Universidade não tem idade

Em março deste ano, três estudantes de um centro universitário da cidade paulista de Bauru viralizaram ao debochar de uma colega do curso de Biomedicina por ela ter mais de 40 anos. Mas, muito além dos 40 anos, uma outra turma vem chamando a atenção dos analistas de indicadores educacionais. No Brasil, o número de estudantes idosos na graduação vem aumentando há pelo menos uma década: entre 2012 e 2021, cresceu 56%. De acordo com o Censo da Educação Superior de 2012, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), naquele ano havia 28.041 estudantes com 60 anos ou mais regularmente matriculadas no ensino superior; em 2021, esse número havia aumentado para 43.722 matrículas.

A mineira Maria de Fátima Melo Barbosa, hoje com 64 anos, casada, um filho, faz parte desse time. Ingressou na faculdade pouco antes dos 60 anos e se diplomou em setembro do ano passado – por problemas pessoais teve de trancar a matrícula por um tempo por duas vezes. Após passar grande parte de sua vida trabalhando como compradora de material de construção em uma empresa privada, ela resolveu fazer seu primeiro curso superior. 

Em 2013, Barbosa participou da edição regular do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e em janeiro de 2014 teve que realizar a então obrigatória segunda etapa do vestibular para o curso de conservação e restauração de bens culturais móveis, oferecido pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG). “Fui aprovada na segunda chamada com ampla concorrência, depois de trinta anos sem estudar, sem cursinho, sem cota, sem nada”, orgulha-se.

Para a porto-alegrense Marion Fassina Michalski, de 56 anos, casada e comuma filha de 21 anos, fazer um curso superior não é novidade. Quando era jovem, ela cursou Licenciatura em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e fez uma especialização na mesma área. “Sou professora de História, atuei e atuo na rede pública estadual e estou parcialmente aposentada”, conta. “Trabalho 20 horas por semana na biblioteca do Colégio Estadual Júlio de Castilhos.” 

Logo após terminar o curso de história, Michalski fez ainda o Bacharelado em  letras – tradução na língua inglesa, também na UFRGS. “Como dá para ver, eu gosto de estudar, gosto de estar atualizada na minha profissão”, diz. “Nas escolas onde atuei, sempre atuei nas bibliotecas (pelo menos algumas horas) e me apaixonei pelo trabalho, pela interação com os alunos que se dá de forma diferente que na sala de aula.”

Michalski conta que de uns cinco anos para cá, têm mudado muitas coisas na sua vida, na forma de encarar as coisas e até alterou a alimentação (“Estou em transição para o veganismo”). “Também pratico natação e ioga entre outras coisas e me sinto muito bem sempre que estou estudando”, acrescenta. “Devo dizer que tenho (todos temos) influências familiares, que me levaram a fazer tais opções, em estar sempre alimentando a mente e o corpo com coisas boas.” 

Por isso, ela resolveu fazer o Enem ano passado e o vestibular para psicologia na UFRGS. “Fui bem no Enem, mas não passei no vestibular, pois tem muita concorrência para o curso de psicologia”, diz. “No meio do ano, a universidade abriu uma seleção para alguns cursos, dentre eles biblioteconomia. Me inscrevi e fui aprovada com a nota do Enem. Como professora, sempre vi esse exame como uma grande política de inclusão, até que chegou a minha vez. Assim, hoje curso biblioteconomia na UFRGS. Estou adorando e tem tudo a ver com a minha prática profissional e gostos particulares.”

O professor titular da Faculdade de Educação da UFRGS Johannes Doll, especialista em gerontologia, vê duas razões principais para o aumento do número de pessoas com mais idade nas universidades. O primeiro é o crescimento do número de pessoas idosas na população geral. “Estamos em um momento em que os assim chamados ‘babyboomers’, o grupo que nasceu em torno de 1960, entra na fase da velhice, da aposentadoria”, explica. “No Brasil, nessa época, a taxa de fertilidade era muito alta, em torno de 6,2 filhos por mulher na fase reprodutiva, um número que baixou bastante e hoje está na casa de 1,7. Agora, esse grupo grande que nasceu naquela época está entrando na velhice.”

Uma segunda razão, segundo ele, é que uma boa parte dessa geração já teve uma escolaridade melhor do que as anteriores. “Mesmo se nos anos de 1970 e 1980 muitos abandonaram a escola, tiveram que completar seus estudos durante a vida profissional, que exigia cada vez mais, pelo menos a conclusão do Ensino Fundamental ou Ensino Médio”, diz. “Nessa mesma linha, essa geração teve que se confrontar com a introdução do mundo digital na sua vida profissional e privada e, mesmo se não todos se tornaram à vontade nesse mundo, uma grande parte não se assusta mais com computador e ensino a distância.” 

De acordo Doll, os motivos pelos quais pessoas na faixa dos 50 ou 60 anos resolvem ingressar numa faculdade são bem diversos. Há um grupo que sonhou na juventude em estudar mas não teve condições, seja pelo trabalho, seja pelo dinheiro, seja pela distância de uma universidade, e agora está recuperando um sonho antigo.

Outro grupo, que geralmente já tem uma formação superior, estuda hoje em uma área em que sempre sonhou, mas não escolheu quando jovem, seja por orientação dos pais ou por acreditar que determinado curso não ofereceria perspectivas profissionais. “Isso se nota no fato de que as duas áreas mais procuradas são a das ciências humanas e sociais e a das artes”, explica Doll.

Há ainda outra motivação, que pode estar presente nos dois grupos, que é o de se manter ativo, atualizado com as discussões de hoje e ter contatos sociais com a geração mais nova, de buscar estímulos. “Existe ainda um grupo que pretende exercer uma nova profissão”, acrescenta o professor da UFRGS. “Mas pelas minhas conversas, isso raramente é a razão principal. Muitos falam que não excluem praticar essa nova profissão, mas não parece o foco principal.”

Tanto Barbosa quando Michalski têm pelo uma dessas motivações. “Quando jovem, cheguei a realizar o antigo vestibular da UFMG, em que os candidatos faziam prova no estádio do Estádio do Mineirão, em uma prancheta na década de 1970”, conta a primeira. 

Como ele era muito concorrido, ela não passou para o curso de letras e, “assim, a vida seguiu em novos rumos”. “Hoje, eu não poderia estar mais feliz e realizada em toda a minha existência, pois, no passado, eu não tive a oportunidade de estudar”, revela. “Ao passo que, agora, eu posso afirmar que sou conservadora e restauradora, formada por uma das melhores universidades do Brasil.”

Michalski, por sua vez, explica que resolveu fazer um segundo curso superior com mais de 50 anos, porque está motivada para a vida em geral e está bem consigo mesma e “me amo”. “Além disso, gosto de estudar e tenho mais tempo com a aposentadoria parcial”, acrescenta. “Também penso em atuar na área de alguma forma após a conclusão do curso, além de estar  enriquecendo muito a minha prática na biblioteca e na escola na qual trabalho.”

Em relação a preconceitos ou “bullying” dos colegas mais jovens de classe, nenhuma das duas chegou a sofrer algo tão violento e explícito quanto à estudante de Bauru. “Houve aqueles que acharam que eu não iria conseguir finalizar o curso, mas eu persisti e consegui”, orgulha-se Barbosa. “Foi um árduo percurso, mas caracterizado por mostrar a todos que a nossa capacidade de aprender está muito além da idade, basta apenas uma oportunidade. E deu tudo certo.”

Michalski também não teve experiências que pudessem ser consideradas muito negativas, apenas reações leves. “Sinto que pode haver um ar de estranheza por parte de alguns colegas, mas não sou a única mais velha lá, o curso tem pessoas de todas as idades, gêneros, etnias, tipos”, diz. “Pode ser uma característica de universidade pública, mas me sinto diferente entre tantos diferentes e acho isso muito bom. Mas sei que a ‘velhofobia’ existe e às vezes somos meio ‘invisíveis’ só porque o cabelo é branco.”

Para Doll, a relação intergeracional entre os estudantes do ensino superior pode ser benéfica para todos, jovens e idosos. “A maior parte dos relatos que ouvi é positiva em relação à interação entre gerações”, conta. “Por estar em contato direto com a outra geração, possibilita rever preconceitos que existem dos dois lados. Geralmente a mais velha contribui com suas experiências práticas e concretas, possui muitas vezes uma perspectiva mais realista do que os jovens. Em contrapartida, os mais jovens trazem muitas vezes ideias mais diferentes, inovadoras, provocativas.”

Doll diz que a relação que ele mesmo vivencia em sala de aula é bem interessante e estimulante, mas exige dos dois lados uma abertura para o diálogo e uma disposição de aguentar opiniões diferentes. Também representa um desafio para professores com essas turmas multigeracionais na forma de conduzir as aulas. 

Pessoalmente, ele diz que sempre considerou a universidade um lugar aberto, estimulante, desafiante e que gosta muito de poder viver nesse universo. “Mas buscar se inserir na universidade e aproveitar suas possibilidades na idade avançada é geralmente feito por pessoas que já tiveram contato com a instituição, ou que sonharam fortemente com ela”, acrescenta. “A grande maioria não consegue se imaginar na universidade por uma série de barreiras, linguísticas, sociais, por achar que não é o seu lugar.” 

Para Doll, isso “é uma pena”, pois mantém a universidade numa perspectiva elitista. “Muito bom seria se ela se abrisse para esses grupos”, defende. “Seria com projetos de extensão, de convites da universidade a pessoas desses grupos, que não se imaginam na universidade, de uma ida da instituição até os lugares onde essas pessoas vivem. Temos ainda bastante desafios para ter um número maior de matrículas de pessoas com 60 anos ou mais.”