CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
O resgate do caçador de bruxas
Um diplomata quer reescrever a história do chanceler da ditadura
Ana Clara Costa | Edição 205, Outubro 2023
Vasco Leitão da Cunha era considerado um diplomata brilhante quando assumiu interinamente o Ministério da Justiça, em 1942, auge do Estado Novo, e deu voz de prisão ao poderoso chefe da polícia de Vargas, Filinto Müller, que torturava opositores com choque elétrico. Esse ato de coragem marcou a biografia de Leitão da Cunha, mas acabou obscurecido por sua atuação como chanceler do marechal Humberto Castello Branco, cargo que assumiu logo depois do golpe de 1964.
Sob seu comando, o Itamaraty abandonou os preceitos da Política Externa Independente, em vigor desde 1961, para adotar o alinhamento automático com os Estados Unidos. Nos vinte meses em que permaneceu no cargo, Leitão da Cunha removeu de postos-chave dezenas de servidores considerados simpatizantes da esquerda e autorizou a cassação de quatro diplomatas: Antônio Houaiss, Jayme de Azevedo Rodrigues, Jatyr de Almeida Rodrigues e Hugo Gouthier de Oliveira Gondim.
Nas últimas décadas, pouco se falou de Leitão da Cunha. Até que, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro colocou Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores, que passou a promover pesquisas e debates sobre temas caros à direita. O diplomata Henri Carrières – genro do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o mentor de Ernesto Araújo – propôs um mergulho na até então pouco conhecida gestão de Leitão da Cunha na ditadura.
Com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), entidade de pesquisa ligada ao Itamaraty, Carrières percorreu os arquivos diplomáticos dos anos iniciais do regime. O seu objetivo era mostrar que o legado do diplomata ia além da colaboração com a ditadura. Por isso, a maior parte dos documentos reunidos por ele busca revelar as diretrizes da política externa nas relações com os Estados Unidos, a Europa Ocidental e os países do bloco socialista. Alguns de seus achados, no entanto, confirmam que Leitão da Cunha perseguiu colegas que não marchavam no passo do novo governo.
Carrières organizou A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a política externa brasileira, coleção de documentos diplomáticos inéditos dos anos de 1964 e 1965. Em dois volumes que somam 1 140 páginas, a obra foi publicada pela Funag em 2021. O chanceler de Castello Branco também foi o tema da tese que Carrières desenvolveu no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, defendida neste ano, e para a qual ele teve acesso a escritos pessoais do ex-chanceler.
Na organização e nos comentários do livro, Carrières enaltece o trabalho de Leitão da Cunha na política externa, mas as orientações para o expurgo político que ele promoveu no Itamaraty também se revelam. Um relatório classificado como secreto e sem data, mas atribuído ao período de Leitão da Cunha, descreve o “comunismo no Ministério das Relações Exteriores”.
Segundo Carrières, o documento foi “possivelmente” elaborado pela Comissão de Investigações, um departamento criado pelo chanceler, na esteira do Ato Institucional nº 1, para perseguir opositores do regime. “O problema da esquerdização, no Itamaraty, não é recente. Data de alguns anos o indício da existência de uma célula com nítidos objetivos comunistas. Concretamente, o assunto alcançou grande evidência quando uma carta, de texto suspeito, atribuída ao cônsul João Cabral de Melo Neto […] motivou instauração de rigoroso inquérito.” Essa passagem do relatório referia-se a um grupo de diplomatas de esquerda – entre eles, o poeta João Cabral – conhecido no Itamaraty como “célula Bolívar”. No início dos anos 1950, os membros do grupo foram investigados e temporariamente afastados de seus cargos. Dois deles mais tarde seriam cassados pela ditadura: Houaiss e Almeida Rodrigues.
Outro documento secreto incluído no livro descreve as gestões de Leitão da Cunha sobre o governo uruguaio para controlar as atividades de João Goulart, deposto em 1964, e outros asilados políticos que viviam no país. Num ato mais generoso do chanceler, um telegrama secreto orienta a emissão de um salvo-conduto a Miguel Arraes, governador cassado de Pernambuco, para que ele pudesse deixar o Brasil com destino à Argélia, na condição de asilado.
Procurado pela piauí para comentar o resgate biográfico de Leitão da Cunha, Carrières não respondeu aos contatos da reportagem. O acesso à sua tese no Curso de Altos Estudos também foi negado. Considerado pelos seus pares como um servidor técnico, qualificado e com passagens bem-sucedidas pela Índia e pelo Reino Unido, Carrières é casado com Maria Inês de Carvalho, filha de Olavo de Carvalho. Trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer. Quando todo o gabinete do emedebista foi exonerado na posse de Bolsonaro, Carrières saiu junto. Mas logo foi chamado de volta ao Palácio do Planalto para trabalhar na equipe de Filipe Martins, olavista convicto e assessor internacional de Bolsonaro, que conhecia bem o trabalho do diplomata. Depois, Carrières foi direcionado a um posto na Embaixada do Brasil em Washington, sob a batuta do embaixador Nestor Forster, outro reconhecido admirador de Olavo de Carvalho. Hoje, Carrières dá expediente na embaixada em Assunção, no Paraguai, onde vive com a mulher e os seis filhos. O casal é ultracatólico e educa os filhos em casa.
A trajetória profissional de Leitão da Cunha merece ser mais bem conhecida. Um dos maiores diplomatas de sua geração – nasceu em 1903, no Rio de Janeiro –, ele serviu na Argélia durante a Segunda Guerra Mundial, como delegado brasileiro junto ao Comitê Francês de Libertação Nacional, e lá se tornou próximo do general Charles de Gaulle. Integrou a delegação brasileira na primeira Assembleia Geral das Nações Unidas, em Londres, em 1947. Foi embaixador brasileiro em Cuba durante a revolução, pela qual chegou a ter simpatia – até compreender que Fidel Castro conduziria a ilha para o socialismo. Apesar de seu anticomunismo, Vasco Leitão foi embaixador em Moscou durante o governo João Goulart.
No entanto, a caça às bruxas que Vasco Leitão promoveu no Itamaraty salta aos olhos. Na contramão da releitura de Carrières sobre o personagem, o historiador Rogério de Souza Farias, da Universidade de Brasília, mergulhou em outros arquivos pouco explorados do período da ditadura e descobriu que as quatro cassações realizadas pelo chanceler não foram exigidas pelos militares. (Ele prepara um livro sobre seus achados, ainda sem previsão de lançamento.) Um exemplo: nas cinco oportunidades em que pôde deliberar sobre o caso de Azevedo Rodrigues, Leitão da Cunha defendeu a aplicação da penalidade mais severa. E não havia delito recente para justificar a punição dos outros três diplomatas – Houaiss, Almeida Rodrigues e Gondim –, que foi amparada em fatos antigos.
A pesquisa de Farias aponta que Houaiss foi aposentado por Leitão da Cunha em razão da alegada participação na “célula Bolívar”, já examinada no processo que se encerrara uma década antes. Até a consulta que o Itamaraty fez ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em 1964 para saber se havia fatos desabonadores sobre Houaiss voltou vazia. Mesmo assim, o chanceler enviou a Castello Branco o pedido de cassação, sem que fosse analisada a defesa do diplomata. Farias também descobriu que parte dos depoimentos usados para embasar a cassação de Houaiss foi, na verdade, deturpada, pois eram originalmente em defesa do diplomata.
Em 1983, um ano antes de sua morte, Vasco Leitão da Cunha deu um depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas. Alegou que, longe de perseguir diplomatas de esquerda, sua gestão os salvou de um expurgo ainda mais drástico. “Pude fazer uma proteção em torno do Itamaraty. Uma trincheira”, disse. E, assim, aquilo que o ex-chanceler chamou de “punição revolucionária” teria ficado em “termos aceitáveis”. No mesmo depoimento, Leitão da Cunha elogiou Houaiss: “Ele é generoso. Fala comigo.”