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    Ilustração: Carvall

questões educacionais

Sem plano para os pequenos gênios

Pessoas com altas habilidades driblam bullying cotidiano e falta de implementação de políticas públicas especializadas

Amanda Gorziza | 11 ago 2023_11h33
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Com um ano e sete meses, Ana Helena Strey Hübner já sabia todas as letras do alfabeto. Aos três anos, aprendeu a ler e a escrever. Quando ingressou na pré-escola, diferente dos colegas, a menina estava completamente alfabetizada. “Desde cedo, a gente identificou que ela era muito avançada porque ela falava palavras difíceis e começou a escrever e ler super cedo”, relata a mãe, a jornalista Josiane Strey Corrêa. No ano passado, aos seis anos, a menina fez um teste de QI, que mede as capacidades intelectuais, o desempenho cognitivo e a capacidade de resolução de problemas. A pontuação máxima é 160, e Ana Helena tirou 155, atestando o diagnóstico de altas habilidades.

Mesmo antes do diagnóstico de superdotação, a família já tinha acompanhamento escolar especializado, já que a capacidade intelectual de Ana Helena era bem mais avançada que a dos colegas. “Enquanto os colegas estão assistindo à Patrulha Canina, ela assiste ao Manual do Mundo”, diz Josiane Corrêa. A família, que mora em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, passou por um processo burocrático junto à Secretaria da Educação municipal para conseguir o avanço da série escolar. Durante dois anos, a Smed não permitiu, pois julgava de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que diz que na educação infantil não pode haver avanço. Em 2023, para comprovar que Ana Helena poderia pular um ano, foi aplicada uma prova de matemática do 2º ano e uma de português do 3º ano: a estudante gabaritou ambas. Da pré-escola II, ela pulou direto para o 2º ano na Escola Municipal de Ensino Fundamental Catulo da Paixão Cearense. “Eu não queria ir pra escola porque eu já sabia escrever e os colegas não, daí achava entediante. Mas agora no 2º ano estou aprendendo coisas novas e achando mais legal”, diz a estudante de sete anos. Em Caxias do Sul, cidade de 463 mil habitantes, a rede municipal de ensino tem 31 estudantes identificados com altas habilidades e 15 em processo de investigação. 

O conceito de superdotação está em constante evolução e apresenta diferentes esferas. Atualmente, pesquisadores da área optam pelo termo altas habilidades para designar quem tem potencialidades intelectuais acima da média, assim como capacidades de liderança, artes, psicomotora e criatividade.

Segundo a Mensa Internacional, a maior organização de pessoas de alto QI (quoeficiente de inteligência) do mundo, cerca de 2% da população mundial tem o QI elevado. Estima-se que cerca de 4 milhões de brasileiros tenham essa característica, porém o número de pessoas diagnosticadas com altas habilidades é inferior. Segundo dados do Censo Escolar de 2022, apenas 26,6 mil crianças e adolescentes receberam o diagnóstico – o equivalente a 0,05% de todos os alunos da educação básica. Ontem, 10 de agosto, foi comemorado o Dia Internacional da Superdotação. A data foi criada pelo Conselho Mundial das Crianças Superdotadas e Talentosas em 2011. 

 

Uma pessoa com altas habilidades tem grande facilidade no aprendizado, e consegue reter informações diversas sobre variados assuntos. Normalmente, as crianças aprendem a ler e a escrever mais cedo do que o habitual, como foi o caso da Ana Helena, que com três anos já tinha esses conhecimentos. O QI de uma pessoa com altas habilidades é maior que 130 – a média brasileira é 83. A origem das altas habilidades tem causas genéticas e ambientais, como hábitos e estímulos, principalmente nos primeiros anos de vida.

O psiquiatra Alexandre Valverde, ele mesmo diagnosticado com autismo leve e altas habilidades apenas aos 42 anos, destaca que as questões cognitiva, afetiva e sensorial dessas pessoas são ampliadas em relação a indivíduos que não têm altas habilidades. “São crianças que têm uma curiosidade muito intensa, aprendem espontaneamente e criam os próprios métodos de aprendizado, por isso a gente as chama de autodidatas”, afirma Valverde.

Considerando a capacidade intelectual, Ana Helena poderia ir para o 3º ou 4º ano, mas a família preferiu avançar apenas um. “Ela não estaria madura, psicologicamente falando, para fazer um avanço tão grande. Estaria com crianças mais velhas que falam sobre assuntos que ela ainda não domina”, afirma a mãe. No contraturno, a menina faz aula de inglês com uma turma de estudantes de dez anos e nas segundas-feiras frequenta o Atendimento Educacional Especializado (AEE) oferecido pela escola, voltado para o acompanhamento de estudantes da educação especial, que inclui pessoas com altas habilidades, deficiência ou transtornos globais de desenvolvimento.

A caxiense Ana Helena Strey Hübner recebeu o diagnóstigo de altas habilidades aos seis anos e tem acompanhamento escolar e psicológico desde cedo – Foto: Josiane Strey Corrêa

 

“As pessoas com altas habilidades têm campos de interesse muito diversos e geralmente se dedicam e se consagram a esses interesses em hiperfoco”, destaca o psiquiatra. Essa característica é observada na Ana Helena, que no momento tem dedicado grande parte de seu tempo à caligrafia e ao lettering – arte de desenhar letras. Ela pediu um caderno novo à mãe e passa horas assistindo vídeos no YouTube e reproduzindo as artes.

O médico ressalta que as altas habilidades também trazem consigo alguns obstáculos, como o alto nível de exigência e cobrança, a independência que pode levar a pessoa à diminuição de relacionamentos sociais, e o hiperfoco que pode dificultar o percurso escolar. “Pessoas com altas habilidades podem viver percursos escolares e profissionais caóticos, apesar da super capacidade cognitiva, se não forem estimuladas e orientadas segundo suas necessidades. Algumas crianças têm dificuldade de obedecer orientações de adultos”, destaca o psiquiatra, que ressalta a importância do acompanhamento psicológico nesses casos.

Ana Helena Strey Hübner realiza terapia há dois anos em função da alta cobrança e da insegurança que podem acompanhar o indivíduo que tem altas habilidades. “Querendo ou não, ela continua sendo uma criança de sete anos. Ela se cobra muito e quer que tudo seja perfeito, mas ela ainda é uma criança”, diz Josiane Corrêa. A mãe ressalta que Ana Helena questiona tudo que está a sua volta. “Ela sabe argumentar muito bem e não se contenta com poucas explicações, o que acaba sendo bem desafiador para nós como pais.” Corrêa também relatou que a menina se interessa pouco por brincadeiras e, na escola, já vivenciou bullying por ser “a preferida da professora” e “já saber as matérias”. 

Josiane Corrêa também é mãe da Catarina, de 2 anos e 8 meses. “A gente vê que a Catarina é uma criança comum para sua faixa etária, não é que nem a Ana Helena que que era super avançada nessa época”, diz.

 

Apesar de não serem consideradas como deficiência, as altas habilidades estão relacionadas às neurodivergências, explica Laura Ceretta Moreira, professora titular da UFPR e coordenadora do Lapeahs (Laboratório de Políticas, Pesquisas e Práticas Educacionais em Altas Habilidades/Superdotação). “A falta de identificação acaba gerando sentimentos de inadequação nos indivíduos de altas habilidades e de não pertencimento, inclusive nas relações sociais”, afirma. “Isso não significa que haja um consenso na área sobre esses aspectos.” A partir do olhar da neurodivergência, a pesquisadora ressalta que é importante ir além de uma análise de QI e olhar também para os marcadores sociais e questões emocionais. “A gente trabalha a identificação dessas pessoas não pautada apenas em corpos brancos e heteronormativos. Temos que olhar a superdotação em qualquer corpo, por isso eu entendo que só um olhar clínico de QI jamais vai chegar a essas pessoas”, diz Moreira.

Algumas das pessoas com altas habilidades também estão no espectro autista, têm TDAH ou dislexia. O psiquiatra Alexandre Valverde destaca que a não consciência da própria condição, aliada à vivência de neurodivergências, pode gerar grande sofrimento mental. A combinação de duas características chama-se dupla excepcionalidade, que é o caso do psiquiatra. Ele tem autismo leve e altas habilidades. Entretanto, seu diagnóstico ocorreu na vida adulta. Os pais de Alexandre Valverde também têm altas habilidades, o que fez com que o comportamento do filho fosse naturalizado durante a infância. Ele aprendeu a ler sozinho aos quatro anos e tem facilidade para os idiomas. Durante a pandemia, Valverde se deparou com alguns traços do que viriam a ser o diagnóstico do autismo, como dificuldade de sociabilização íntima, comportamento repetido sistemático e facilidade de aprendizado. Depois, realizou uma avaliação neuropsicológica e um teste de QI que diagnosticou também as altas habilidades. “Eu sofri na minha vida adulta por uma dificuldade de compreensão de mim mesmo – e essa cegueira também me prejudicava a enxergar essas questões em outros pacientes.”

Apesar da estimativa de que 2% da população tenha QI elevado, não há projetos governamentais que incentivem o diagnóstico dessas pessoas, o que afeta diretamente a educação, a saúde mental e a economia do país. Mas há associações independentes que realizam esse trabalho.

 

A Mensa Brasil é a representante oficial brasileira da Mensa Internacional, a maior organização de pessoas de alto QI (quoeficiente de inteligência) do planeta. Ela reúne quase 150 mil pessoas em todo mundo em cerca de cem países. No Brasil, a associação tem 21 anos e cerca de 2,6 mil superinteligentes, como eles chamam as pessoas com QI elevado. “Desde o ano passado, a gente tem feito um trabalho muito grande para ajudar a trazer luz sobre esse tema. Ajudar a conscientizar, informar e educar a sociedade brasileira sobre a importância da inteligência e sobre os direitos das pessoas superinteligentes”, afirma Rodrigo Sauaia, presidente da Mensa Brasil. Esses direitos estão previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, entretanto, Sauaia ressalta que a maioria das escolas públicas e privadas não cumprem as previsões que estão na legislação.

Os entrevistados ouvidos pela piauí afirmam que o Brasil aproveita pouquíssimo o potencial intelectual da população em função da baixa identificação dessas pessoas. “Apesar do Brasil ter uma imensa potência intelectual, ainda há um desconhecimento dessas pessoas porque não existe um mapeamento abrangente de quem tem altas habilidades no nosso país. Isso gera dificuldade para implementar as políticas públicas necessárias, porque as pessoas estão invisíveis para o poder público”, diz o presidente da Mensa Brasil.

Laura Ceretta Moreira, da UFPR, ressalta que existem políticas públicas para pessoas com altas habilidades, mas muitas vezes elas não são adequadamente praticadas. “Há uma falta de conhecimento da sociedade sobre essa temática e também de conteúdos formativos nas universidades”, afirma. Os professores têm dificuldades de identificar esses alunos e de trabalhar com eles.

O diagnóstico de pessoas com altas habilidades é importante para o autoconhecimento desses indivíduos, de suas famílias e também do ambiente em que estão inseridas, como escola ou trabalho. “Enquanto a gente não é descoberto, como é que vamos devolver para a sociedade aquilo que a gente recebeu em parte da natureza por ter nascido assim? O nosso país perde muitíssimo em não reconhecer as suas populações com altas habilidades”, afirma o psiquiatra Alexandre Valverde.

 

Procurado, o Ministério da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), afirmou em nota que “trabalha firmemente para retomar, fortalecer, e ampliar a Política Nacional da Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva, em diálogo com os movimentos sociais e associações científicas à luz dos documentos legais”. Também ressaltou que “em relação às pessoas com altas habilidades/superdotação, o MEC torna público o seu compromisso em romper com a invisibilidade histórica, desse público, nas políticas de educação”.

Na entrevista à piauí, Ana Helena revelou que um de seus sonhos é ter poderes mágicos. “Só que isso nunca vai acontecer”, disse. A mãe rebateu: “Mas sabia que tu tens o poder mágico do teu conhecimento? Você tem ele dentro da sua cabeça.” “Só que eu não consigo lançar raios com as mãos”, brincou a menina.

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