minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Marcius Melhem, acusado de assédio sexual e moral Intervenção sobre foto de Eduardo Anizelli/Folhapress

anais da violência

A Globo e o assédio sexual

O rumoroso caso Marcius Melhem – agora acrescido de um novo caso, com outros acusados – leva a emissora a se equilibrar sobre o fio da navalha

João Batista Jr. | 19 maio 2023_18h36
A+ A- A

No dia 25 de maio, a 36ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro abrirá as portas para a audiência de instrução de uma ação pública contra o Grupo Globo. A ação, proposta pelo procurador Francisco Carlos da Silva Araújo, pretende discutir se a emissora deve ser punida por não ter evitado a prática do assédio sexual no ambiente de trabalho. A ação está calçada em dois casos. O mais notório envolve o ex-diretor do núcleo de humor da Globo, Marcius Melhem, que é acusado por uma dúzia de mulheres (de assédio sexual) e de homens (de assédio moral).

O caso de Marcius Melhem teve uma evolução tortuosa. Em março de 2020, em meio às investigações internas da emissora sobre as suspeitas de assédio, o ator foi afastado do cargo por 180 dias. No mês seguinte, a Globo contratou uma nova advogada, Carolina Junqueira Reis, para acompanhar as apurações. Em julho, o setor de compliance da emissora ouviu um dos depoimentos mais fortes: a atriz Carol Portes contou, entre outras coisas, ter sido sexualmente atacada pelo seu então chefe Marcius Melhem dentro de um flat na Barra da Tijuca e mostrou mensagens trocadas entre eles, numa das quais o ator pergunta se o “constrangimento” já teria passado. Depois disso, a atriz perdeu espaço no Tá no Ar, o programa humorístico comandado por Melhem. No mês seguinte, a Globo demitiu Marcius Melhem.

No anúncio de demissão, feito em agosto de 2020, a emissora lançou uma nota pública em que agradecia os serviços prestados pelo ator e dizia que seu afastamento era resultado de “comum acordo”. Não havia uma única menção a mau comportamento, desvios éticos ou denúncias de assédio sexual ou moral. Era o primeiro fio da navalha sobre o qual a emissora se equilibrava: o casamento era desfeito, mas ninguém jogaria lama em ninguém. Depois que a piauí relatou o caso, em reportagem publicada em dezembro de 2020 sob o título O que mais você quer, filha, para calar a boca? Melhem negou as acusações e continuou sustentando que sua demissão nada tivera a ver com denúncias de assédio.

A Globo, por sua vez, também manteve a versão do acordo e nunca falou da acusação de assédio publicamente, justificando que seus procedimentos internos são sigilosos. Para todos os efeitos, a parceria entre Melhem e a Globo se desfizera por vontade mútua e a questão do assédio era um assunto proibido, embora as denúncias contra Melhem, a essa altura, já fossem públicas. Diante da opinião pública, a Globo tinha um fato a seu favor: afinal de contas, Melhem não pertencia mais ao seu quadro de funcionários – sinal de que a emissora não fizera vista grossa. O caso, no entanto, chegou à esfera trabalhista, onde vítimas e agressores não são réus, apenas o empregador. O Ministério Público do Trabalho queria saber se a Globo agira conforme a lei, protegendo seus funcionários de assédios e oferecendo-lhes um ambiente de trabalho saudável. Surgiu então o segundo fio da navalha: como mostrar que tomou todas as providências contra um acusado de assédio e, ao mesmo tempo, mostrar que proporciona um ambiente de trabalho saudável, onde o assédio não é tolerado?

Em março de 2021, o escritório de advocacia do carioca Tenório da Veiga, contratado pela Globo para defendê-la na esfera trabalhista, mandou um documento ao Ministério Público do Trabalho descrevendo o caso. Nesse documento, a versão oficial sofreu ajustes sutis. O documento não afirma que a saída de Melhem foi fruto de “comum acordo”, nem afirma que foi demitido pela Globo. Diz que “apesar da divergência entre as informações prestadas por alguns membros da equipe, contra e a favor da conduta de Marcius Melhem”, o setor de compliance da empresa constatou “a inadequação do comportamento do artista com os seus subordinados”, mas, cumprindo seu papel de defender a emissora da acusação trabalhista, ressalva que não foi “possível comprovar de maneira irrefutável a prática deliberada de assédio”.

Em setembro de 2022, um ano e meio depois, o advogado da Globo reapresentou esse documento, com um adendo e uma supressão. Elimina a expressão da comprovação “de maneira irrefutável” e diz que não foi “possível comprovar a prática deliberada de assédio sexual, dados os contornos legais que a conduta exige para sua caracterização” Era um texto cuidadoso, bem calibrado juridicamente, no qual acrescentava que não se provara o assédio nos termos precisos da lei. No dia 17 de maio passado, a revista Veja informou que teve acesso à peça de setembro de 2022 e noticiou que a Globo disse à Justiça que não havia provado assédio sexual da parte de Melhem. Era a versão de defesa da emissora. E, nesta versão, houve apenas uma “inadequação de comportamento”. Melhem, ouvido pela Veja, tomou a peça de defesa da Globo como um atestado de inocência e comemorou: “Cada vez mais se confirma o que digo desde  o início: nunca cometi assédio sexual. A verdade segue aparecendo”.

Mas faltava um elo na versão sustentada pelo documento de março de 2021. No início daquele ano, o inquérito do caso estava apenas no início e o Ministério Público do Trabalho nem havia tomado os depoimentos das acusadoras e testemunhas, o que só começou a ser feito a partir de julho de 2021. Os depoimentos trouxeram uma variedade de acusações. E a versão de um desenlace consensual entre Melhem e a emissora, sem que nenhuma violação ética houvesse sido comprovada, ruiu definitivamente em janeiro de 2022, quando o procurador Francisco Araújo, insatisfeito com a versão oficial, pediu mais informações à Globo. Acionada pelo Ministério Público do Trabalho e pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), a emissora entregou um novo documento, de sete páginas, desta vez assinado pela advogada Carolina Junqueira Reis, diretora de Riscos e Compliance, que acompanhara as investigações do caso. O novo documento, datado de janeiro de 2022, foi enviado à Deam e mostra a emissora caminhando sobre o fio da navalha: o documento, ao qual a piauí teve acesso, mostra que a demissão de Melhem nunca foi fruto de “comum acordo”, mas a consequência punitiva dos achados na investigação – e não afirma, em nenhum momento, que o assédio não foi provado.

Atento à precisão das palavras para não deixar a Globo nem aquém, nem além do que deveria, o documento também é cuidadoso. Começa dizendo que “a Globo apenas tomou conhecimento das alegações de assédio” quando a notícia foi publicada pelo jornalista Leo Dias em dezembro de 2019. “Até a referida publicação […], nem a atriz Dani Calabresa, nem qualquer outro profissional, havia formalizado qualquer denúncia sobre suposta prática de assédio por parte do sr. Marcius Melhem, sendo certo que a Globo desconhecia a existência de qualquer tipo de conduta inadequada por parte do mesmo”. Trocando em miúdos, é uma forma de dizer ao Ministério Público do Trabalho que a emissora não deve ser punida, pois se mobilizou assim que soube das denúncias de práticas ilegais no ambiente de trabalho.

Mas o documento prossegue: “A formalização da denúncia, por meio dos canais oficiais da Globo, veio a ocorrer em janeiro de 2020, quando a Globo imediatamente deu início ao procedimento interno de apuração da veracidade do relato”. Em seguida, o documento descreve como transcorreu a investigação – com “entrevistas e tomadas de depoimentos”. E informa que, mesmo antes de concluir a apuração, a emissora decidiu afastar Melhem do cargo de chefia por 180 dias. Ao final desse período, uma vez concluída a “apuração da veracidade do relato”, a emissora demitiu Melhem, mas não por “inadequação de comportamento”, e sim por entender “que, diante da constatação de violação ao Código de Ética e Conduta do Grupo Globo pelo sr. Marcius Melhem, a manutenção do contrato de trabalho tornou-se insustentável, considerando que a postura adotada pelo mesmo não condiz com os princípios e valores da empresa”.

Em resumo, a Globo tomou conhecimento de uma denúncia de assédio sexual, abriu uma investigação, ouviu o depoimento das supostas vítimas, afastou o funcionário acusado de assédio sexual e depois decidiu demiti-lo. Não diz com todas as letras, portanto, que a demissão foi resultado de assédio sexual, mas também não diz que jamais encontrou provas de assédio – uma forma engenhosa de procurar colocar a Globo no melhor cenário jurídico possível. A piauí procurou o advogado Luiz Felipe Tenório da Veiga para falar sobre a diferença entre os dois documentos, mas ele respondeu que não poderia comentar o assunto. “Infelizmente, não posso falar sobre o caso. Por conta do segredo de justiça”. A Globo também não quis falar, argumentando que não comenta assuntos relacionados ao seu compliance.

A piauí também procurou Marcius Melhem para saber se o ator havia sido ouvido pelo Ministério Público do Trabalho e se fora convocado pela Globo para ser testemunha da emissora. Ele respondeu as duas questões e alinhou uma série de reclamações contra a piauí, queixando-se de que a revista não lhe dá a devida atenção, não comenta seus vídeos no YouTube e não reconhece os “inúmeros” erros que comete em suas reportagens. Melhem também repisou a versão de que a Globo não comprovou assédio sexual, mas nada disse a respeito do documento do compliance da emissora em que não há nenhuma afirmação nesse sentido. Segue a íntegra de sua nota:

 

“É curioso que a piauí só procure me ouvir mais de dois anos após a primeira reportagem que fez sobre o não-caso que envolve o meu nome. Justamente sobre um processo no Ministério Público do Trabalho no qual não prestei depoimento na fase de inquérito e nem fui arrolado como testemunha. Matéria publicada pela revista Veja, em 17 de maio, revela que a própria TV Globo disse na ação do MPT (onde outros nomes no setor artístico são investigados) que não se provou que eu tenha cometido assédio sexual.

Durante os últimos dois anos, a piauí nunca noticiou as provas que apresento contradizendo as afirmações mentirosas feitas pelas acusadoras e suas testemunhas. Nunca abordou os temas levantados pelos 50 vídeos publicados no meu canal no YouTube (https://www.youtube.com/@omarciusmelhem), que conta já com mais de 25 mil inscritos e quase 1.6 milhão de visualizações (dados do dia 18 de maio).

Também não voltou a público durante este período para reconhecer inúmeros trechos da sua matéria inicial que já se provaram errados através de depoimentos contraditórios e de mudanças de narrativas de acusadoras e de testemunhas. Segue em silêncio para todas essas evidências, provas e desmentidos. Mas me procura com duas perguntas soltas sobre um procedimento que tramita em segredo de Justiça e do qual sequer sou parte e nem investigado.”

 

Apesar do caso de Melhem englobar múltiplas acusações e cobrir um largo período, além da admissão da própria Globo de que o demitiu por violações éticas, é difícil avaliar o impacto que isso poderá ter no tribunal. Nesses casos, a condenação pode vir sob diversas formas: um pedido para que a empresa crie canais internos para receber denúncias (coisa que a Globo já tem), ou escale mais mulheres para trabalhar em determinados setores. A ré pode, ainda, ter que pagar uma indenização, cujo valor costuma ser revertido em favor de alguma entidade de trabalhadores que atue em questões de assédio. Neste caso, o MPT pede uma indenização de 50 milhões de reais.

Mas há outro caso no fio da navalha. Se Melhem é acusado de assediador por diversas vítimas, há um episódio, que nunca veio a público antes, em que acontece o contrário: uma vítima acusa diversos assediadores. A história, como costumam ser as histórias de assédio sexual, é uma crônica de sofrimento, constrangimento e adoecimento.

 

No segundo semestre de 2016, a engenheira e radialista paraibana Esmeralda Silva[1], que há anos sonhava em trabalhar na Globo em São Paulo, encontrou a vaga dos seus sonhos. A emissora estava procurando uma “engenheira de sistema de TV II” para cuidar da transmissão de programas jornalísticos e esportivos, além de eventos como Carnaval e Lollapalooza. Depois de uma seleção em cinco fases e entrevistas em português, espanhol e inglês, ela recebeu a notícia, dias antes do Natal, de que fora aprovada. Assumiu no dia 10 de janeiro de 2017. “Quando entrei por aquele portão, parecia que eu estava chegando no céu. Era a realização do maior sonho da minha vida”, recordou ela, durante uma das quatro rodadas de entrevistas por videochamada com a piauí.

O caminho do paraíso ao inferno foi curto. Ela integrava uma equipe de dezessete pessoas – apenas três mulheres – e, já no segundo dia, um técnico em transmissão com 23 anos de empresa a abordou. Perguntou onde ela morava. Ao responder que vivia no bairro do Ipiranga, ele disse que morava na mesma região e ofereceu uma carona no fim do expediente. No percurso, o sujeito passou a falar de assuntos íntimos e quis saber se ela era comprometida. Ao escutar a resposta negativa, perguntou: “Como uma mulher tão linda como você não tem namorado?”

No dia seguinte, ele fez o convite para tomarem um vinho. E acrescentou: “Olha, sem cobrança.” Esmeralda recusou o convite e esclareceu: “Eu não estou em busca de um namorado.” O colega começou a usar frases grosseiras – e isso virou um hábito. “Uma mulher gostosa como você, com esse bundão, não tem como ficar sozinha. Você faz um homem perder o juízo”, disse uma vez. Esmeralda, como engenheira, tinha um cargo superior ao do colega, que era técnico. Mas ele tendia a usar seu longo tempo de casa como um salvo-conduto para suas ações. “Você não sabe nada nem conhece ninguém aqui, quem vai acreditar em você?”, amedrontava ele.

A situação piorou com o tempo. Outro técnico, com 35 anos de empresa, passou a aproveitar quando estavam sozinhos no Centro de Transmissão e Recepção de Sinais para deslizar a cadeira na direção de Esmeralda para colocar a mão em suas pernas. Houve vezes em que chegou a colocar a mão dentro da saia ou do vestido, encostando os dedos nas coxas dela. “Ele me dizia assim: ‘Não adianta fazer caras e bocas porque ninguém vai te ver nem ouvir.’” O agressor falava também que se masturbava durante o banho pensando nela. “Eu pedia para ele me respeitar e parar com esse tipo de assunto, mas não adiantava nada”, recorda Esmeralda. Um terceiro assediador, também técnico e com mais de três décadas na emissora, adotou o costume de vê-la sentada e passar por ela encostando o pênis ereto na altura de seus ombros. “Quando eu me levantava, ele me prendia com os braços e dizia no meu ouvido: ‘Se você abrir a boca, ninguém aqui vai te ouvir. Estou nessa porra desde quando ela foi fundada.’”

No dia 30 de março, apenas três meses depois de sua contratação, ocorreu um problema com um link ao vivo no telejornal Bom Dia Brasil. A transmissão travou. O telefone fixo e a caixa de comunicação do Centro de Transmissão e Recepção de Sinais não pararam de chamar pedindo por uma solução urgente. Esmeralda estava sozinha na sala – algo que não deveria acontecer, dada sua pouca experiência. Aturdida com a situação, ela gravou com o celular um vídeo para mostrar que estava sozinha na sala e pedir socorro a seu supervisor. O vídeo lhe causou sérias retaliações.

Depois do episódio, que gerou uma reprimenda à equipe responsável pelo turno da manhã, o assediador número 1, um dos que deveriam estar na sala na hora crítica, começou a assediá-la moralmente. Primeiro, a chamava de X9, por ter “delatado” os colegas. Depois, vieram os xingamentos xenofóbicos. Zombava do seu sotaque e vivia falando “mainha”, “painho” e “oxente”. “Ele dizia para eu voltar para a Paraíba em um pau de arara”, conta. Nesse clima, Esmeralda começou a adoecer. Teve cefaleia, ansiedade, insônia, alteração intestinal e urinária. “Cheguei a marcar uma reunião com meu supervisor para dizer que o clima estava insustentável.” Mas nada mudou.

Esmeralda relata que um quarto colega de trabalho, esse com dezoito anos de casa, também técnico, a assediou durante uma conversa sobre a transmissão de um link ao vivo. Ele falou: “Empina a bunda, sua gostosa, porque eu estou doido para te comer de quatro.” Esmeralda disse que, na hora, seu impulso foi dar um tapa na cara do colega e, quando ameaçou, ele retrucou que iria “gamar” se isso ocorresse. Ela ficou paralisada diante da reação.

Em meados de 2017, com apenas cinco meses de trabalho, deu-se o caso mais grave, protagonizado pelo agressor número 1. Ela rememora:

Eu estava sentada de frente para uma tela, configurando um satélite que receberia um sinal de link ao vivo de Belém, para o Jornal Hoje. Então, ele girou a cadeira e deslizou na minha direção, dizendo que iria acessar um e-mail por um computador compartilhado pela equipe. Aí me disse: ‘Você é muito gostosa, olha só como eu estou’, e foi pegando no pênis por cima da calça. Ele me encurralou com a cadeira junto da parede. Quando fui me levantar, ele colocou a mão na minha parte íntima, enfiando o dedo em mim, e me disse: ‘Fica caladinha, não se mexa, ninguém vai acreditar em você.’ Então ele me mandou abrir a perna. ‘Eu estou nessa porra há muitos anos, abra a perna que você não é ninguém.’ Eu gelei, chorei, fiquei sem reação nenhuma. Fiz o que ele mandou. Naquele momento, eu queria morrer ou entrar num buraco para nunca mais passar por aquilo. Com uma das mãos, ele forçou a minha vagina; com a outra, pegou a minha mão que segurava o encosto da cadeira e colocou em cima do pênis.”

O terror acabou quando um funcionário bateu na janela da sala para entregar um cartão de memória. O assediador se levantou para pegar o dispositivo. Esmeralda saiu às pressas. Dentro do banheiro, teve uma crise de choro. “Fiquei com muito nojo de mim mesma. Lavei várias vezes as minhas mãos com o sabonete. Depois fui para o jardim. Me sentei e chorei, chorei e chorei”, diz ela, em meio às lágrimas. “Voltei à sala depois de mais de meia hora. Por sorte, havia outras pessoas por lá. Ele me olhou e não falou nada, era como se eu não estivesse ali.”

A partir desse episódio, nada mais seria como antes. Esmeralda costumava sair de casa perfumada, maquiada, bem-vestida e de salto alto. Passou a ir trabalhar de calça jeans, blusa larga e tênis. A ansiedade deu origem a um quadro de depressão e síndrome do pânico. As dores de cabeça aumentaram a ponto de consumir uma cartela de dipirona por dia. Esmeralda conta que avisou seu chefe sobre os casos de assédio moral e xenofobia, mas não teve coragem de relatar os abusos sexuais. “Cheguei a ir diversas vezes ao RH, pronta para dizer tudo, mas chegando lá eu tremia e mudava de assunto. Eu tinha medo de perder o emprego, de acharem que a culpa era minha.”

No primeiro semestre de 2018, o assediador número 1 foi desligado da Globo. Na ocasião, um supervisor e um gerente disseram a Esmeralda: “Tiramos a pedra do seu caminho.” Os casos de xenofobia e assédio moral, pelo menos esses, não eram segredo para ninguém. No dia 8 de outubro de 2018, no entanto, apesar de seus problemas de saúde, a engenheira foi demitida sem que lhe apresentassem uma razão clara. Ao passar pelo ambulatório para realizar o exame demissional, o médico que estava a par de seu quadro de depressão não permitiu o desligamento – pediu que procurasse um psiquiatra para atestar a sua condição psicológica. Esmeralda foi então informada para seguir a escala de trabalho da equipe. Ela teve uma crise de choro ao passar pelo portão e sofreu um desmaio perto de um ponto de ônibus. Foi socorrida por um guarda municipal. Embora não tenha sido demitida, ela nunca mais voltou a pisar na Globo.

 

Por orientação de um colega de trabalho, Esmeralda Silva procurou o Sindicato dos Radialistas de São Paulo. O então diretor da entidade, Arnaldo Marcolino da Silva Filho, sugeriu que procurasse ajuda psiquiátrica. No intervalo de um ano, ela tentou suicídio em duas ocasiões. Mudou-se para a casa de uma amiga médica para não ficar sozinha. Em março de 2019, com um diagnóstico de depressão e síndrome de burnout, foi para a casa da sua família na região do Cariri paraibano. “Eu precisei me recolher para cuidar da minha saúde, olhar para as feridas. Não contei o que aconteceu nem para a minha alma.” Esmeralda relutava em mover uma ação trabalhista contra a Globo ou denunciar seus agressores na delegacia. “Eu tive medo de procurar a Justiça por pensar que não iriam acreditar em mim”, diz.

Quatro anos depois dos episódios de assédio, sentindo-se menos fragilizada,  Esmeralda procurou os advogados trabalhistas Carlos Daniel Gomes Toni e Kiyomori André Galvão Mori, de São Paulo. Em julho de 2021, ajuizou uma ação contra a Globo na Comarca de Campina Grande, na Paraíba. Não protocolou em São Paulo, local dos fatos alegados, porque precisaria se submeter a diversos laudos médicos e facilitaria estar perto da casa dos pais. Havia também outro ponto. Como a ação se ancorava na xenofobia, a Justiça local talvez se sensibilizasse mais com seu pleito.

O tema “assédio sexual” não surgiu na primeira, nem na segunda reunião com os advogados. “Eu tinha muita vergonha de mencionar o assunto”, diz ela. Aos poucos, foi se estabelecendo uma relação de confiança, e os episódios emergiram. No formato final, a ação trabalhista falava de assédio moral e sexual, misoginia e xenofobia, e pedia 225 mil reais de indenização. Na primeira audiência de instrução, Esmeralda falou sobre os ataques de dois ex-colegas. Na audiência final, realizada por videoconferência com a juíza do trabalho Francisca Poliana Aristóteles Rocha de Sá, Esmeralda relatou todos os casos ocorridos com os quatro ex-colegas.

A sentença de primeira instância saiu em julho do ano passado e condenou a Globo a pagar 80 mil reais por danos morais, com entendimento de que houve misoginia, xenofobia e assédio sexual e moral. A piauí procurou a juíza Francisca de Sá, responsável pela sentença, em Campina Grande. Ela topou falar de assédio de forma genérica, mas não do caso específico, que segue em segredo de Justiça. “É comum que as vítimas não exponham todos os episódios de assédio de uma só vez, até porque algumas levam certo tempo para assimilar a gravidade dos abusos e, então, se encorajar a falar a respeito”, diz a magistrada. “Isso se deve a vários fatores, que se constituem como verdadeiras barreiras, tais como religião, estado civil e medo de exposição. Aliás, a própria exposição do caso já é uma violência.”

Os quatro assediadores não estavam em julgamento – por essa razão, nem foram ouvidos, e Esmeralda pediu que a piauí não publicasse seus nomes, embora suas identidades tenham sido reveladas à juíza do caso. Só a Globo era ré no processo. “O procurador pode, ao realizar uma pesquisa no Tribunal de Justiça, constatar a existência de inúmeras ações por assédio contra determinada empresa, considerando então um indício de que o local de trabalho está sendo negligente”, explica Guilherme Guimarães Feliciano, juiz do trabalho em São Paulo e professor de direito do trabalho na faculdade do Largo São Francisco. Assim sendo, a sentença de condenação da Globo, em Campina Grande, foi fundamentada nos laudos médicos (sobre os problemas psiquiátricos), nas trocas de mensagens de WhatsApp (com comentários machistas e grosseiros) e no depoimento de testemunhas de defesa e de acusação. O conjunto permitiu concluir que a empresa não ofereceu um ambiente de trabalho saudável.

Três meses depois, os desembargadores do Tribunal Regional do Trabalho mantiveram a sentença por unanimidade – e a indenização, recalculada com base em férias, horas extras, décimo terceiro e outros direitos, bateu em 2 milhões de reais. A Globo tentou fazer um acordo com Esmeralda, oferecendo pagar uma indenização de 500 mil reais. A engenheira não aceitou. A emissora entrou com recurso, que, neste momento, está no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília. A empresa argumentou que o episódio mais grave – o toque na vagina da vítima, classificado como estupro – não deveria ser válido no processo porque a ex-funcionária não o mencionou na fase de instrução. O TST, no entanto, negou esse argumento em fevereiro deste ano.

 

O procurador Francisco Araújo, do Ministério Público do Trabalho no Rio, tomou conhecimento do caso de Esmeralda Silva por meio de uma denúncia feita pelo Sindicato dos Radialistas de São Paulo. “Escolhemos fazer a denúncia no Rio porque o Ministério Público do Trabalho do Rio tem sido mais rigoroso com essa questão de assédio. Na verdade, denunciamos o caso de duas ex-funcionárias da Globo, não apenas uma”, conta o dirigente sindical Josué Brito dos Santos, ele próprio ex-funcionário da emissora. O procurador Araújo entrou em contato com as duas mulheres, mas apenas Esmeralda Silva aceitou prestar depoimento.

Ao longo de 2021, o procurador Araújo e a procuradora Fernanda Barbosa Diniz colheram os depoimentos de homens e mulheres que fizeram denúncia contra Marcius Melhem no Compliance da Globo. Em março de 2022, o procurador ouviu em detalhes o caso de Esmeralda. Em maio, depois de encerrar a etapa dos depoimentos, Araújo propôs a ação civil pública contra a Globo, que ganhou o número 0100.450.19.2022.5010036. A primeira audiência de instrução será neste 25 de maio.

Na esfera trabalhista, há duas opções de ação de reparação em casos de assédio sexual. A individual, como fez Esmeralda Silva na Comarca de Campina Grande. E a pública, que se materializa na forma de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público, por um sindicato ou uma associação de classe. Nesse caso, a finalidade é buscar uma reparação coletiva em defesa da sociedade. Falando em tese e não em relação ao caso específico, o procurador Cássio Luís Casagrande, professor de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense, explica: “O Ministério Público ajuíza uma ação civil pública para obter provimentos para o futuro e evitar que o assédio ocorra novamente, de forma a proteger os trabalhadores como um todo.”       Naturalmente, uma ação civil pública só é proposta nos casos em que o procurador formou entendimento de que houve a prática de assédio sexual e moral. “Caso contrário, ele mandaria arquivar o caso”, explica Casagrande.

Procurada pela piauí, a Globo voltou a afirmar que não faria comentários sobre o caso de Esmeralda porque está tramitando na Justiça. Já nas questões ligadas a Marcius Melhem, a emissora repetiu o que tem dito desde que o caso veio a público: “A Globo não comenta questões relacionadas a Compliance. Por seu Código de Ética, a empresa assume o compromisso de sigilo a todos os colaboradores, assim como o de investigar, não fazer comentários sobre as apurações e tomar as medidas cabíveis”.

Enquanto seu caso tramita nos tribunais, Esmeralda Silva, por determinação judicial, segue como funcionária da emissora, embora afastada por problemas de saúde como depressão e burnout. Dos quatro acusados de assédio, apenas um permanece trabalhando na Globo. Aparentemente, o assediador de número 1 foi demitido em razão das denúncias por assédio moral e xenofobia de que foi alvo. Esmeralda toma ansiolíticos e estabilizadores de humor e tem um quadro que os médicos chamam de depressão crônica.

____________________

[1] Esmeralda Silva é um nome fictício. Ela teme represália por parte de seus agressores. “Coloque o nome de ‘Esmeralda’, uma pedra tão linda, que de repente eu me sinto bonita depois de tudo o que aconteceu.”

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí