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    Os pais e as irmãs de Janaina Bezerra, jovem assassinada em Teresina no começo do ano Foto: Vitória Pilar

questões de gênero

Os órfãos do feminicídio

Sem amparo de políticas públicas, famílias que dependiam da renda de mulheres assassinadas vivem entre o luto e a pobreza

Vitória Pilar | 22 ago 2023_13h55
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Enquanto arrumava os cabelos cacheados, vagando entre um cômodo e outro de sua casa, em Teresina (PI), Janaina Bezerra conversava com a mãe. Era sexta-feira, 27 de janeiro, e as duas faziam planos: na segunda-feira bem cedo, Janaina iria ao Centro da cidade comprar pequenas formas de bolo, potes de plástico e produtos de confeitaria. Naquela semana, ela começaria a vender bolos de pote no campus da Universidade Federal do Piauí (UFPI), onde cursava o quarto período de jornalismo. A mãe, Maria do Socorro Nunes, estava orgulhosa. Fazia pouco tempo que a filha conseguira comprar um notebook, o primeiro da família, com o dinheiro que juntou vendendo dindins (também conhecido como sacolé, um doce gelado vendido em saquinhos plásticos) e bombons. O computador atendia às necessidades de Janaina e de suas irmãs mais novas, Vitória e Janiele. Agora, com os bolos de pote, ela pretendia levantar fundos para bancar sua própria festa de formatura, prevista para dali a dois anos.

Os planos não foram adiante. Naquela sexta-feira, Janaina saiu de casa para participar de uma festa organizada pelos colegas de faculdade, mas não voltou. Na última vez em que se comunicou com a mãe, por WhatsApp, disse que estava na companhia de amigas. Naquela madrugada, durante a festa, Thiago Barbosa, mestrando em Matemática, arrastou Janaina para uma sala no Departamento onde ele estudava. Ali, estuprou e quebrou o pescoço da estudante enquanto tentava asfixiá-la. O corpo de Janaina foi encontrado por volta das oito da manhã, por seguranças da UFPI que viram Barbosa carregando-o, já sem vida, pelo campus.

Maria e Adão, pais de Janaina, só souberam que a filha estava morta às 11h, pelos vizinhos. A mãe, que passou a madrugada sem receber notícias, tinha acordado naquele dia sentindo uma dor aguda no peito. O pai se queixava de uma intensa dor de cabeça. Os dois, ao relembrar o momento, dizem que as dores pareciam um pressentimento da tragédia. 

Desde que havia entrado para a universidade, em 2020, Janaina contribuía com a renda da família por meio dos auxílios estudantis que recebia. Na pandemia, com a imposição das aulas remotas, foi beneficiada por um edital que garantiu internet banda larga a estudantes de baixa renda. Pela primeira vez, a família viu um roteador de internet em casa. Além disso, Janaina passou a receber 530 reais por mês, auxílio destinado a estudantes mais necessitados. A renda da mãe, que vendia batata frita na porta de casa, somada ao dinheiro incerto que o pai conseguia trabalhando aqui e acolá como mecânico, raramente passava dos 1 200 reais. O dinheiro mais seguro com que podiam contar era a bolsa universitária. 

Com essa renda, Janaina garantia o supermercado da família e, quando possível, guardava dinheiro ou pagava as contas de água e luz. Além dos bolos de pote, a estudante corria atrás de um estágio remunerado em Teresina quando foi morta. “Janaina tinha uma vontade imensa de dar uma vida melhor para a gente”, conta a mãe, Maria do Socorro. “Queria reformar nossa casa, pintar as paredes e comprar móveis. Ela ia conseguir, porque não desistia de nada. Agora todos os seus sonhos morreram.”

 

O caso de Janaina ilustra um problema crescente no Brasil, país onde os feminicídios continuam a crescer (foram 1 410 casos em 2022, contra 1 337 no ano anterior). Filhos e pais de mulheres assassinadas, além de terem que lidar com o luto precoce, muitas vezes perdem a renda da casa. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) estimou em 2 592 o número de órfãos de feminicídios no ano passado – isto é, crianças e adolescentes que perderam a mãe por um crime de gênero. O cálculo foi feito considerando o tamanho médio das famílias brasileiras, a taxa de natalidade e a idade reprodutiva das mulheres. Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum, explica que o número certamente é maior, já que muitas investigações de feminicídios seguem inconclusas. “Como muitos feminícios são cometidos pelo pai dessas crianças, acaba que esses filhos ficam órfãos de pai e mãe”, diz Bueno, referindo-se ao fato de que o autor do crime geralmente é preso, ou torna-se fugitivo ou – o que não é incomum – comete suicídio depois do assassinato. “Há uma quebra da estrutura familiar de forma completa. E por isso é muito importante pensar políticas de transferências de renda para essas famílias.”. O levantamento do Fórum não calculou a quantidade de parentes, sem ser filhos, que tiveram suas vidas afetadas por feminicídios no ano passado.

Não existe, no Brasil, nenhuma lei de abrangência nacional que obrigue estados e municípios a prestar assistência aos familiares de vítimas de feminicídio. O que há são iniciativas pontuais. O governo do Acre sancionou, no final de 2022, uma lei que prevê auxílio financeiro, psicossocial e psicoterapêutico para menores de idade que perderam a mãe para o feminicídio. Na cidade de São Paulo, a prefeitura regulamentou a lei do Auxílio Ampara, também destinada a crianças e adolescentes cujas mães ou tutoras foram vítimas de feminicídio. Trata-se de um auxílio financeiro que pode ser pago até o beneficiário completar 18 anos, podendo ser estendido até os 24, caso o jovem esteja estudando. Há poucos dias, neste mês de agosto, o governo do Distrito Federal encaminhou um projeto de lei à Câmara Legislativa para garantir assistência financeira temporária aos órfãos de feminicídio, oferecendo até um salário mínimo por criança ou adolescente, a depender, entre outras coisas, da disponibilidade orçamentária. Nenhum dos projetos oferece saída para situações como a da família de Janaina, em que os pais – e não os filhos – da vítima perderam a renda.

 

O direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas de feminicídio já foi tema de uma condenação sofrida pelo Brasil, em novembro de 2021, na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O julgamento tratava de um caso ocorrido em 1998, quando Márcia Barbosa, uma jovem de 20 anos, foi assassinada pelo então deputado estadual Aércio Pereira de Lima (PFL, atual DEM), em Cajazeiras, interior da Paraíba. O processo contra Lima se arrastou por quase uma década. Ele contava com imunidade parlamentar, direito que só perdeu em 2003, quando não conseguiu se reeleger. Neste ínterim, o caso ficou parado na Assembleia Legislativa da Paraíba, que nunca autorizou que o parlamentar fosse julgado. Somente em 2007 Aércio foi levado a júri popular e condenado a dezesseis anos de prisão. A essa altura, a família de Barbosa já havia entrado com uma petição na CIDH, denunciando a lentidão do processo e cobrando providências.

O julgamento na corte internacional demorou para acontecer, mas abriu um precedente importante. O tribunal concluiu que houve negação do direito à verdade e à reparação das vítimas indiretas do crime contra Barbosa – no caso, seu pai, sua mãe e sua irmã. Nos anos em que o processo se arrastava, a família viveu, segundo a corte, uma revitimização. O Estado não oferecia solução para o caso, e a defesa de Aércio Lima responsabilizava Márcia por sua própria morte, afirmando que a jovem mantinha um caso extraconjugal com o deputado. Dizia-se, na imprensa, que havia sido um crime passional.

A Corte Interamericana determinou o pagamento de uma indenização pelos danos materiais e imateriais sofridos pela família de Márcia Barbosa, além da publicação de um resumo oficial da sentença em veículos oficiais e de ampla circulação e a realização de um ato público de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro. A sentença também obriga o Brasil a promover ações educativas, legislativas e judiciais para prevenir, investigar e punir os casos de feminicídio ocorridos na Paraíba. Foi a primeira vez que um tribunal internacional reconheceu danos morais e psíquicos causados à família de uma brasileira vítima de feminicídio. 

Segundo a delegada e doutora em políticas públicas Eugênia Villa, a inclusão de ascendentes das mulheres assassinadas nas políticas públicas é uma discussão ainda incipiente na literatura jurídica. Para que seja reconhecido como direito, precisa fazer parte dos projetos de lei que tratam de violência de gênero. “As questões do feminicídio estão constantemente passando por mudanças por serem questões sensíveis e complexas”, pondera a delegada. “O país já tem avançado quando pensa na situação dos filhos dessas mulheres, mas também precisa lançar um olhar às famílias. E esse olhar precisa necessariamente precisa estar alinhado com a criação das políticas, mas também na conduta das investigações e no cuidado ao tratamento do feminicídio na mídia e pela sociedade. Cada vez que uma mulher é assassinada no Brasil, uma família fica traumatizada. Precisamos olhar para isso.”

 

Mulheres jovens e negras, como Janaina Bezerra, são o perfil mais comum entre as vítimas de feminicídio, conforme demonstrado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. No ano passado, mais de 70% das vítimas de feminicídio tinham entre 18 a 44 anos, sendo que a maioria se concentra na faixa dos 24 anos. Mulheres negras são 61,1% das vítimas. Por outro lado, feminicidas desconhecidos da vítima, como era o caso de Thiago Barbosa, estudante de matemática, são só 8% dos casos. Em geral, os feminicídios são cometidos por companheiros (53,6% dos casos, em 2022) ou ex-companheiros (19,4%).

No que diz respeito a crimes de gênero, os dados do Anuário são alarmantes. Em 2022, todos os crimes cometidos contra mulheres aumentaram. Os feminicídios subiram 6%. Os crimes de estupros bateram recorde: foram 75 mil, uma média de 205 por dia. Dados tabulados com exclusividade para a piauí mostram que feminicídios acontecem sobretudo nos finais de semana, quando os casais estão juntos, tentam se reconciliar, saem para passear. Também são os dias em as delegacias especializadas estão fechadas, as ruas, mais vazias, e a polícia, ocupada com desdobramentos de outros crimes.

Nos dias seguintes ao assassinato de Janaina, estudantes da UFPI organizaram manifestações, vigílias e protestos na instituição pedindo mais segurança no campus. A demora na resposta da universidade levou os alunos a ocuparem o salão principal da reitoria. O reitor, Gildásio Guedes Fernandes, não estava – alegou motivos de saúde. A reitora interina, Regilda Saraiva, foi quem recebeu os universitários e as 24 reivindicações elaboradas pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE). Melhorias na segurança, na iluminação e no transporte dentro da cidade universitária eram as prioridades da lista. Mas havia uma reivindicação à parte: os alunos pediam que a família de Janaina fosse indenizada pela universidade, uma vez que o crime foi cometido dentro do campus.

Até hoje, passados sete meses do assassinato, a família não foi chamada para conversar com a direção da universidade. Pouco depois do crime, divulgou-se que a UFPI ofereceria atendimento psicológico aos pais e às irmãs de Janaina, mas a família afirma que isso nunca aconteceu. Os pais da jovem só estiveram de frente com o reitor em duas ocasiões: no velório de Janaina e na missa de sétimo dia. Sensibilizados com essa situação, um grupo de servidores da universidade, entre professores, técnicos e membros da administração superior, fez doações em dinheiro para custear o enterro da estudante. O Centro Acadêmico de Comunicação Social da UFPI mantém, há meses, uma campanha para providenciar alimentos ou doações à família de Janaina. Em março, assistentes sociais se reuniram para cadastrar os pais dela no Bolsa Família, programa pelo qual têm direito a receber 600 reais mensais. 

Procurada pela piauí, a UFPI informou que uma equipe de psicólogos escolares da instituição esteve na residência de Janaina para prestar acolhimento e primeiros atendimentos à família, mas que os servidores psicólogos de universidades federais são impedidos por lei de realizar atendimentos clínicos. A universidade também informou que, até o mês de fevereiro, o benefício estudantil recebido pela jovem foi pago integralmente. Quanto à indenização sugerida pelos estudantes do DCE, a instituição diz que nestes casos não existe previsão legal, dentro, nos normativos da universidade, para o pagamento de indenização e que a “instituição também não dispõe de dotação orçamentária para efetuar o pagamento”. 

Hoje, no muro marrom e branco da casa onde vive a família de Janaina, ainda está uma plaquinha improvisada que anuncia a venda de dindins, bombons e batata frita. É a principal fonte de renda da casa, embora, em alguns meses, a família não consiga dinheiro para comprar os suprimentos. Quem chega na casa se depara com móveis improvisados, prateleiras repletas de doces e fotos de Janaina espalhadas por quase todos os cômodos. Na sala, um cartaz pede justiça pela morte da jovem.

No último dia 17 de agosto, o julgamento do réu Thiago Barbosa foi adiado por causa de um erro da UFPI: a instituição esqueceu de comunicar aos servidores sobre o julgamento e, por obra do acaso, alguns deles foram sorteados para compor o júri popular (que é formado por sorteio de cidadãos comuns). Eles não poderiam participar, já que trabalham para a universidade, o que configuraria conflito de interesses. Um novo sorteio foi feito, e o julgamento então foi remarcado para 1° de setembro. 

A mãe, o pai e as irmãs de Janaina, ao tocar no assunto, ficam com os olhos marejados. “Ela foi a primeira da nossa família a entrar na universidade. Ia ser a primeira das meninas a mudar de vida”, lamenta o pai. “Quando deito a cabeça no travesseiro e fica tudo escuro, eu choro muito. Não tem um dia que eu não pense na minha menina”, diz a mãe. “Nossa filha não está mais aqui para lutar, mas nós estamos. Vamos continuar por ela.”

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