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    Zé Celso e Marcelo Drummond trocam alianças em cerimônia artística-ecumênica Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina

questões teatrais

Casamento e luta em cena no Oficina

União de José Celso Martinez Corrêa e Marcelo Drummond sela o futuro do teatro e recarrega luta contra Silvio Santos pelo Parque do Bixiga

Maria Carolina Maia | 07 jun 2023_15h46
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Reportagem atualizada em 6 de julho de 2023

O diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina, morreu nesta quinta-feira (6/7), em São Paulo. O diretor de 86 anos teve 55% do corpo queimado num incêndio  ocorrido em seu apartamento esta semana. Foi internado na UTI do Hospital das Clínicas, mas não resistiu. 

Zé Celso revolucionou a dramaturgia brasileira ao levar para os palcos uma linguagem tropicalista e antropofágica. Transformou o Oficina num pólo de resistência à ditadura. Montou espetáculos que se tornaram paradigmáticos, como O Rei da Vela, inspirado no texto de Oswald de Andrade. Em junho deste ano, casou-se com o também diretor Marcelo Drummond, seu companheiro dos últimos 37 anos. Na reportagem abaixo, a piauí contou como foi a festa, marcada – como tudo que diz respeito a Zé Celso – pelo teatro e pela política.

 

As notas de A Felicidade fazem lembrar a voz de João Gilberto. O gênio da bossa nova, amigo com quem José Celso Martinez Corrêa dividiu uma noite temperada de canções e mescalina em Nova York, ecoa nos acordes da banda do Teatro Oficina. Gal e Astrud Gilberto também foram lembradas por meio de canções. Cada música é parte da história de Zé Celso, diretor da companhia, com o ator e diretor Marcelo Drummond, seu companheiro há quase 37 anos. Na noite desta terça-feira, eles se reuniram mais uma vez para oficializar a união entre dracenas, costelas-de-adão, orquídeas, lírios, dálias e astromélias, arrumadas em arranjos tropicalistas servidos em vasos dourados de ar greco-romano. 

Há outra presença invisível ali: a de Silvio Santos, empresário que é proprietário do terreno ao lado do Oficina, e se nega a cedê-lo ou trocá-lo para a construção do Parque do Bixiga, integrado ao teatro e aberto ao bairro. É um projeto de mais de quarenta anos. Por diversas frentes, a companhia procurou fazer o convite para a festa chegar ao apresentador, a quem pediu o espaço, hoje vazio e “improdutivo” nas palavras de Zé Celso, como presente de casamento.

 A evocação da “união amorosa, criativa e orgiástica” do casal, celebrada em um “rito artístico-ecumênico” no “templo dionisíaco de todos os santos”, como descrito no convite, não parece ter sensibilizado o homem do Baú. Ao saber de outro presente, um pé de ipê enviado do Rio de Janeiro por Fernanda Montenegro e a filha, Fernanda Torres, para ser plantado ali, o Grupo Silvio Santos procurou a Justiça para interditar o uso do terreno. A notificação, feito um presente de grego, chegou aos noivos no dia do casamento, às oito da manhã. A pena por desobediência seria de 200 mil reais.

Desde as oito da noite, cerca de quinhentos convidados, esta repórter entre eles, aguardavam a chegada dos noivos entre copos de chá, caldinhos e cumbucas de maniçoba. O prato de origem indígena, que passa por um verdadeiro ritual de purificação e fermentação, foi uma oferenda da ONG Pão do Povo da Rua ao casal, que teve a festa toda feita por amigos.

Pouco depois das 21 horas, a cantora Marina Lima sobe ao palco e aguarda a entrada dos noivos, recebidos com gritos de “Merda” e “Evoé”. De branco e com mais de uma hora de atraso, Zé Celso, 86, é empurrado em uma cadeira de rodas por Marcelo, 60. A cadeira é consequência de uma crise de diverticulite que, segundo o diretor, teve como gatilho a notícia da aprovação do marco temporal pela Câmara dos Deputados, outro tema pungente da noite. Quando se acomodam junto ao palco, Marina começa a cantar Fullgás, trilha do primeiro encontro do casal. 

“E tudo de lindo que eu faço/É, vem com você, vem feliz/Você me abre seus braços/E a gente faz um país”, canta Marina, dando a deixa para a entrada de um grupo de guaranis. Os índios abençoam os noivos e se sentam ao som de atabaques que anunciam a chegada do pai-de-santo Márcio Telles e seu cortejo de iabás. Dá-se nova bênção — outras duas ainda virão — e, pelas mãos do percussionista Ito Alves, ouve-se o ponto, uma espécie de música-tema, de Exu, orixá de Zé, de Marcelo e do Oficina.

“Por que casar? Casar por quê?”, indaga o ator baiano Ricardo Bittencourt, amigo íntimo dos noivos, idealizador e organizador de toda a noite. Lendo um texto de José Miguel Wisnik, outro parceiro de longa data do casal, Bittencourt toca no significado do casamento que roteirizou e dirigiu feito um espetáculo. “Pra que casar? Casar pra quê? A resposta está em ato. A resposta é inseparável da verdade do Teatro”, continua Bittencourt, que levou anos para convencer Marcelo e Zé Celso a oficializar a relação. Para Bittencourt, seria um meio de constituir legalmente Drummond como herdeiro e de dar proteção jurídica ao Oficina e ao patrimônio intelectual do dramaturgo, além de festejar um encontro amoroso que marcou o teatro brasileiro.

Já se disse [Nietzsche] que o casamento foi inventado para quem não é capaz nem do grande amor nem da grande amizade, e isso é uma coisa”, segue Bittencourt, avatar de Wisnik. “Mas também”, acrescentou ele, “o casamento é para aqueles que são capazes do grande amor e da grande amizade, e isso é outra coisa. (…) Há um grande cansaço de explicar o mar. Há um grande cansaço de explicar amar.”

 Wisnik sobe ao palco na sequência, para apresentar O Soneto do Olho do Cu, um pedido de Zé Celso, e As Quatro Estações que compôs para a peça Hamlet e que termina com Inverno – Anhangabaú da Felicidade — sabemos a quem se refere. A fala de Wisnik foi entremeada por participações de Danilo de Miranda, do Sesc São Paulo, e da atriz e diretora Helena Ignez. A seguir, veio o canto ancestral da atriz e “pajé moderna” Zahy Tentehar. Ela é parceria de Zé Celso em seu novo e ambicioso projeto: adaptar o livro A Queda do Céu (Companhia das Letras), soprado pelo xamã yanomami Davi Kopenawa ao etnólogo francês Bruce Albert. Uma advertência para os tempos ameaçadores que vivemos.

As atrizes Bete Coelho e Leona Cavalli, fundamentais da era Zé-Marcelo no Oficina, “primas-donas” que não se falavam nas coxias de Cacilda!, segundo o próprio diretor, se revezam em homenagens ao casal. Na última sexta, Bete esteve na casa dos noivos, que ocupam dois apartamentos em um mesmo andar, para um ensaio com o dramaturgo, que, numa de suas poucas interferências no roteiro da festa, pediu a inclusão de sua tradução — ou “transcriação” — de Fedro, de Platão, nas leituras da noite. Escrita para o documentário de mesmo nome, o texto acabou de fora do filme e fez sua estreia no casamento:

 

“os que se amam pra valer

acalmado o delírio

ainda sonham estar juntos

nos mais preciosos compromissos

creem que seria sacrilégio

desfazer essa união”

Sai Bete, entra Leona, um castiçal aceso em cada mão, seguida de atores como Pascoal da Conceição e Alexandre Borges, cada um com uma tocha. É a bênção do fogo, como ela mesma explicou na véspera da cerimônia, um rito milenar do teatro. A Gladys de Terra e Paixão, atual novela das nove da Globo, não conseguiu dispensa das filmagens no Rio e fez um bate-e-volta para estar na festa: aterrissou em São Paulo no começo da noite e decolou antes do fim. “Não poderia deixar de participar porque amo o Zé e o Marcelo, comecei minha carreira com eles”, disse, em tom de gratidão. “A relação dos dois é tão forte que gera coisas incríveis, como o Teatro Oficina atual.”

Zé Celso e Marcelo Drummond junto a Renato Borghi, ator e testemunha da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Zé Celso e Marcelo Drummond junto a Renato Borghi, ator e testemunha da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Pai-de-santo Márcio Telles dá bênçãos aos noivos. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Pai-de-santo Márcio Telles dá bênçãos aos noivos. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Bete Coelho interpreta trecho adaptado de Fedro, de Platão, junto ao marido Gabriel Fernandes. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Bete Coelho interpreta trecho adaptado de Fedro, de Platão, junto ao marido Gabriel Fernandes. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Leona Cavalli participa da bênção do fogo, rito milenar do teatro, na celebração do casamento. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Leona Cavalli participa da bênção do fogo, rito milenar do teatro, na celebração do casamento. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Eduardo Suplicy lê discurso de juramento como representante dos padrinhos e das testemunhas da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Eduardo Suplicy lê discurso de juramento como representante dos padrinhos e das testemunhas da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Zé Celso e Marcelo Drummond junto a Renato Borghi, ator e testemunha da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Zé Celso e Marcelo Drummond junto a Renato Borghi, ator e testemunha da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Pai-de-santo Márcio Telles dá bênçãos aos noivos. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Pai-de-santo Márcio Telles dá bênçãos aos noivos. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Bete Coelho interpreta trecho adaptado de Fedro, de Platão, junto ao marido Gabriel Fernandes. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Bete Coelho interpreta trecho adaptado de Fedro, de Platão, junto ao marido Gabriel Fernandes. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Leona Cavalli participa da bênção do fogo, rito milenar do teatro, na celebração do casamento. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Leona Cavalli participa da bênção do fogo, rito milenar do teatro, na celebração do casamento. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Eduardo Suplicy lê discurso de juramento como representante dos padrinhos e das testemunhas da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina
Eduardo Suplicy lê discurso de juramento como representante dos padrinhos e das testemunhas da cerimônia. Crédito: Jennifer Glass/Teatro Oficina

 

Esse sentimento de gratidão foi o mesmo que moveu o baiano Ricardo Bittencourt na realização do casamento. Ele conheceu a dupla Zé e Marcelo em 1989, quando fez uma temporada em São Paulo com Los Catedrásticos, irreverente grupo de teatro que declamava letras de axé como se fossem poemas. À época, o Oficina, fundado em 1958 e reconstruído em 1967 depois de um incêndio atribuído por Zé Celso a paramilitares que o perseguiam desde o golpe de 64, estava em ruínas. Literalmente.

Preso, torturado e exilado em 1974, Zé Celso passaria quatro anos entre Portugal e Moçambique, onde testemunhou revoluções e de onde voltou com a cabeça prenhe de ideias. Chamou a arquiteta Lina Bo Bardi que, em parceria com Edson Elito, pôs abaixo o teatro assinado por Flávio Império e ergueu um templo antropofágico. O projeto de treze anos já previa o parque ao lado e seria inaugurado em 1993, um ano após a morte de Lina. Incorporou a antropofagia de Oswald de Andrade, grande mestre do diretor, misturando elementos como uma arquibancada de três andares inspirada no Scala de Milão e uma rua para substituir o palco italiano e pôr os atores em contato direto com o chão — referência tanto aos terreiros africanos como à passarela do samba. O Oficina canibaliza culturas.

A longa gestação do novo Oficina reduziu o número de estreias do dramaturgo e contribuiu para a pecha que a imprensa pôs nele nos anos 1980: decano do ócio. Alguns atores deixaram o grupo, descrentes. O próprio Ricardo Bittencourt, então com 25 anos e carreira em ascensão em Salvador, não teve coragem de deixar a Bahia pela nova aventura de Zé Celso. “Levei dez anos para me decidir por São Paulo”, lembra. “Já Marcelo foi o cara que comprou a causa desde a primeira hora. Essa nova fase do teatro só aconteceu porque Marcelo existia. Além de um grande ator e diretor, ele é um puta produtor.”

Zé e Marcelo já contavam três anos de namoro quando Ricardo conheceu o casal. “Esse encontro dos dois deu origem ao novo Oficina e a produções memoráveis: Bacantes, Os Sertões, Cacilda!, Hamlet, As Boas, a remontagem de O Rei da Vela, Fausto, Godot”, enumera. “Juntos, como na música de Marina e Antônio Cícero, eles fizeram um país.”

 

José Celso Martinez Corrêa caminhava pela Gávea com seu macacão branco acetinado, numa noite quente da primavera carioca de 1986, quando reparou em um jovem do outro lado da rua. O jovem também olhava para ele. O diretor voltava da estreia da ópera americana Porgy and Bess, de George Gershwin, no Teatro Municipal do Rio, e estava hospedado no apartamento de uma amiga próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas.

“Nós nos olhamos, e imediatamente bateu alguma coisa. Subimos para o apartamento, fodemos e lemos, ainda na cama, As Bacantes. Ele fez Dionísio”, recapitula Zé Celso. A lembrança da noite por Marcelo também é de uma sequência fugaz. “A gente se encontrou no Baixo Gávea, conversou e foi trepar. Não tinha esse negócio de ficar horas no WhatsApp. Uma semana depois, eu estava em São Paulo, para fazer Bacantes.”

Semanas antes de se cruzarem no Rio, os dois estiveram com babalorixás que predisseram o encontro. Aos 24 anos, insatisfeito com a faculdade de biologia, Marcelo trancou matrícula e começou a estudar teatro. Para ajudá-lo a clarear a direção, o irmão o levou a uma mãe-de-santo que, a partir de um jogo de búzios, pronunciou a chegada de um homem mais velho. “Ela disse que eu iria para onde eu quisesse com ele”, lembra Marcelo. “E, depois fiquei sabendo, o Zé consultou um pai-de-santo, de quem ouviu que ele conheceria um jovem que seria tudo para ele.”

O próprio Zé é visto como “uma entidade” por Marcelo. “O Zé foi o único diretor que eu tive no teatro. A relação foi até monogâmica”, diz, aos risos, lembrando que ao fim de sete anos de uma convivência intensa, o casal abriu a relação e passou a ter seus namorados, sem nunca perder o vínculo. “O Marcelo é meu duplo”, diz Zé, que vê no companheiro a sua sobrevida. “A minha preocupação é passar tudo para ele, meus textos, meus filmes e o Oficina.” Hoje, graças ao reconhecimento da união homoafetiva pelo STF em 2011, ele pode.

É o que lembra a cena escrita por Fernando Coimbra para o matrimônio em si — o cineasta também participou da festa, registrando-a para um filme. A cerimônia foi cheia de citações ao teatro, aos noivos e aos convidados. A atriz Sylvia Prado, revivendo sua personagem em O Rei da Vela a impagável Heloísa de Lesbos, para quem “todo casamento é um negócio” —, chamou ao palco Cristiane Olivieri, advogada especializada em direitos autorais, aqui no papel de juíza de paz. Chamou também os “corifeus” (líderes do coro no teatro grego) dos padrinhos e das testemunhas para a leitura de seus juramentos: o deputado estadual Eduardo Suplicy e o ator Renato Borghi, que, emocionado, depois do texto se declarou a Zé Celso: “Meu primeiro grande amor.”

“Pela força que a sociedade livre, democrática e diversa me confere, por decisão do Supremo Tribunal Federal, eu vos declaro marido e marido”, disse Cristiane, antes de passar a palavra a Suplicy, que falou do Parque do Rio Bixiga – como vereador, ele foi autor do projeto de lei para a criação do parque – e, é claro, de renda mínima. 

Declarados marido e marido, Zé e Marcelo trocaram alianças e beijos. Entrou Daniela Mercury para cantar Terra, de Caetano Veloso, Macunaíma, parceria sua com Zé Celso, e uma ciranda que fez todo o teatro dar as mãos. A festa termina com a entrada apoteótica da Vai-Vai, enquanto Daniela se despede porque no dia seguinte vai acordar cedo para protestar contra o marco temporal nas escadas do Teatro Municipal.

Aos 86 anos e ao lado de Marcelo, Zé Celso aplaude. Ele sabe que a luta, como a festa, como o teatro, nunca tem fim.

 

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