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    Estudantes durante a ocupação da reitoria da UFPI, em 31 de janeiro Foto: Francisco Clarin

anais do feminicídio

Nada será como antes

Estudantes da Universidade Federal do Piauí organizam vigílias e protestos para superar o luto pelo assassinato de uma jovem dentro do campus

Vitória Pilar | 16 fev 2023_14h59
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Quem visita o Carretel, espaço de convivência estudantil na Universidade Federal do Piauí (UFPI), em Teresina, logo avista os desenhos, pinturas, grafites e cartazes que se espalham pelas paredes. O lugar é o preferido dos alunos de comunicação social, música e pedagogia para a realização de saraus e exposições. Nesta semana, dezenove dias depois que a estudante de jornalismo Janaína Bezerra foi estuprada e morta dentro de uma sala da universidade, o Carretel virou também uma espécie de memorial. No chão, velas derretidas se misturam a flores – a maioria já com as pétalas secas –, fotos da jovem negra de 22 anos e livros de que ela gostava. Não raro, alunos e funcionários do campus param ali e fazem orações. “Estamos cuidando para que o espaço fique o máximo de tempo possível com as velas e as flores”, diz o estudante de jornalismo Pedro Lucas Costa, de 20 anos. “Não queremos que a Janaína seja esquecida.” 

A poucos metros do Carretel, no último dia 9, três psicólogos se voluntariaram para conversar sobre o crime com dez alunos da UFPI, incluindo Costa. Sentados em roda, no centro de uma sala, os jovens explicavam como se sentiam diante do feminicídio. Nove deles cursam jornalismo e uma faz medicina. Numa cartolina amarela, os estudantes redigiam poemas, desenhavam, grudavam sementes de girassol e reproduziam trechos de Maria da Vila Matilde, canção interpretada por Elza Soares que denuncia a violência contra mulheres. Com uma caligrafia delicada, uma das psicólogas escreveu o nome da aluna morta e a palavra “Iemanjá”. Nas religiões de matriz africana, a orixá que representa as águas e protege as gestantes também se chama Janaína. A luz elétrica da universidade estava oscilando naquela tarde. Quando a sala ficava escura, alguém do grupo ligava a lanterna do celular.

Costa decidiu escrever na cartolina o título do longa-metragem que serviu de mote para sua última conversa com Bezerra, poucos dias antes do assassinato. Pelos stories do Instagram, o estudante pediu recomendações de filmes a seus seguidores, e a moça indicou O Poderoso Chefão, clássico dirigido por Francis Ford Coppola. Os dois amigos combinaram, então, de se encontrar para ver o longa, mas sem definir uma data. Eles não conversavam nem se cruzavam pelo campus havia algum tempo, já que não faziam mais disciplinas juntos. Na manhã de 29 de janeiro, um sábado, Costa soube que o corpo de uma jovem aparecera na universidade. Não passou pela cabeça do rapaz que a vítima poderia ser alguém conhecido. “Eu não acreditei quando o nome da Janaína saiu no noticiário”, relembra o aluno. “Fui atrás das listas de estudantes para checar se havia outra garota com o mesmo nome matriculada no curso de jornalismo. Queria me apegar a qualquer coisa que me desse esperança.” 

Na reunião com os psicólogos, Francisco Clarin, de 22 anos, não conseguiu escrever nada na cartolina e se limitou a observar os colegas. Seus olhos marejavam. De todos na roda, ele era o amigo mais próximo de Bezerra. Por causa da pandemia, os dois passaram um bom tempo se relacionando apenas nas aulas remotas e pelas redes sociais. Só se encontraram pessoalmente quando precisaram fazer reportagens para o Calandragem, periódico do curso de jornalismo. “A gente tinha ideias muito parecidas sobre o mundo”, diz Clarin. A dupla também produziu algumas edições do jornal radiofônico Repórter Cigarra. “Foi uma correria, uma dor de cabeça elaborar os programas. Mesmo assim, guardo boas memórias daquela experiência. 

Como quase todos na UFPI, o rapaz soube do assassinato pela internet. “Desde os primeiros rumores, fiquei preocupado. Intuí que conhecia a vítima.” Agora, quando vai pegar o ônibus de volta para casa, sente medo. Quando se recorda de Bezerra, sente tristeza. Quando se dá conta de que a universidade pode ser um lugar inseguro, sente raiva. “As amigas mais chegadas da Jana [o jovem tratava a moça assim] ainda não conseguem falar do crime. Basta tocar no assunto para chorarem. Dói muito. Nada será como antes.” 

 

No dia 27 de janeiro, sexta-feira, alunos da UFPI promoveram uma calourada no campus com o intuito de arrecadar fundos para a ida deles à 13ª Bienal da UNE (União Nacional dos Estudantes). O evento aconteceria no Rio de Janeiro, entre 2 e 5 de fevereiro. No dia 28, logo pela manhã, seguranças da cidade universitária encontraram Thiago Mayson da Silva Barbosa, de 28 anos, carregando Bezerra nos braços. A jovem, toda ensanguentada, foi levada para o hospital. Quando chegou, já estava morta.

No início de fevereiro, a Polícia Civil divulgou a conclusão do inquérito sobre o caso. Segundo as investigações, durante a calourada, Barbosa conduziu a moça para uma sala do Departamento de Matemática, onde ele faz pós-graduação. Lá o aluno estuprou e tentou asfixiar Bezerra, que teve o pescoço quebrado e acabou morrendo. O rapaz não só fotografou a vítima como continuou com as agressões sexuais mesmo após a morte dela. A jovem morreu entre 4h30 e 5h do dia 28, mas só entrou no hospital por volta das 9h. 

Na segunda-feira, dia 30 de janeiro, a comunidade acadêmica tomou conhecimento do crime e se estarreceu. Professores e estudantes lideraram uma vigília que atraiu cerca de duzentas pessoas. O grupo clamava por justiça e pedia que a universidade se responsabilizasse pelo episódio. Ainda no dia 28, em nota à imprensa, a instituição declarou que colaboraria com as investigações e desaprovou eventos que pusessem alunos, professores e funcionários em risco. Também afirmou que o Diretório Central dos Estudantes (DCE) organizou a calourada sem que a administração da UFPI a autorizasse. Enquanto a vigília se desenrolava, a universidade anunciou a suspensão de qualquer atividade festiva que extrapolasse o “caráter acadêmico-científico” e prometeu elaborar um protocolo de enfrentamento à violência contra as mulheres no campus. Apesar de ter ocorrido diante de um coreto na reitoria, a vigília não contou com a presença do reitor, Gildásio Guedes Fernandes.

A postura da UFPI desagradou os alunos. O DCE explicou que não é necessário o aval da universidade para a promoção de calouradas. Enfatizou ainda que, em 2022, o diretório e os centros acadêmicos buscaram “o fomento de iniciativas que garantissem minimamente a segurança dentro do Campus Ministro Petrônio Portela”. Para Ellica Aguiar, representante do DCE, quando a UFPI atribui o crime à realização da festa, está se eximindo de suas responsabilidades. “A gente vê esse filme todo dia. A culpa é sempre da vítima, da festa, da roupa. Lutamos há meses por mais segurança no campus e, agora, recebemos em troca notas frias e acusatórias.”

Os estudantes manifestaram o incômodo com a universidade sobretudo pelas redes sociais (criaram a hashtag #justiçaporJanaína), mas também presencialmente. No dia 31 de janeiro, alunos ocuparam o salão principal da reitoria e exigiram o comparecimento de Guedes Fernandes para deliberar ações imediatas de combate à insegurança no campus. O reitor, porém, estava licenciado por questões de saúde. A reitora interina, Regilda Saraiva, recebeu os manifestantes e se comprometeu a avaliar suas demandas. Entre as 24 reivindicações dos queixosos, destacavam-se a melhoria da iluminação e do transporte na cidade universitária, a poda constante de árvores e arbustos, o treinamento de policiais para que saibam coibir a violência contra negros, mulheres e LGBTQIA+, e o pagamento de uma indenização à família da moça assassinada. 

No dia seguinte à ocupação, mais de cem estudantes protestaram diante da universidade, depois de bloquear as vias de acesso ao campus. “Quantas vão ter que morrer para esse pesadelo acabar?”, gritavam uns. “Uma mulher negra foi morta e estuprada dentro da universidade, e a UFPI ainda não fez nada a respeito”, denunciavam outros. “Janaína? Presente! Janaína? Presente!”, repetiam todos. No final da tarde, representantes da instituição convocaram uma reunião com membros dos centros acadêmicos e selaram um acordo: a administração iria atender às exigências dos alunos.



Quando pensa em Janaína Bezerra, Ana Clara Bispo, de 22 anos, se lembra de suas amigas. Ela, que também é negra e estudante de jornalismo, enxerga na jovem morta um pouco de cada mulher pobre e periférica que chega à universidade para tentar ascender socialmente. Embora conhecesse a vítima do crime apenas de vista, Bispo ajudou a organizar a vigília e a ocupação da reitoria. “Precisávamos tomar alguma providência”, diz. À noite, antes de dormir, a estudante costuma ler poemas de Bezerra, publicados no Instagram. “Os textos me fazem pensar nos sentimentos que tínhamos em comum.”

Bispo está entre os que sugeriram à universidade a criação de uma data para honrar anualmente a memória da moça assassinada e discutir a violência contra as minorias. “Nosso intuito é evitar outras histórias como essa”, esclarece. Ela pretende fazer com que o centro acadêmico do Departamento de Comunicação passe a se chamar Janaína Bezerra até o final de 2023.

Desde o início de fevereiro, Bispo tem conferido se a UFPI está realmente atendendo às reivindicações dos alunos. Por enquanto, a resposta é positiva. O restaurante universitário, que só abria no almoço, começou a funcionar no jantar, o que aumentou o movimento de pessoas dentro do campus no período noturno. A iluminação melhorou em diversos pontos da cidade universitária, e a poda das plantas se tornou mais regular. O ônibus interno – apelidado de “fantasmão” por ser branco e nunca aparecer – voltou a circular. Os alunos até criaram grupos de WhatsApp para compartilhar informações sobre o transporte. “É ótimo que a mobilização dos estudantes tenha provocado essas mudanças, mas lamentavelmente uma jovem precisou ser morta de maneira brutal para que o mínimo nos fosse garantido”, diz Bispo. 

 

Especialista em diversidade e direitos humanos pela Universidade de São Paulo, a psicóloga Kelly Silva afirma que o assassinato de Janaína Bezerra reitera um medo comum entre negros, mulheres e a população LGBTQIA+: o de que certos lugares são perigosos para determinados grupos sociais. “Eles já se sentiam vulneráveis no campus. Agora, terão de lutar para vencer o trauma desencadeado pelo feminicídio e conquistar medidas de segurança que torne a vida acadêmica menos hostil.” 

A psicóloga ressalta que, por trabalharem como estagiários nos meios de comunicação, muitos estudantes de jornalismo da UFPI precisam cobrir o feminicídio. Em consequência, revivem o episódio diariamente, o que dificulta a superação do luto. “A universidade deve encarar isso com muita sensibilidade nos próximos meses e até anos para impedir que o crime deixe marcas ainda mais profundas nos alunos.”

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