A volta dos que não foram
Em Curitiba, um cerimonialista enfurece muita gente ao montar o próprio velório
Bárbara Rubira | Edição 201, Junho 2023
Em 17 de janeiro, amigos e familiares do cerimonialista curitibano Baltazar Lemos, de 60 anos, se surpreenderam com uma postagem no Instagram. Era uma selfie de Lemos, muito sorridente, em frente ao Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. A legenda falava em “orações e boas energias”, sem dar detalhes. Mas ninguém sabia de qualquer problema médico grave enfrentado pelo cerimonialista, e quem tentou falar com ele por celular não conseguiu.
No mesmo dia, foi publicada na rede social uma foto em preto e branco de Lemos vestindo um smoking, acompanhada do seguinte texto: “No início desta triste tarde, o comendador Baltazar Lemos nos deixou.” Pouco depois, uma nova postagem convidava familiares e amigos a uma “cerimônia de despedida”, a ser realizada no dia seguinte, em uma funerária de Curitiba.
Às 19h30 do dia 18 de janeiro, quem chegava à Capela Vaticano, era recebido com taças de espumante. Isso não é de todo incomum em velórios, a depender das instruções deixadas pelo falecido. Já a falta de um caixão era, sim, fora do comum: só havia um arranjo de flores. Em um canto, jazia a coleção de pinguins de Lemos, que sempre contava que iria distribuir as miniaturas entre os amigos quando morresse.
Em dado momento da cerimônia, foi puxada a cortina do altar – e de trás dela surgiu o cerimonialista, plenamente saudável. Para a maioria dos presentes, a aparição não chegou a ser uma surpresa. “Curitiba inteira já sabia que eu estava vivo. Quem foi, foi de curioso, para ver o que eu estava aprontando. Meu erro foi ter feito a foto na frente do hospital. Eu errei em alguns fatores, mas é que eu nunca tinha morrido antes”, brinca Lemos, muito vivo, em entrevista à piauí.
A foto foi a peça-chave para alguns desmascararem a farsa montada. Logo depois que foi postada, parentes preocupados começaram a telefonar para o Sírio-Libanês atrás de informações, mas o hospital não reconhecia o nome do paciente. Telefonaram também para a capela em Curitiba onde estava marcado o velório, que apenas informava que o espaço havia sido alugado no horário indicado. O cerimonialista conta que a família, como não conseguia falar com ele, cogitou a hipótese de seu telefone estar hackeado ou até de ele ter sido vítima de sequestro. Depois de muita procura, chegaram à conclusão de que tudo não passava de uma armação do próprio Lemos.
Ao todo, 128 pessoas compareceram no funeral de mentirinha. “Foi difícil. Teve gente que bateu na minha cara”, conta o falso morto. Alguns, mesmo sabendo que não havia defunto, enviaram coroas de flores. A família de Lemos se recusou a fazer parte. Em nome dos familiares, um sobrinho se pronunciou nas redes sociais, repudiando o episódio como “um ato de narcisismo tóxico, a ponto de tangenciar a sociopatia”.
Baltazar Lemos monta eventos há trinta anos. Começou no ramo por acidente: trabalhava em uma loja de noivas, em Curitiba, quando uma cliente aflita contou que havia tido uma briga feia com o cerimonialista encarregado de seu casamento. Para substituí-lo, a dona da loja indicou Lemos, na época sem nenhuma experiência na área. Deu certo. Nas três décadas de profissão, ele fez casamentos luxuosos e grandes festas de debutante, como o aniversário de 15 anos da filha do lutador Anderson Silva. “Venho de uma família humilde, mas sei aproveitar as oportunidades da minha vida”, diz Lemos, que vive em Curitiba. “Já viajei o mundo todo.”
Em 2020, com a pandemia, as festas foram suspensas. “Não tinha evento. Eu tinha que sobreviver”, diz. Surgiu, então, a oportunidade de trabalhar com o cerimonial de luto. Nas contas de Lemos, foram mais de oitocentas cerimônias fúnebres desde então – às vezes várias despedidas em um só dia. O trabalho era psicologicamente desgastante, mas Lemos encontrou nele uma nova vocação. E também um questionamento que o inspirou a forjar a própria morte. “Em algumas cerimônias, havia quatrocentas pessoas. Em outras, não aparecia ninguém. Isso ficava constantemente na minha cabeça: será que, no dia em que eu morrer, alguém virá ao meu velório?”
Os amigos de Lemos sabiam que podiam esperar dele um evento surpreendente em 2023. Ele prepara festas extravagantes para os próprios aniversários em que celebra décadas completas de vida – sempre na data exata, 5 de janeiro. Em 2003, quando fez 40 anos, celebrou o aniversário ao mesmo tempo que seu casamento – numa festa em “quatro atos”. Os convidados, depois do coquetel inicial, foram surpreendidos com o aviso de que o jantar iria acontecer em outro local. Após o jantar, nova mudança de endereço, dessa vez para a realização do baile. E, por fim, depois do baile, foram todos convidados a se juntarem aos noivos em uma boate gay.
Em 2013, para celebrar seus 50 anos, o cerimonialista quis fazer uma comemoração internacional, passando por Las Vegas e Nova York. Para quem não pôde se juntar à viagem, ele organizou depois uma festa no Asilo São Vicente de Paulo, em Curitiba.
Em janeiro deste ano, as expectativas estavam altas. Em dezembro, Lemos havia enviado a seiscentos convidados um aviso de Save the date (reserve a data). Disse aos amigos que, dessa vez, não poderia celebrar o aniversário no dia 5, pois iria fazer uma cirurgia na perna – uma mentira para preparar a falsa morte. Quando lhe pediam informações sobre o local das comemorações e o traje exigido, ele respondia que nada disso importava: “Eu só quero que você venha à minha festa.”
Na noite de 18 de janeiro, descobriu-se que a comemoração do aniversário começava na capela fúnebre. Depois que Lemos se apresentou forte e sadio, os que estavam no velório foram convidados a se dirigir a outro local, para uma festa que durou somente uma hora. “Sessenta anos em sessenta minutos”, explicou o cerimonialista ressurrecto. “Os sessenta minutos mais intensos de suas vidas.” Nem todos os presentes seguiram para a festa. Mas, como a fofoca correu, outras pessoas se juntaram. No fim, Lemos contabilizou cerca de trezentas pessoas na balada que teve como atrações um jovem gogo boy e uma stripper de 80 anos – a verdadeira estrela da noite, segundo o aniversariante. O companheiro de Lemos vive atualmente na França e não compareceu ao “funeral”.
Enganados pela morte inventada, vários familiares cortaram relações com o cerimonialista. “Perdi amigos, perdi um sobrinho. Meu filho não fala mais comigo”, lamenta ele. “A única pessoa que ainda fala comigo é a minha mãe, que sabe que sou louco.” Aos 85 anos, a mãe não ficou sabendo da suposta morte do filho – os demais familiares decidiram poupá-la enquanto buscavam notícias. Foi o próprio Lemos quem explicou tudo à mãe, depois, pedindo desculpas.
O cerimonialista conta que também perdeu contratos e oportunidades de trabalho, e está enfrentando ações judiciais movidas por ex-amigos que se sentiram ofendidos e prejudicados pelo episódio. Mas ele não se arrepende e diz que, quando a morte de fato chegar, não haverá cerimônia alguma. “O meu velório já foi.”