dois, a moldura institucional que os Dragões da Independência representam e concretizam, pacificada no dia da posse. E ao fundo, ao longe, a massa. A multidão de apoiadores, presente na posse, mas pequena na imagem. A multidão tornada visível pela eleição do líder, mas que não tensiona a moldura institucional, que é afinal o centro do quadro.

Crédito: Wikimedia Commons

 

Lula foi o presidente da Nova República que levou mais a fundo a criação de uma imagética do poder, convidando Ricardo Stuckert para ser seu fotógrafo oficial. Ao longo de duas décadas, o político e o fotógrafo desenvolveram uma relação profícua; até hoje, todas as imagens oficiais de Lula têm a assinatura de Stuckert. Na campanha de 2018, o fotógrafo produziu novas fotos do político e da multidão de apoiadores, como esta:

Crédito: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

 

A imagem impressiona por seu enquadramento elaborado, o uso da lente grande angular, sempre perto de Lula, de forma que o povo pareça abraçar o personagem. Mas a figura do presidente, de costas para a câmera, se configura quase como uma estátua – o preto e branco, a grande angular e a alta velocidade do obturador, que dá muita nitidez à imagem, ressaltam o efeito. De forma ambivalente, essa imagem parece sugerir a ausência do líder, que, transformado em estátua, se situa mais em um passado glorioso do que no presente dos embates políticos – como se estivéssemos diante de uma memória. Em chave reversa, talvez se possa dizer que, aqui, o verdadeiro mito constituído pelas imagens era o de Lula.

A foto a seguir foi tirada por Stuckert no dia da prisão do presidente.  Ela segue a linha que o fotógrafo desenvolveu ao longo dos anos: a lente grande angular, próxima do personagem, que é envolto pela multidão, o preto e branco em alto contraste e, principalmente, a escolha por um único clique – divulgada em todos os canais oficiais, a foto condensaria a imagem de um líder popular, amado pelo povo, que enfrenta com um sorriso um destino injusto. Comparemos então as imagens que à mesma época pipocavam no YouTube do então candidato Bolsonaro, como esta, extraída de um vídeo que registra a chegada do candidato a Fortaleza:

Créditos: Ricardo Stuckert; Reprodução de internet

 

As duas imagens se ecoam. São, também, contemporâneas – a primeira, de abril; a outra, de junho de 2018. Mas enquanto a imagem de Lula é estática, bem composta e escolhida a dedo, a de Bolsonaro é dinâmica, faz parte de um vídeo entre outros, retirada de uma profusão de imagens sem centro que se confundem e sobrepõem. 

Na primeira, vemos Lula de perto, em foco, no centro do quadro. Os apoiadores mais próximos aparecem individualizados, alguns possuem uma expressão de dor e emoção pela iminente prisão daquele que os representa, daquele ao qual delegam o poder e apoio. A multidão é estática. O centro da imagem é ocupado pelo líder, no exato instante em que ele sai de cena. 

Na segunda, ao contrário, quase não vemos Bolsonaro. Ele está longe, é uma pequena aparição, quase irrelevante, na imagem. O que vemos é a turba, que está em movimento e, exaltada, se unifica no mesmo grito. Essa multidão não é representada pela imagem, mas produzida por ela. Não são apoiadores estanques, mas produtores de seu movimento – empunham os celulares que produzem o sistema imagético que levou Bolsonaro ao poder. E, no lugar do líder, é possível notar, surpreendentemente, um vazio.

Crédito: Reprodução de internet

 

Em meados de 2020, Bolsonaro deu uma entrevista em seu cercadinho e postou na íntegra em seu YouTube. À vontade no “ao vivo” da entrevista, ironizando os repórteres e sendo aplaudido por sua claque de apoiadores, ele oferece novamente a imagem de si próprio como apenas “mais um” de seu movimento. À frente do ex-presidente estão seus apoiadores, cidadãos comuns. Atrás, os seguranças militares, que vestem óculos à la Figueiredo. E, entre os dois, o então presidente. Meio militar, meio civil, Bolsonaro e seu mito. Mas, entre sua essência militar e sua aparência civil homem-comum, sua posição, a de presidente, está, justamente, vazia. E talvez seja essa, enfim, sua maior originalidade. O que importa a ele é esse sistema, essa base de apoio, que se produz e mantém a todo instante através da circulação de imagens. O importante é manter essa base cativa e ativa, hipnotizada no circuito das imagens. O presente se torna um espaço vazio, um vazio no qual os grupos que sempre detiveram o poder avançam, agora sem nenhum contrapeso. Militares, ruralistas, empresários, políticos do Centrão – aqueles que sempre estiveram perto do poder agora o detêm integralmente – avançam sem freios.

Quando, no início de 2020, em um dia de más notícias para o governo, Bolsonaro chamou um comediante para, vestindo a faixa presidencial, ser seu duplo, algo de profundo se revelou. Neste vídeo, publicado em 4 de março de 2020, o comediante conhecido como Carioca encena ser Bolsonaro, e dá um cacho de bananas à imprensa. A seu lado, o então presidente, despido da faixa, o observa e sorri.

Crédito: Reprodução de internet

 

Há aqui uma destituição em ato. Como um bobo da corte ao lado do rei, o comediante ostenta a faixa presidencial. Bolsonaro, destituído, é novamente um cidadão comum. Há um simulacro em ação, e no meio, um vazio – o poder real em algum lugar entre o bobo com a faixa e o rei despido, ausente, o rei que é feito de imagens e que governa através delas.

Quando foi preso, Lula disse ser “uma ideia”, propondo que seus apoiadores usassem máscaras estampadas com seu rosto. Como se ele também pudesse encenar um vazio. Mas, nesse caso, era justamente a presença de seu retrato encarnado que unificava a multidão. Um ano e meio depois, ao ser colocado em liberdade, postou esta foto, tirada por Stuckert, como se vestisse a máscara de si mesmo, recuperando simbolicamente a própria presença por trás de sua imagem:

Crédito: Ricardo Stuckert

 

Com Lula, não há vazio. Ele é o líder sempre presente, acima da multidão, representando-a, aquele a quem os apoiadores delegam o poder. E isso os pacifica. 

Com Bolsonaro, é o oposto. Pequeno, quase irrelevante nas imagens de massa que constrói, sua multidão exaltada é produzida pela crença em uma ausência, em um líder que não está encarnado em nada. Um mito, afinal. Na campanha de 2018, sua fala mais violenta foi pronunciada de dentro de sua casa, transmitida em 21 de outubro por celular para uma multidão reunida na Avenida Paulista. De seu quintal, naquele domingo, Bolsonaro disse: “Perderam ontem, perderam em 2016, e vão perder na semana que vem de novo. Só que a faxina agora será muito mais ampla. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora, ou vão pra cadeia.” A multidão, reunida diante de um telão que exibia a presença ausente do líder, foi à loucura.  

Nas imagens abaixo podemos ver Getúlio e Lula também formulados como ausência.

Créditos: CPDOC FGV; Ricardo Stuckert

 

Mas, se o povo sem Getúlio chora, e sem Lula se mantém estanque, com Bolsonaro, o povo que retrata a si mesmo, diante de sua ausência, continua a cena. É como se o bolsonarismo encenasse de saída que irá permanecer, mesmo após a queda de seu líder. Talvez seja essa sua revolução: a multidão produzida por um mito, que irá sobrevive-lo. A insônia dessas imagens nunca vai parar.

 

Em 1º de janeiro de 2023, Lula enfim tomou posse. Nosso maior político e criador de imagens, Lula construiu uma cena histórica, ao subir a rampa do Palácio do Planalto ao lado daqueles que representavam os grupos sociais mais marginalizados nos quatro anos de governo Bolsonaro. Pensada cuidadosamente, planejada para fazer jus ao momento histórico, a imagem impressionou, correu mundo e ofereceu alento a um país violentado. Sua força parecia propor uma virada de página. Em troca, oferecia uma conciliação: como bem indicava a escolha do ministro da Defesa, os crimes do passado seriam relevados, e bola pra frente. Novas imagens e novos futuros haveriam de vir.

Crédito: Sergio Lima/AFP

 

Os bolsonaristas não aceitaram. Uma semana depois, produziram a própria posse, numa imagem simétrica e invertida. Trajando os uniformes da CBF com os quais desde o princípio se fardam, eles também subiram a rampa. A imagem desse ataque não tem centro – o enquadramento parece se dar pela arquitetura, já que é indiferente a quem focalizar. Na imagem não há líderes nem delegação, mas a própria multidão que, uniforme e uniformizada, sobe a rampa do Congresso para destruir tudo o que lá vê. 

Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

É como se o sistema imagético de Bolsonaro tivesse ele próprio subido a rampa – e sobrevivido, apesar da derrota eleitoral. É certo que esse sistema tem agências, algumas delas ocultas. Investigações apontam, por exemplo, a participação militar não apenas no local dos acampamentos e na composição da multidão, mas na própria comunicação de que esse sistema depende. Não seria de todo estranho se essa população encontrasse enfim um novo líder – eventualmente, um militar. No entanto, é preciso ressaltar que a força de Bolsonaro consiste na produção cuidadosa dessa multidão, a partir da posição paradoxal de líder ausente. Dificilmente outra liderança terá tamanha ascendência sobre a base. Não é todo dia que se cria um mito, nem que se encontra o Messias. Se deixado solto, esse sistema tende a se isolar e radicalizar. 

Crédito: Diego Bresani

 

Dentro do Palácio do Planalto, a invasão bolsonarista produziu esta imagem: a Galeria dos Presidentes, inteiramente vazia – todos os retratos foram depredados, até mesmo os dos ditadores militares. Sobraram apenas as molduras, penduradas na parede de mármore. Eu me pergunto o que, afinal, essa imagem fulgurante faz ver. Talvez que a institucionalidade das imagens está, pela primeira vez, em disputa? Seria possível enxergar nesse gesto o caráter destituinte, mais do que instituinte, da multidão bolsonarista? Ou essa imagem representaria o desejo de que o vazio da liderança do mito se estendesse também ao passado, como se, para trás e para frente, não houvesse mais líderes, apenas um vazio preenchido pela própria multidão unificada na bandeira nacional, na camisa da CBF e na crença no Messias? 

Instantes antes, do alto da rampa do Congresso, o patriota descrito no início desse texto se dividia entre agir e se filmar – e usava a mesma mão direita para ambos. O gesto de destruir as imagens oficiais do passado parece ser simétrico à produção de novas imagens, mas agora não mais de presidentes, mas de si mesmos. Entre o vazio das imagens oficiais e as selfies do sistema de imagens bolsonarista, está colocado o desafio à reconstrução do país.

 

Este texto foi escrito a partir dos rascunhos de um filme ainda em processo.

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