Ilustração: Carvall
Os jabutis que ameaçam a Mata Atlântica
Projeto em discussão no Congresso flexibiliza desmatamento no bioma que garante água, alimentos e energia para 145 milhões de pessoas
A Câmara dos Deputados e o Senado Federal estão discutindo novas versões da Medida Provisória no 1.150, de 2022 – que tratava da prorrogação do prazo para que proprietários de imóveis rurais façam a adesão aos Programas de Regularização Ambiental (PRA), como prevê o Código Florestal aprovado em 2012.
Entretanto, alguns “jabutis” – como são conhecidas as emendas que parlamentares inserem em projetos legislativos, muitas delas sem relação com o tema principal – pegaram carona nessa discussão. E esses jabutis não são inocentes: buscam flexibilizar a legislação ambiental, principalmente em relação à Lei da Mata Atlântica, visando permitir o desmatamento para implantação de linhas de transmissão de energia elétrica, gasodutos ou sistemas de abastecimento público de água sem a necessidade de estudo prévio de impacto ambiental ou de compensação de qualquer natureza. Outras dispensam zonas de amortecimento (entorno onde as atividades humanas estão sujeitas a restrições específicas) e corredores ecológicos (áreas que facilitam a dispersão de espécies e a recolonização de áreas degradadas) em unidades de conservação em áreas urbanas e consultas a conselhos de meio ambiente para a definição do uso do solo ao longo de cursos d’água.
Estamos falando de alterar a lei que protege o bioma que é lar de 72% dos brasileiros e que garante o abastecimento de água, a provisão de alimentos e a geração de energia para mais de 145 milhões de pessoas. Além disso, a Mata Atlântica abriga mais de 20 mil espécies no total, incluindo alguns milhares de animais e plantas únicos na região.
Segundo dados da PLANGEA Web – plataforma de acesso gratuito desenvolvida pelo Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS) para facilitar a tomada de decisão de empresas e governos –, 113 milhões de hectares da Mata Atlântica correspondem a áreas globalmente prioritárias para conservação da biodiversidade e mitigação das mudanças climáticas. Isto considerando apenas a meta de conservar 30% dos ecossistemas acordada na Conferência da ONU sobre Biodiversidade (COP-15) entre quase duzentos países.
Apesar de sua relevância, apenas 28% deste território original é coberto por vegetação nativa hoje em dia. Mais da metade dessa área remanescente é formada por locais onde houve recuperação da vegetação, o que explicita o potencial para ações de restauração no bioma. Ainda assim, o bioma tem sido palco de graves tragédias por eventos climáticos, como as enchentes no Litoral Norte de São Paulo e os deslizamentos de terra na região serrana do Rio de Janeiro.
Vale lembrar que 27 de maio é o Dia Nacional da Mata Atlântica. Na Década das Nações Unidas da Restauração de Ecossistemas (2021 a 2030), observamos avanços importantes referentes ao bioma, como o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, coalizão multissetorial que reúne mais de trezentas organizações com a meta de restaurar 15 milhões de hectares até 2050. A iniciativa teve um de seus trabalhos, o Pacto Trinacional da Mata Atlântica, reconhecido como um dos mais promissores e relevantes do mundo ao ser declarado pela ONU como uma das dez Iniciativas de Referência da Restauração Mundial.
Em estudo realizado para o IIS, desenvolvemos uma abordagem multicritérios para identificar as melhores áreas para restauração da Mata Atlântica, considerando a meta de recuperação de 5,17 milhões de hectares referentes ao débito total de Reserva Legal estimado para a região. Tal abordagem busca uma solução equilibrada, considerando, simultaneamente, benefícios potenciais da restauração em termos de redução do risco de extinção de espécies, aumento do sequestro de carbono, melhoria da qualidade da água, redução do custo de implementação da restauração e redução do custo de oportunidade da terra.
Nesse cenário equilibrado, a restauração em áreas prioritárias da Mata Atlântica apresenta potencial de reduzir o risco de extinção de 497 espécies que só ocorrem ali, ao mesmo tempo que sequestra 2,7 milhões de toneladas de carbono da atmosfera e melhora a qualidade dos recursos hídricos. Ao evitar locais com elevados custos de oportunidade de produção agropecuária, essa priorização de áreas também evita conflitos pelo uso da terra e gera soluções eficientes para o planejamento integrado do uso do solo.
Cada benefício pode ser potencializado, a depender do objetivo da restauração e das demandas locais, gerando alternativas que devem ser analisadas por tomadores de decisão em diferentes contextos. Isso quer dizer que é possível alcançar uma redução do risco de extinção de até 588 espécies, caso a restauração seja realizada apenas em áreas prioritárias para a biodiversidade, ou o sequestro de até 5,6 milhões de toneladas de carbono, caso a prioridade seja a mitigação das mudanças climáticas. Além disso, a qualidade da água pode ser melhorada em até duas vezes em um cenário com foco em recursos hídricos, e é possível reduzir em 62 bilhões de reais o custo da restauração no cenário de minimização de custos econômicos.
A ciência da restauração ecológica amadureceu nos últimos anos. Portanto, é essencial o uso desse crescente corpo de evidências e técnicas práticas adaptadas às condições de cada região para alcançar resultados ambiciosos. Esperamos que, em breve, os únicos jabutis presentes na Mata Atlântica sejam aqueles que habitarão seus milhares de hectares restaurados.
Rafael Loyola é diretor executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS) e membro da Academia Brasileira de Ciências com um histórico de mais de 200 publicações científicas. Possui doutorado em Ecologia (UNICAMP) e MBA Executivo em Liderança e Inovação (FGV).
Paulo Branco é diretor adjunto estratégico do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS) e tem ampla experiência na liderança de projetos em sustentabilidade empresarial, gestão estratégica, engajamento com stakeholders, cadeias de valor sustentáveis, inovação e empreendedorismo. Possui me
Bruna Pavani é pesquisadora do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), atuando com pesquisa, desenvolvimento e inovação em iniciativas que relacionam o ser humano com a natureza. É doutora e mestre em Ciências (ITA) e especialista em Direito e Gestão do Meio Ambiente (SENAC).
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