CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Geladeira de cérebros
Uma pesquisadora coleciona encéfalos de golfinhos
Clarice Cudischevitch | Edição 203, Agosto 2023
Uma geladeira no Instituto de Física da UFRJ abriga desde junho a maior coleção de cérebros de golfinhos da América Latina. São cerca de cinquenta exemplares de treze espécies, acondicionados em potes tipo tupperware ou de vidro, de tamanhos variados, desde os grandes de azeitona até os pequenos de óleo de coco – a mais pura ciência brasileira de guerrilha. O feito é da bióloga Kamilla Souza, de 32 anos, que articulou uma rede de colaboradores pelo Brasil para coletar os cérebros dos cetáceos que morriam (encalhados, por exemplo) no litoral ou em rios da bacia amazônica.
“Encalhou uma toninha aqui. Vem buscar?” Ligações telefônicas como essa já fizeram Souza abandonar imediatamente a esteira da academia de ginástica e pegar rapidamente a estrada rumo a Praia Grande, no litoral paulista, na época em que seus colaboradores ainda não haviam aprendido a extrair o cérebro da pequena espécie de golfinho ameaçada de extinção. Para viajar com a mala de cérebros, às vezes é mais fácil dirigir por longas distâncias do que embarcar num avião. Mesmo com as licenças biológicas, a cientista era obrigada a dar explicações sobre o conteúdo em aeroportos – até que descobriu um truque: levar as amostras embalsamadas em fraldas ou gazes em vez de imersas em soluções, que aparecem mais facilmente no scanner.
Ela também já dirigiu uma picape alugada cheia de cérebros na caçamba. O destino era a USP, onde Souza fez as imagens de alta resolução dos órgãos na única máquina de ressonância magnética 7 tesla – de ultra-alto campo magnético – que comporta animais grandes da América Latina. “Temos as únicas imagens de cérebros de golfinhos em alta definição do mundo”, diz ela.
Defendido em janeiro, o doutorado de Souza em ciências morfológicas centrou-se nas descrições morfológicas de cérebros de golfinhos. O plano inicial, mais modesto, era comparar duas espécies de água doce e duas de água salgada para observar como o cérebro foi se modificando em ambientes distintos. Mas a rede construída por ela, atualmente com treze instituições de pesquisa, acabou superando as expectativas.
Com mais espécies à disposição – incluindo algumas nunca detalhadamente estudadas, como o boto-cinza típico da Baía de Guanabara, e outras raras, como o boto-cor-de-rosa amazônico –, Souza decidiu ir mais a fundo. Descreveu também a anatomia do sistema nervoso desses animais.
Golfinhos são considerados excepcionalmente inteligentes. Nas últimas décadas, a comunidade científica tem dedicado mais atenção a seus encéfalos, que, assim como os nossos, são grandes em proporção ao corpo e têm muitas dobras corticais, no caso das espécies estudadas por Souza. Pesquisas na área ajudam a compreender melhor não só esse grupo, mas outros mamíferos, incluindo nós mesmos, por meio de análises comparativas.
Estudos recentes sugerem os golfinhos como modelo para pesquisas sobre Alzheimer, devido a similaridades com humanos – ambos têm ciclo de vida longos, da ordem de décadas, por exemplo. Mas o estudo de golfinhos, animais que podem alcançar 10 metros de comprimento, apresenta desafios: eles vivem livres em seus habitats (oceanos ou rios) e ficam submersos a maior parte do tempo. Somam-se a esses problemas os entraves que a ciência enfrenta no Brasil: a dificuldade logística, a falta de financiamento e de especialistas.
Há uma grande diversidade de espécies no país, mas poucas tiveram seus cérebros estudados. Souza precisou começar a pesquisa do zero. “Em outras disciplinas, os cientistas chegam num ponto da pesquisa já avançado e adicionam o último tijolinho, mas nesse caso não existiam os dados, a base teórica”, explica o físico Bruno Mota, orientador de Souza. “Então a Kamilla teve que construir toda a cadeia até chegar ao último tijolinho – coletar cérebros, produzir as imagens, construir softwares para processá-las.”
Na preparação para a pesquisa, ela passou dois meses na Universidade de Hokkaido, no Japão, aprendendo a extrair cérebros de grandes cetáceos, como baleias. Voltou em dezembro de 2018 e começou a pedir ajuda de pesquisadores pelo Brasil para montar sua coleção. A partir daí, quando notificadas do encalhe de um animal, equipes técnicas faziam o resgate e, se o animal estivesse morto, a bióloga era avisada.
O ideal é que a coleta seja feita em até 24 horas após a morte. Em muitos casos, Souza desloca-se pessoalmente para extrair o cérebro. Em outros, pessoas da rede, como veterinários e alunos treinados por ela, encarregam-se da missão. “Hoje muita gente vê um cérebro e logo se lembra de mim”, diz a pesquisadora.
Um instituto de física pode parecer um lugar inusitado para acomodar órgãos de cetáceos. Mas a geladeira de cérebros faz parte de um laboratório de pesquisa interdisciplinar em neurociência, o metaBIO, coordenado por Bruno Mota, que há quinze anos deixou de lado a cosmologia para investigar, com os métodos da física, como o cérebro se forma. Enquanto ele orientava Souza pelo lado da física, a supervisão da parte da biologia esteve a cargo da professora Haydée Cunha, da Uerj.
Atualmente Souza é pós-doutoranda no metaBIO. Pretende expandir e formalizar a Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, como um colega sugeriu batizá-la. Quer qualificar e aumentar sua coleção, pois nem todas as amostras estão em bom estado, e quanto maior a diversidade de espécies mais rica será a pesquisa. Ela mira, ainda, outro desafio: coletar cérebros de baleia. “Hoje estamos trabalhando em uma logística que viabilize esse tipo de estudo.”
A coleção de cérebros já passou por contratempos. Antes de migrar para o metaBIO, em junho, ela utilizou por três anos uma geladeira emprestada no Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, que foi um parceiro durante toda a pesquisa. Quando um curto-circuito queimou refrigeradores do lugar, Bruno Mota comprou uma nova geladeira às pressas e convocou pessoas pelos corredores para ajudarem a carregar os cérebros de um prédio a outro.
Como o laboratório metaBIO ainda está em obras, a geladeira de cérebros fica cercada de material de construção, mas pelo menos já repousa em seu lar definitivo. “Não é sempre que a coletividade impera no meio acadêmico, mas no meu caso ela foi fundamental”, diz Kamilla Souza.