Ilustração: Carvall
Bolsonaro e o sumiço de um relógio de 257 mil reais
Na trama das joias desviadas pelo ex-presidente e seus auxiliares, ainda não se sabe onde foi parar um luxuoso presente dado pelo rei do Bahrein
Na tarde do dia 16 de novembro de 2021, quando Jair Bolsonaro sentou-se frente a frente com o rei do Bahrein, Hamad Bin Isa Al Khalifa, o então presidente usava no pulso esquerdo seu velho relógio Aqua, modelo encontrado em qualquer barraquinha de camelô no Brasil. Costuma ser vendido por cerca de 30 reais.
A simplicidade do relógio, quase escondido sob o paletó, contrastava com a imponência dourada do salão real em Manama, capital do Bahrein, país árabe que tem metade do tamanho da cidade de São Paulo e um PIB igual ao da Bolívia. Bolsonaro trocava afagos e risos com o rei, que, por sua vez, ostentava no pulso esquerdo um relógio da fabricante suíça Patek Philippe. O rei é fã do modelo que foi produzido em ouro rosado e talhado exclusivamente para homenagear os 50 anos de presença da marca no Bahrein. Há apenas 25 relógios como aquele no mundo, personalizados com a bandeira bahrenita, vermelha e branca. A peça custa 99 mil dólares, o equivalente a meio milhão de reais.
No encontro que marcou a primeira visita de um chefe de Estado brasileiro ao Bahrein, Bolsonaro convidou o rei para visitar o Brasil e presenteou a majestade com o Grande Colar da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, comenda brasileira destinada exclusivamente a chefes de Estado, em ocasiões que justifiquem o agraciamento. O monarca não deixou por menos: concedeu a Bolsonaro a Ordem do Bahrein – Classe Premium da Ordem do Xeique Isa bin Salman Al Khalifa, um nome extenso que sinaliza uma comenda para lá de importante. Mas não ficou só nisso. Bolsonaro deixou o Bahrein com outro presente oficial: um luxuoso relógio Patek Philippe, mesma marca usada pelo rei. O preço: 51,7 mil dólares, ou 257 mil reais. Faltou só registrar o modesto souvenir oficial junto à União, depois de voltar ao Brasil.
A existência do Patek Philippe presenteado a Bolsonaro só se tornou conhecida na última sexta-feira (11), depois que o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes tornou pública sua decisão a respeito do inquérito da Polícia Federal que investiga o caso. Até então, só se sabia de joias que haviam sido recebidas por Bolsonaro e registradas devidamente na burocracia de Brasília, como manda o rito legal. Esses itens, conforme revelou a investigação, foram vendidos nos Estados Unidos e depois recomprados por pessoas próximas a Bolsonaro – o que alimenta suspeitas de corrupção de lavagem de dinheiro. Enquanto apuravam esse rolo, os agentes da PF acabaram descobrindo a existência do relógio do Bahrein, que, diferentemente dos demais, não estava registrado em lugar nenhum. E seu paradeiro, até agora, continua sendo um mistério.
Fotos do relógio, de sua embalagem e certificado de garantia foram encontradas no computador do ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, que acompanhou a comitiva de Bolsonaro no Bahrein. O militar, que passou a ser pressionado quando o caso foi revelado, em 3 de março, está preso desde maio, por suspeita de ter fraudado cartões de vacinação. Os registros da PF mostram que Cid fotografou e enviou informações sobre o Patek Philippe para seu próprio e-mail no mesmo dia 16 de novembro de 2021, pouco depois do encontro com o rei. No e-mail, já constava o valor do presente, que ele próprio tratou de inserir. Os dados também foram compartilhados com um número de celular registrado por Cid com o nome “Pr Bolsonaro Ago/21”.
Sem ter sido registrado no Gabinete Adjunto de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República, o relógio presenteado a Bolsonaro ficou escondido por meses, sabe-se lá onde, até ter seu destino selado em 13 de junho de 2022, quando foi vendido por Mauro Cid para uma relojoaria americana, durante uma viagem oficial àquele país. O militar fez uma venda casada: além da peça do Bahrein, vendeu um Rolex cravejado de diamantes que Bolsonaro havia ganhado do rei da Arábia Saudita. As demais joias que compunham o kit do Rolex foram repassadas a outra loja americana. Com o negócio dos relógios, ele faturou 68 mil dólares, o equivalente a 347 mil reais, em valores da época. A compradora foi a empresa Precision Watches, segundo um registro de pagamento coletado pela PF.
“Em consulta aos documentos referentes ao acervo privado do ex-Presidente da República JAIR BOLSONARO, disponíveis na presente investigação, não foi identificado nenhum registro do relógio Patek Philippe, fato que indica a possibilidade de o referido bem sequer ter passado pelo então Gabinete Adjunto de Documentação Histórica – GADH (hoje DDH) para realização do tratamento e classificação do bem para definição quando a destinação ao acervo público ou o acervo privado do Presidente da República, sendo desviado diretamente para a posse do ex-Presidente JAIR BOLSONARO”, afirma o relatório da PF.
A piauí confirmou que, de fato, não há nenhum registro oficial do presente do rei do Bahrein ou em nome de qualquer outro membro da realeza. Em março, quando veio à tona o escândalo das joias presenteadas a Michelle Bolsonaro pelo monarca saudita, o núcleo próximo a Bolsonaro iniciou uma “operação de busca” para reaver todos os presentes luxuosos que tinham sido vendidos. Temiam que o Tribunal de Contas da União pedisse a devolução dos itens, o que acabou ocorrendo. O Patek Philippe, no entanto, como não tinha sido registrado e, portanto, era desconhecido do Estado brasileiro, ficou de fora da operação.
Foi o que concluiu a PF: “Tal fato explicaria não ter existido, ao contrário dos demais itens desviados, uma ‘operação’ para recuperar o referido bem, pois, até o presente momento, o Estado brasileiro não tinha ciência de sua existência”, diz o mesmo relatório.
A reportagem perguntou à defesa de Bolsonaro o motivo para o presidente não ter declarado o luxuoso relógio recebido no Bahrein. Três advogados do ex-presidente foram acionados. Até a publicação desta reportagem, não houve resposta. A Embaixada do Bahrein no Brasil foi procurada para se manifestar sobre o caso, mas também não o fez.
O paradeiro do relógio Patek Philippe é um mistério. Se ninguém ainda o comprou, é possível que ele ainda esteja à venda em alguma prateleira da Precision Watches nos Estados Unidos.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí