CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Tons de vermelho no campo
Apreciada pelo agronegócio, a artista plástica Renata Egreja passou a ser hostilizada depois de fazer o L
Ana Clara Costa | Edição 202, Julho 2023
Em 30 de outubro de 2022, dia do segundo turno da eleição presidencial, um incêndio atingiu o canavial localizado ao fundo do ateliê da artista plástica Renata Egreja, de 39 anos, que vive e pinta seus quadros na fazenda de sua família, em Ipaussu, no interior de São Paulo. O fogo foi rapidamente apagado e não causou maiores danos.
Egreja, que na ocasião estava em São Paulo comemorando a vitória de Lula na Avenida Paulista, achou estranho o incidente. O período de secas chegava ao fim, e não havia queimadas na propriedade. Ela suspeitou que pudesse ser um incêndio criminoso, mas não chegou a fazer um boletim de ocorrência.
Naqueles dias, ela vinha recebendo ameaças de morte e xingamentos nas redes sociais, por causa de seu apoio ao candidato do PT. Em Ipaussu, cidade de 15 mil habitantes que vive do agronegócio, Jair Bolsonaro recebeu 62% dos votos. “Burguesa socialista” e “idiota” estavam entre os epítetos mais gentis dirigidos à artista. Um comentário no Instagram dizia que “feminista e socialista [que se preze] não vive de mesada da mamãezinha” e mandava Egreja “plantar cana”. “Triste é saber e conhecer a sua família e ancestrais e me deparar como você está hoje”, dizia outra postagem.
Egreja vem de uma família de proprietários rurais e pinta desde criança. Nos anos 2000, quando estudava artes na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo, ganhou uma bolsa para concluir a graduação na Escola Nacional Superior de Belas-Artes, em Paris. A família torceu o nariz para a ideia, mas ela foi mesmo assim. Acabou fazendo também o mestrado na França. “Fui criada numa sociedade em que mulher tinha que casar, de preferência com um ‘bom partido’, com aspas. Aí a pessoa vai para a Europa e vira feminista”, diz.
Para compensar o cinza dos dias chuvosos em Paris, Egreja começou a acrescentar purpurina e mica às suas pinturas de cores vivas, feitas a óleo, com tinta acrílica ou aquarela. Aqueles materiais produzem as texturas singulares de seus trabalhos, que são percebidas quando se vê os quadros ao vivo, mas não em reproduções fotográficas. A natureza e o universo feminino são seus temas recorrentes, e ela cita Leda Catunda, Beatriz Milhazes e Tarsila do Amaral como inspirações.
Ainda na época de estudante, Egreja encontrou compradores para seus quadros, muitos deles conhecidos seus, no interior paulista. Concluído o curso na França, ela voltou ao Brasil e, em menos de um ano, já era representada pela Zipper Galeria, em São Paulo. Seus trabalhos haviam rapidamente conquistado um círculo de admiradores, o que a permitiu montar um ateliê na capital paulista e viver da arte.
Muitos dos compradores que prestigiam Egreja são do agronegócio. Ao longo do governo Bolsonaro, com a crescente onda reacionária, alguns deles deixaram de buscar seus quadros. Mas não todos: ela diz que nunca vendeu tanto quanto na pandemia, que foi um período de alta do mercado de arte. Hoje representada pela Galeria Lume, em São Paulo, Egreja diz que as mulheres são as principais interessadas em suas pinturas. Vick Zuffo, sócia da Lume – que representa artistas como Nazareno, Claudio Edinger e Carlos Nader –, conta que o trabalho de Egreja é um dos que mais despertam o interesse do mercado. “Na pandemia, as pessoas começaram a criar seus próprios oásis. E com a Renata foi muito intenso o modo como as pessoas pediam as obras dela”, diz a galerista. Um trabalho da artista pode custar até 50 mil reais.
A associação de seu nome com o agronegócio não constrange Egreja: “Eu não tenho vergonha. Tenho orgulho.” Bem estabelecida no mercado de arte, ela poderia deixar o interior, mas deseja criar no campo as duas filhas, de 6 e 8 anos. “Sou apaixonada pelo interior. Eu amo a terra, o Sol”, diz. A artista cultiva a simplicidade rural e encontra felicidade, por exemplo, na fartura de mangas que suas árvores deram neste ano.
Na arte, Egreja encontrou a independência financeira que a libertou da rotina regida apenas pela vida doméstica. No fim das contas, até achou um “bom partido”, mas não no meio rural: seu marido, pai de suas filhas, é um arquiteto francês radicado em São Paulo. Antes de ir de mala e cuia para o campo, a família viveu por cinco anos em Ubatuba.
A artista atribui o conservadorismo predominante no interior ao déficit cultural. “Falta um aparato de cultura. Falta contato com a subjetividade da vida”, diz. Seus trabalhos circulam sobretudo em museus de cidades médias do estado de São Paulo, como Ribeirão Preto, Itu, Sorocaba e Botucatu, o que a leva a acreditar que existe uma insuspeita demanda por arte longe da capital. “Há muita gente aberta a pensar diferente”, diz. “Marília Mendonça, na música, conquistou um público imenso dentro e fora do agro justamente cantando a perspectiva da mulher.” Ela lembra que o primeiro casamento gay a que compareceu foi em uma cidade vizinha a Ipaussu. “As mudanças estão acontecendo, mas precisa de diálogo.”
Egreja acredita que uma formação cultural melhor poderia até motivar produtores rurais a buscar novas formas de lidar com a terra: “Com a tecnologia, é possível dobrar a produtividade sem desmatar um alqueire. Mas falta conhecimento, falta cultura.” Ela entende do assunto: motivada por um episódio do podcast Maria Vai Com as Outras (feito pela piauí e a Rádio Novelo), matriculou-se num MBA na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). E aponta a necessidade de mais mulheres no setor agrícola. “Mais de 90% das propriedades rurais estão nas mãos de homens. E há essa metáfora da terra como corpo feminino e do abuso desse corpo, de só tirar e nunca devolver nada à terra. O olhar do homem para a terra é muito parecido com o olhar para o corpo de uma mulher.”
Frustrada por Lula não ter indicado uma mulher para o STF, nem por isso Egreja se arrepende de ter “feito o L”. Com o aquecimento do mercado de arte durante a pandemia, ela contratou produtores para criarem projetos de captação de recursos para exposições gratuitas em museus do interior de São Paulo, e agora está feliz com a retomada dos investimentos do governo em cultura.
Dessa iniciativa resultou a mostra Cores do Interior, que passará pelo Fama Museu, em Itu, e pelo Museu de Arte de Ribeirão Preto (Marp), no segundo semestre – um contraponto à sua exposição encerrada em junho na galeria Cassia Bomeny, em Ipanema, no Rio de Janeiro, de caráter mais comercial. “Quando a obra fica no apartamento de alguém, não cumpre seu papel social. Tem que estar disponível numa instituição pública, gratuita. Só assim a arte transforma.”
Os ataques a Egreja não arrefeceram depois das eleições. “Tem lugares que eu não posso frequentar mais. Pessoas que não falam mais comigo”, lamenta. Nas ruas de sua cidade natal, há quem a olhe com ódio. Criada em uma família de ideias políticas pouco conservadoras e matriarcal – sua mãe, que é economista, toca os negócios e incentivou a sua carreira artística –, Egreja estranha sobretudo a hostilidade das mulheres. “Ser artista e ser mulher é o que me atravessa. E tenho duas filhas mulheres”, diz a artista, que não consegue entender como uma mulher pode apoiar Bolsonaro e seu discurso misógino.
Egreja não cogita silenciar suas opiniões políticas: “Se eu não puder falar, o que eu estou fazendo como artista?” Suas posições encontram resistência agressiva até no meio artístico interiorano. Ela lembra que, em 2018, o museu de Ourinhos, também no estado de São Paulo, pediu uma de suas obras emprestada para uma exposição. O empréstimo foi feito, mas Egreja sequer foi convidada para a abertura. Indignada, foi até lá cobrar explicações. “Agora é Bolsonaro”, respondeu o diretor do museu.
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