Foto: Divulgação
Tristeza no Carnaval
Com roteiro raso e personagens caricatos, filme do diretor sueco Ruben Östlund culmina numa crítica social simplória
Triângulo da Tristeza, de Ruben Östlund, chegou às telas de cinema no Brasil tendo como credencial a Palma de Ouro, recebida no 75º Festival de Cannes, em 2022. Anunciado como “farsa violentamente crítica”, o filme estreou por aqui em 16 de fevereiro, trazendo no título uma menção a tristeza que, à primeira vista, pareceu intempestiva – às vésperas do Carnaval, o enigmático triângulo da infelicidade seria capaz de despertar interesse? A dúvida fazia sentido, ainda mais levando em conta que a expressão “triângulo da tristeza” remete tanto à “área entre as sobrancelhas e o topo da ponte do nariz (…) que tende a desenvolver rugas com a idade e realça expressões faciais negativas, como tristeza ou raiva”, quanto ao Triângulo das Bermudas, formado no Oceano Atlântico pelos extremos das ilhas das Bermudas, Porto Rico e Miami, onde milhares de pessoas, centenas de navios e dezenas de aviões desapareceram, sem explicação, durante décadas – alusões incompatíveis com a euforia dos foliões que se preparavam para tomar conta das ruas.
A tristeza periódica que nos consterna não tardou, porém, a se manifestar neste verão. A tempestade no Litoral Norte de São Paulo deixou um rastro de mortes e destruição apenas dois dias depois da estreia de Triângulo da Tristeza, tragédia anunciada semelhante às ocorridas em Petrópolis, no ano passado, e desde sempre em outros locais do país.
Considerando que The Square – A Arte da Discórdia (2017), filme anterior de Östlund, também foi premiado com a Palma de Ouro, atribuída no 70º Festival de Cannes pelo júri presidido por Pedro Almodóvar, era razoável ter expectativas positivas ao ir assistir a Triângulo da Tristeza no domingo de Carnaval. Mesmo sem estar lotada, a sala acolheu bom público, em parte refratário, talvez, à folia, preferindo assistir às 2h27min anunciadas como comédia/drama – ou atraído, quem sabe, pelas Palmas de Ouro e outros filmes do diretor.
Sueco de 48 anos, Östlund escreveu o roteiro, dirigiu e montou Triângulo da Tristeza, produção com orçamento de 15,6 milhões de dólares, financiada pelo Swedish Film Institute, além de um conglomerado de empresas e emissoras de televisão europeias. Após a estreia em Cannes, o filme foi lançado na Nova Zelândia em julho do ano passado e exibido, depois, entre setembro de 2022 e janeiro de 2023, em diversos países, obtendo bilheteria mais expressivas nos Estados Unidos, França, Alemanha, Itália e Holanda. Arrecadou, até o momento, 23,9 milhões de dólares nos mercados doméstico e internacional (18,7% no primeiro, 81,3%, no segundo). Um bom resultado, em especial para a produção de um país de mercado reduzido, como a Suécia, favorecida por não ser falado em sueco. Östlund nega, porém, que a opção por diálogos em inglês “tenha resultado do objetivo de conseguir distribuição mais ampla”: “… minha mulher é alemã, então o inglês se tornou uma língua que uso mais do que antes. Acho também que estamos vivendo em um mundo muito mais internacional do que na época em que Involuntário foi lançado, em 2008. Naquele tempo, se eu tivesse um personagem inglês, teria que explicar por que ele estava lá, mas agora aceitamos que o mundo está mais misturado. Eu gosto disso. Com a língua inglesa você pode usar atores de uma variedade maior de países, você pode brincar mais com personagens diferentes… Claro, [sendo falado em inglês] você pode conseguir mais cinemas Cineplex para exibir seu filme, mas eu já tivera um público bastante amplo com Força Maior (2014) e The Square: A Arte da Discórdia. Então não foi uma decisão comercial, foi mais uma questão de querer escalar um Real Madrid com atores, de formar um elenco de craques.”
De 16 a 22 de fevereiro, sete primeiros dias de exibição no Brasil, 24.205 espectadores assistiram a Triângulo da Tristeza em 44 cinemas. A média de 550 ingressos vendidos por sala (78 por dia) tornou o filme o décimo entre as vinte maiores rendas acumuladas da semana. Resultado satisfatório, considerando que, em relação ao fim de semana anterior, todos os títulos que já estavam em exibição tiveram queda significativa de público, devida talvez ao Carnaval (dados do Filme B Box Office).
Triângulo da Tristeza é dividido em três partes identificadas com legendas. Na primeira, o casal de protagonistas – os modelos e influenciadores, Carl e Yaya (interpretados por Harris Dickinson e Charlbi Dean Kriek) – é apresentado enquanto não consegue se entender sobre o pagamento de uma conta do jantar. O diálogo dos dois poderia aparecer numa versão atualizada do Teatro do Absurdo ou, quem sabe, de um filme de Michelangelo Antonioni.
Na segunda parte, O Iate, Östlund perde a mão por completo e qualquer referência a O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel, é ofensiva ao mestre espanhol naturalizado mexicano. Enquanto o iate de luxo oscila ao sabor das ondas, os passageiros se sentem cada vez pior, e o festival de golfadas em primeiro plano se torna uma farsa grotesca de mau gosto, um tanto ridícula, mas diante da qual parte da plateia se divertiu à grande no domingo de Carnaval. Difícil saber, no entanto, de que estavam rindo.
A terceira parte, A Ilha, remete a Robinson Crusoé, mas está longe de fazer justiça a Daniel Defoe. Östlund tenta, sem sucesso, adotar um viés político. Inverte a hierarquia social, assume postura feminista e sugere, no final, uma manifestação de brutalidade para ilustrar o estágio da barbárie ao qual o pequeno grupo de sobreviventes regrediu.
À parte as aberrações gritantes, a dificuldade que acomete Triângulo da Tristeza como um todo é a falta de inteligência do roteiro. O filme é raso do começo ao fim, os personagens são caricaturas e a tentativa de crítica social, simplória. Que o filme tenha ganho a Palma de Ouro em Cannes é, no mínimo, intrigante – sinal de leviandade do júri presidido pelo ator Vincent Lindon, o que é mais comum do que se imagina, ou de decadência do cinema? A primeira alternativa parece mais provável, sem necessariamente excluir de todo a segunda.
Östlund considera estarmos “acostumados a identificar moralidade e ética através do herói” e declara não ter muito interesse por situações “em que somos bem-sucedidos como seres humanos”. Diz estar “interessado em quando falhamos” e “nas circunstâncias que podem nos fazer fracassar” – premissas de potencial dramático, mas a partir das quais Östlund, em Triângulo da Tristeza, demonstra ser capaz de nos dar apenas uma visão superficial. Haverá quem discorde desse juízo, a começar pelo crítico da revista Time Out, Phil de Semlyen, para quem o filme é “uma viagem alucinante e, de várias maneiras, é também a comédia perfeita para nosso tempo”. Se ele tiver razão, só me resta concluir que nosso tempo, em qualquer época do ano, é mesmo muito triste.
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Destaque (XXVIII):
“Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as páginas do dia 12 e do dia 22 deste mês [de 1888]. Uma novela não permitiria aquela paridade de sucessos… Riscaria os dois capítulos, ou os faria mui diversos um do outro; em todo caso diminuiria a verdade exata, que aqui me parece mais útil que na obra de imaginação.
Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida… Tudo isso repugna às composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muitas vezes iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto.” Machado de Assis, Memorial de Aires. Rio de Janeiro, Paris, H. Garnier, 1908. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, Obra Completa, Volume I, 2004. pp. 1154-1155.
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