CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Hipopótamos do pó
O estranho legado turístico do narcotraficante Pablo Escobar
Matheus Gouvea de Andrade | Edição 202, Julho 2023
Às cinco da manhã, os guias começaram a animar os turistas no ônibus que saía de Medellín, na Colômbia, com destino ao Parque Temático Hacienda Nápoles, a propriedade de 3 mil hectares que já foi o luxuoso refúgio de Pablo Escobar. A menção ao narcotraficante mais famoso do mundo logo despertou a curiosidade dos sonolentos passageiros, quase todos provenientes de outros países da América Latina. Os guias, porém, alertaram que o parque não se dedica a expor a vida de crimes de seu antigo proprietário. Contrariando expectativas, o tema dominante da Hacienda Nápoles é a África.
Nas quase três décadas desde que Escobar foi morto, aos 44 anos, em um telhado de Medellín pela polícia colombiana, a sua antiga propriedade vem atraindo a atenção de curiosos. Em 2007, foi convertida no atual zoológico a céu aberto, que deseja sair da rota das “narcotours”, as excursões que exploram a história sangrenta do cartel de Medellín.
Quatro parques aquáticos foram montados na Hacienda Nápoles, aproveitando o clima equatorial da região. A antiga Praça de Touros, na qual Escobar oferecia espetáculos à população local, tornou-se um museu da cultura africana. Esse tema foi sugerido pela extravagante fauna do lugar, com muitas espécies provenientes da África – trazidas, claro, pelo próprio traficante. Foi por um de seus caprichos megalomaníacos que hoje zebras e avestruzes passeiam pela Hacienda.
De todos os bichos importados pelo exportador de cocaína, os hipopótamos foram os que mais proliferaram na região de Magdalena Médio, onde fica a propriedade. No início, eram apenas quatro, que escaparam para perto do Rio Magdalena e procriaram, causando um desastre ambiental na área. Hoje a região abriga o maior número desses animais fora da África – já são mais de 150. Como eles não têm predadores naturais ali, acabam consumindo grande parte do alimento de espécies nativas do local.
No parque mesmo são só três: Paco e Guaco, dois hipopótamos machos de comportamento dócil, e Vanessa, uma fêmea expulsa de sua manada em Magdalena Médio (supõe-se que isso se deu por causa de seu temperamento mandão como se fosse um macho alfa). “Logo que encontraram Vanessa, ela foi levada para um hábitat próprio, com lago. Eu ficava o dia todo lá. Dava banho nela, depois brincávamos, e assim começamos a domesticá-la”, conta a funcionária Shirley Rivera, que trabalha na Hacienda desde 2007, cuidando dos animais. “Eu falava com Vanessa como se fosse com uma pessoa, e assim ela foi se acostumando comigo e com minha voz.”
Vanessa, que tem 16 anos, hoje atende pelo nome e até sai de seu lago para se aproximar dos turistas que lhe oferecem quitutes. Sua alimentação consiste de ração, capim, frutas e legumes, especialmente melancia e cenoura. A comida que os visitantes lhe dão é fornecida pelo parque, equilibrada em porções ao longo do dia, para não prejudicar o processo digestivo.
Outro cuidado fundamental é com a pele de Vanessa, que deve permanecer sempre úmida. Os funcionários tratam de molhá-la quando ela está em terra. Mas ela passa boa parte do dia no lago, na companhia dos patos.
Hacienda Nápoles fica no município de Puerto Triunfo, quase na metade do caminho entre a fria Bogotá, a cerca de 2,5 mil metros de altitude, e Medellín, 1 mil metros abaixo, conhecida como a Cidade da Eterna Primavera por seu clima temperado. Embora seja uma das principais estradas do país, a rodovia que vai de Medellín ao parque é de tráfego lento e acidentado: leva-se de quatro a cinco horas para percorrer o trecho de 175 km.
Os animais africanos que Escobar colocou em um bioma estranho não convivem bem com os veículos: na semana em que a reportagem da piauí visitou o parque, em abril, um carro atropelou e matou um hipopótamo na rodovia. Os dois ocupantes do veículo não tiveram ferimentos graves.
A entrada da Hacienda Nápoles, à margem da estrada, também já foi um ponto turístico. Em cima do portão, estava afixado o avião monomotor que supostamente teria transportado a primeira carga de cocaína de Escobar para os Estados Unidos, episódio que ficou famoso graças à série Narcos, da Netflix. Muitos paravam para tirar fotos ali. Mas, como toda a região busca hoje se distanciar da “herança maldita” do cartel de cocaína, portão e avião foram transferidos em 2019 para uma espécie de memorial na Hacienda Nápoles.
Esse local é devotado à história de Escobar e do tráfico, mas com uma apresentação objetiva e dura dos fatos, sem margem para celebração ou sensacionalismo. Fotografias cruas – com alertas para o conteúdo chocante – expõem os crimes mais violentos de Escobar e seu cartel, da explosão da sede do jornal El Espectador aos políticos assassinados a mando do traficante.
O museu mantém ainda uma seção sobre as origens do parque. Para adquirir uma propriedade daquelas dimensões, Escobar extorquiu vários pequenos proprietários, obrigados a optar entre plata o plomo (dinheiro ou chumbo) – bordão tenebroso que ainda hoje é estampado em camisetas vendidas aos turistas em Medellín. Na própria Hacienda, não se vendem quinquilharias lembrando Escobar. Lá, os souvenirs com mais saída trazem a imagem de Vanessa. A hipopótamo mandona é agora o verdadeiro capo do lugar.