CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Tragédia no parque
Morte e vida de um casal de cisnes-negros
Thallys Braga | Edição 205, Outubro 2023
Os olhos vermelhos de Romeu se fecharam pela última vez no dia 27 de agosto passado, um domingo chuvoso. A cidade era o Rio de Janeiro. O bairro, Laranjeiras. E o cenário de sua morte foi o parque público que lhe serviu de casa por oito anos, a cerca de 100 metros da residência oficial do governador do estado. Às sete da noite, um homem embriagado apareceu por lá, se aproximou do lago artificial onde Romeu flutuava e, sem pensar duas vezes, quebrou-lhe o pescoço. Ato contínuo, o aniquilador saiu pelas ruas com o defunto debaixo do braço.
José Paulo Gonçalves Oliveira não conseguiu ir longe. Na primeira esquina, a 3 minutos do Parque Guinle, foi abordado pelo cliente de um bar. O homem desconfiou que o corpo carregado por Oliveira poderia ser do cisne-negro adorado por crianças, adultos e idosos do bairro. Reteve Oliveira no bar e ligou para Cláudia Lustosa, a voluntária que cuida do parque público. Com a chegada dela, deu-se a seguinte cena: a Polícia Civil foi acionada; suspeito (Oliveira), testemunha (Jeferson Gomes), denunciante (Lustosa) e vítima (Romeu) foram encaminhados à 9ª DP, no Catete; a ocorrência foi registrada como maus-tratos contra animal silvestre; o suspeito se reservou o direito de ficar em silêncio; todos foram liberados.
Lustosa, comissária de bordo aposentada, é uma senhora alta e ruiva de 56 anos. Em 2015, se mudou para um dos prédios que circundam o Parque Guinle e comprou dois cisnes para doar ao lago – um macho e uma fêmea, Romeu e Julieta. “Com eles vieram três marrecos-de-pompom. As crianças amaram”, contou. De saída da delegacia, coube a ela levar o corpo do falecido de volta ao parque. Sob a chuva fina, Lustosa depositou o saco plástico com Romeu na beira da água para que as demais aves pudessem se despedir. O cisne-negro fêmea que dividia espaço com ele foi a primeira ave a se aproximar para o ritual fúnebre. Para além da violência do fato, a morte de Romeu trazia uma tragédia em particular: a segunda destruição de sua família.
O cisne-negro é a maior de todas as aves aquáticas, e também a mais temperamental. Embora pareça romântico, é descrito na literatura ornitológica como o mais estúpido dos pássaros (os adjetivos que lhe atribuem são gentilezas como “agressivo”, “mordaz” e “beligerante”). Nativo da Austrália, foi introduzido como animal de estimação em países europeus e americanos.
Romeu e Julieta nasceram numa fazenda em Nova Friburgo habitada por aves exóticas e lhamas. Aos 6 meses de idade, trocaram a serra pela capital fluminense. Chegaram ao Parque Guinle em 12 de junho de 2015 – o Dia dos Namorados – como um par de avis rara: contra todas as expectativas, se comportavam de maneira gentil e pacífica com os visitantes.
A comunidade de aves no lago foi crescendo pouco a pouco, com marrecos-mandarins, patos-reais, gansos e os brincalhões marrecos-de-pompom. Do casal de cisnes era esperado um monte de filhotes, o que não chegou a se concretizar. Em 2018, Julieta fez um ninho com folhas mortas e gravetos e depositou ali cinco ovos, que Romeu ajudou a incubar. Apenas um filhote vingou: uma fêmea que os moradores de Laranjeiras batizaram de Goiabinha. Crianças, adultos e velhos paravam para fotografar o casal se revezando na criação do pequeno cisne cinza (a penugem só enegrece no sexto mês de vida).
Julieta colocou outros quatro ovos em janeiro do ano seguinte, mas só teve tempo de ver o nascimento de dois filhotes. Certa madrugada, ela brigou com um cão que se aproximou do seu ninho e foi esfaqueada no peito por um ser humano. Lustosa ouviu do seu apartamento a agonia de Julieta e desceu às pressas para levá-la ao veterinário, mas a ave não resistiu. Os agentes da Guarda Municipal disseram não ter visto quem cometeu o crime. O parque estava sem câmeras de segurança. A hipótese levantada por Lustosa é que o dono do cão, com raiva de Julieta, quis dar um fim nela. “Foi uma morte shakespeariana”, lamentou.
Romeu tornou-se insanamente protetor e territorial após a morte de Julieta. Com o pescoço ereto e o bico vermelho apontado para baixo, ameaçava atacar quem se aproximasse muito da beira do lago. Nunca conseguiu avançar sobre ninguém porque uma de suas asas fora propositalmente atrofiada no criadouro, para evitar que levantasse voos altos e longos. Lustosa receava que ele ficasse para sempre só, pois os cisnes-negros tendem a manter o mesmo parceiro pela vida inteira. Certo dia, Romeu acordou dançando com o longo pescoço e as asas. Estava cortejando Goiabinha.
Pai e cria tornaram-se cônjuges, o que não chega a ser raro no reino animal. O casal gerou 25 crias, que foram doadas para outros lagos públicos da cidade. Quando a família de Romeu parecia reestruturada, veio a desgraça de sua morte. Viúva e órfã, Goiabinha ficou com dois filhotes de 2 meses. Dias antes do assassinato de Romeu, as câmeras de segurança do Parque Guinle flagraram dois patos sendo roubados pelo mesmo homem que o assassinou, possivelmente para vendê-los e comprar bebida. A Polícia Civil instaurou inquéritos para investigar os casos. Em 2022, o Instituto de Segurança Pública do Rio registrou 252 casos de crueldade contra animais.
Na segunda semana de setembro, um novo cisne-negro deixou a serra fluminense para dividir o lago com Goiabinha. Lord foi recebido com palmas e lágrimas pelos frequentadores do parque, que ainda tentam assimilar a morte precoce de Romeu, aos 8 anos. Um animal de sua espécie costuma viver 25.
Romeu foi enterrado ao lado de Julieta, num pedaço de terra à margem do lago. Lustosa pretende transformar a área em um jardim com flores brancas e vermelhas. Dezenas de pessoas apareceram para o ritual fúnebre do cisne, apesar da chuva que caía sobre a cidade. Aquela tarde lhes trouxe uma soturna paz, diria Shakespeare. Como na tragédia de Verona, há de viver na memória de todos a triste história do Romeu e da Julieta de Laranjeiras.
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