A barreira da Força Nacional diante dos moradores ilegais da terra indígena Fotos: Raimundo Paccó
A desintrusão de Apyterewa
Pressões políticas, resistência e uma morte: a difícil operação para expulsar invasores da terra indígena mais desmatada no último governo
Ao longo dos quatro anos de governo Bolsonaro, a Apyterewa se tornou a terra indígena mais desmatada no país. Localizada entre os municípios de São Félix do Xingu e Altamira, no Pará, ela perdeu 319 km² de floresta nativa entre 2019 e 2022, uma área quase igual à da cidade de Belo Horizonte. O ritmo da destruição na Bacia do Xingu chegou a duzentas árvores derrubadas por minuto. Tornou-se, assim, o retrato de um período no qual o desflorestamento em áreas indígenas e unidades de conservação brasileiras cresceu 94%.
É dentro de Apyterewa que cerca de trezentos agentes de instituições federais deram início, em 2 de outubro, a uma grande operação de desintrusão, prevista para durar ao menos noventa dias. Eles cumprem uma ordem judicial expedida por Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, de junho de 2023, atendendo um pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), de agosto do ano passado.
A missão é remover moradores que ocupam irregularmente a área, a maior parte concentrada na Vila Renascer, um aglomerado de mais de duzentas moradias ilegais. O Censo do IBGE, iniciado em 2020 e divulgado no ano passado, registrou 616 moradores. O comando da operação de desintrusão, porém, estima que estão ali atualmente cerca de 3 mil pessoas de mil famílias. São moradores que vivem sobretudo trabalhando na agricultura e na pecuária, com gado criado em pastos abertos pelo desaparecimento da floresta nativa. A manutenção dessas pessoas ali, claro, é de grande interesse dos pecuaristas ilegais da região.
A Vila Renascer começou a ser erguida em 2016, em acampamentos que residentes ilegais montaram nos arredores de uma base da Funai. Na época, já havia uma determinação do STF para a retirada de não indígenas daquele território, ignorada pelo governo de Michel Temer. Estimulados pela ausência do Estado na região, os invasores continuaram chegando, e a vila se tornou um polo de resistência às tentativas do governo de liberar o território.
Em poucos anos, ganhou cara de cidadezinha. Tem dois postos de gasolina, irregulares, um deles da ex-vereadora Lauanda Guimarães (PRB, atual Republicanos), do município de Alto Horizonte, de Goiás, cujo mandato foi cassado sob acusação de tentar extorquir o prefeito local. Há ainda bares, mercados e até uma escola municipal chamada Recanto Feliz 2 e dirigida pela professora Cleuma Cambraia, que afirma ser funcionária da prefeitura de São Félix do Xingu. A escola fica num barracão de madeira coberto por telhas de fibrocimento, conhecidas por dar pouco ou nenhum conforto térmico aos ambientes. Segundo Cambraia, cerca de trezentas crianças estudam ali. A área abriga ainda quatro igrejas neopentecostais, frequentadas até por fiéis de outras religiões. “A vila não tem uma lanchonete ou uma pizzaria, então acabamos indo lá mesmo sendo católicos”, diz a docente.
Os servidores dos órgãos federais responsáveis pela desintrusão saíram dos municípios de Marabá, Tucumã e São Félix do Xingu, todos no Pará, em comboios até as bases da operação. A comitiva que desembarcou no Pará estava preparada para passar pelo menos noventa dias no local. Eles representam órgãos como Secretaria-Geral, Ministério dos Povos Indígenas, Funai, Força Nacional, Abin, Incra, Ibama, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), Comando Militar do Norte, Ministério do Trabalho e Emprego e Secretaria de Comunicação Social do governo Lula.
O domingo, 1º de outubro, foi o dia da chegada dos grupos. A operação começou de fato na segunda-feira. Logo cedo, oficiais de justiça passaram a bater de porta em porta nas casas dos moradores, para avisar que tinham trinta dias para deixar os imóveis. Os primeiros locais fechados pela operação foram os postos de gasolina e o mercado Bahamas, nome inusitado para um local cujo clima seco e empoeirado lembra bem mais um cenário de faroeste.
Uma barreira com duas viaturas e oito homens da Força Nacional foi montada na entrada da vila. Ninguém entra, ninguém sai. Cerca de setenta moradores haviam ficado do lado de fora. A maioria usava roupas que protegem do sol, próprias para quem trabalha na roça. Alguns vestiam camisas de clubes de tiro locais. Eram 14 horas e eles só poderiam entrar novamente a partir das 16 horas, quando o acesso à área embargada voltaria a ser permitido. “Quem deixar o local agora já sai avisado de que não poderá entrar mais tarde”, explicou o sargento da Força Nacional que comandava aquela patrulha.
As pessoas do lado de fora afirmavam ainda não ter sido notificadas e ter poucas informações sobre a operação. Algumas não moravam na Vila Renascer, mas suas casas também estavam dentro dos limites da Terra Indígena. A eles se juntavam também moradores de outras duas vilas – São Francisco e Teilândia – que ficam do lado de fora da terra indígena, mas foram lá para protestar. A resistência era clara. “Tenho oito filhos. Só saio daqui morto”, disse um homem que não se identificou.
A indigenista Juliana Almeida diz que agentes da Funai devem permanecer no local mesmo depois do prazo inicialmente previsto para a operação. “Falamos em noventa dias como uma etapa inicial, mas depois vem a manutenção, que perdura por meses.” Nesse segundo momento, associações indígenas serão chamadas para discutir estratégias de utilização do território. “O ideal dessa operação é que a sociedade da região entenda e reconheça isso aqui como área indígena, protegida, assim como se reconhecem áreas com cerca”, disse Almeida, frisando que a declaração é pessoal, e não estava sendo feita em nome da Funai.
Os moradores da Vila Renascer estavam desconfiados com a imprensa. Dizem que os jornalistas distorcem o que acontece ali e, em suas matérias, chamam os moradores de grileiros, garimpeiros ou pistoleiros. Uma mulher com cerca de 40 anos gritou que ninguém ali deveria falar com os repórteres que cobriam a desintrusão. A equipe da Repórter Brasil registrou em uma reportagem que foi agredida e ameaçada por um morador da vila.
A reportagem da piauí chegou ao local na tarde de segunda-feira e deixou a operação na manhã de quarta, por questões de segurança.
Embora a maioria dos moradores tenha se recusado a falar com a imprensa, Antonieta Gaspar Cambraia, matriarca de uma família de seis pessoas (entre elas a professora Cleuma Cambraia), aceitou gravar uma entrevista para a piauí. Maranhense de nascimento, Cambraia diz que vive com o marido na vila há cinco anos, depois que um lote foi oferecido ao casal. “Ganhamos da população.” Ela tem 60, e o marido, 61 anos. Ao chegar, montaram uma mercearia que também serve refeições. “Coragem a gente tem, né? Um dia arrumamos o lote e no outro já viemos com a mudança, pois a gente não pode parar de trabalhar que morre de fome.”
Aos poucos, o negócio se expandiu. Montaram ao lado do mercado quatro quartos para hospedagem. Em seguida, ergueram outros quatro numa casa do outro lado da rua. As acomodações têm camas de solteiro ou casal, ganchos para rede nas paredes, ventilador pequeno e wi-fi.
A hospedaria ficou sem internet logo no segundo dia da operação, com o corte geral de energia elétrica, que paralisou o bombeamento de água e afetou parte do abastecimento da vila.
Depois da notificação dos ocupantes, a operação do governo avançou sobre a estrutura de serviços prestados aos moradores da Vila Renascer. Servidores da Agência Nacional de Petróleo lacraram as bombas dos dois postos de gasolina e confiscaram o combustível. Botijões de gás vendidos ilegalmente também foram apreendidos.
Sem luz, as condições para permanência na vila iam ficando mais insalubres, mas afetaram também os agentes de segurança que cumpriam turnos longos, trajados com uniformes quentes e portando armamento pesado. Alimentos estragavam e a falta de ventiladores e ar-condicionado deixava o calor mais difícil de suportar. Ao final do dia, houve um acordo com a comunidade e a energia foi religada – medida que se estendeu para os dias seguintes, assim como a entrada na Vila, que passou a ser franqueada. A barreira montada na entrada do local passou a funcionar apenas como um ponto de controle da Força Nacional sobre quem acessava a Renascer.
Duas semanas depois do início da operação, a tensão crescente culminou na primeira tragédia, quando o ocupante Oseias dos Santos Ribeiro foi morto com um tiro de fuzil. Horas depois, a operação confirmou que o disparo havia sido feito por um agente da Força Nacional. “Na última segunda-feira (16/10), um dos invasores tentou tomar a arma de um dos policiais da Força Nacional de Segurança, resultando em um tiro que, infelizmente, levou a óbito o invasor”, diz a nota oficial.
O impacto do tiro ressoou a cerca de 115 km dali, nas aldeias em que vivem os Parakanã. Indígenas começaram a deixar suas casas temendo retaliação dos invasores. Lideranças da aldeia Apyterewa relatam que as restrições no território também já os atingem. A sede de São Félix do Xingu não é um local seguro para transitarem, o que os coloca em situação delicada caso precisem de assistência de saúde emergencial. Até em Altamira, que fica bem mais distante das aldeias, os indígenas relatam já terem recebido ameaças.
Wenatoa Parakanã, liderança da Associação Tato’a, dos Awaeté, relatou à piauí uma dessas ameaças, que ela ouviu de um amigo que trabalha em um mercado próximo à aldeia Tekatawa. “Um homem, idoso, de cabelo branco, disse que comprou uma voadeira [embarcação motorizada] para pegar os indígenas”, contou Parakanã. “Ele disse: ‘Tenho dinheiro para gastar, tenho dinheiro para pegar os indígenas. Vão me pagar por tudo que estão fazendo com a gente.’”
Apesar da insegurança, há otimismo entre os Parakanã em relação à operação. Ty’e Parakanã, cacique na Aldeia Apyterewa, lembra que já são décadas de espera por uma ação efetiva do governo federal. “Muitas castanheiras foram perdidas nesse tempo.”
A Terra Indígena Apyterewa é habitada pelos Parakanã, que são descendentes dos indígenas Apyterewa e se autodenominam Awaeté, que significa “gente de verdade”, em oposição a Akwawa, designação dos estrangeiros ou invasores, considerados inimigos. O povo iniciou conversas com representantes do governo brasileiro em diferentes ocasiões nos anos 1970 e 1980.
Quando a Terra Indígena Apyterewa foi homologada, em 2007, havia 218 parakanãs vivendo ali. Hoje, a Funai estima que haja 730 indígenas no território. A aldeia principal fica a cerca de 115 km da Vila Renascer. É comum que a distância seja usada como argumento para justificar a invasão. “A gente nunca viu um índio nessa terra indígena”, ouvimos de moradores da vila. O laudo antropológico usado para fundamentar a homologação da terra para os povos originários afirma que os Parakanã vivem da caça e da coleta e percorrem longas trilhas por seu território.
“Se você pegar um grande latifúndio, não vai ver o fazendeiro em todo lugar da propriedade”, compara a indigenista Juliana de Almeida, coordenadora da Funai na operação. “Os Parakanã têm a característica de fazer ondas de viagens. Quem trabalha com eles sabe que, quando começam as peregrinações, vão longe.” Ela explica também que, à medida que as invasões se intensificaram, os Parakanã foram empurrados para a borda Oeste da Terra Indígena Apyterewa, muitas vezes de forma violenta – nesse processo, uma aldeia inteira foi incendiada em 2007, diz a indigenista.
Almeida conta que o primeiro estudo feito para delimitar o território tradicional dos Awaeté concluiu que eles ocupam uma área de quase 1 milhão de hectares (10 mil km²). No entanto, a porção que acabou homologada na Terra Indígena Apyterewa foi menor, de 773 mil hectares (7,7 mil km²). Para a indigenista, a fixação dos invasores na Vila Renascer configura mais uma tentativa de diminuir o território dos Parakanã. “Os grupos que atuam aqui têm métodos, estratégias de resistência às vezes violentas, e com um financiamento pesado por trás”, diz Almeida, em uma referência a pecuaristas ilegais que empregam os moradores. “Churrasco o dia inteiro não é barato, né?”, continua, aludindo ao farto consumo de carne entre as famílias assentadas na vila.
Trata-se de uma área sob disputa desde a década de 1980, quando a degradação ambiental avançou. No passado houve outras tentativas do governo de expulsar os invasores da terra indígena. Numa delas, em 2011, cerca de 50 mil cabeças de gado foram retiradas. A falta de fiscalização, porém, permitiu que os invasores logo voltassem, e com mais força.
O governo já implementou ações para reassentar pessoas que viviam ilegalmente no espaço, mas muitas delas acabaram retornando. “Todos os ocupantes que estavam na terra indígena na época em que a demarcação da área foi oficialmente confirmada já receberam indenização ou receberam lotes em assentamentos da reforma agrária, mas muitas pessoas se recusaram a sair, mesmo tendo recebido indenizações ou lotes”, afirma o site do governo federal sobre a operação de desintrusão que está em curso.
A desintrusão de Apyterewa deveria ter começado ainda em setembro, mas o envio da Força Nacional para a região foi retardado por pressão do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), do prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber de Souza Torres (MDB), e de seu irmão, o deputado estadual Francisco Torres de Paula Filho, o Torrinho (Podemos). Procurado pela piauí, o governo do Pará não se manifestou.
Em 2018, Torres passou um mês preso por desvios de recursos públicos em seu primeiro mandato. Foi libertado após recursos de seus advogados. Procurada pela reportagem para comentar a operação, sua assessoria enviou o vídeo de uma live da prefeitura em que Torres anuncia a vinda de uma Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados até a Vila Renascer, a fim de de preparar um relatório a ser apresentado aos ministros Flávio Dino, da Justiça, Rui Costa, da Casa Civil, e Márcio Macêdo, da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Durante a operação de desintrusão, funcionários do Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, estavam cadastrando as famílias que viviam na terra indígena. As informações coletadas no cadastro são cruzadas com as bases de dados do Incra e de outros órgãos do governo, para identificar moradores que fossem elegíveis para serem assentados na região – mas fora da terra indígena. Não há prazo previsto para que isso aconteça. O cruzamento de dados deve também ajudar a identificar famílias que já foram previamente assentadas ou indenizadas em tentativas anteriores de desintrusão da área, e que não teriam mais direito ao benefício.
A indenização ou o reassentamento pode acontecer quando os moradores são considerados ocupantes de boa-fé. É o caso de Nayana Alves Lima, que diz estar ali desde por volta do ano 2000 – antes, portanto, da homologação da terra indígena e do início da vila. Ela mora em uma bela casa de alvenaria com varanda, um quintal com uma mangueira na entrada e um pomar com milhares de cacaueiros nos fundos, segundo suas contas. Relata que, em 2010, a Funai lhe ofereceu uma indenização de 93 mil reais, que recusou por considerar o valor injusto e protestou na Justiça, onde o caso se arrasta até hoje.
Lima afirma que comprou aquelas terras e possui um documento de cessão de direito. Foi cadastrada pela equipe do Incra – era o quinto cadastro ao qual ela era submetida, segundo suas contas. “O Incra chega aqui todo gentil e pega nossos dados, mas quem dá sequência depois é outra equipe, que nunca viu a gente, e fica por isso mesmo”, disse a moradora. Ao ouvir a queixa de Lima, os servidores federais não protestaram.
Muitos moradores da Vila Renascer relatam terem comprado terrenos ali na expectativa de que teriam títulos de propriedade legítimos sobre aquele pedaço de chão. Era tudo feito com base em acordos verbais, sem documentos ou escrituras. Um morador, que não quis se identificar, chorava ao lembrar da última operação de desintrusão, em 2020, quando afirma ter tido sua casa queimada. Sem ter para onde ir, ele voltou a erguer um barraco na terra indígena. Na iminência de ser expulso mais uma vez, perguntava-se para onde levaria e como transportaria as 130 cabeças de gado que ele cria ilegalmente na terra indígena.
Em meio a declarações dos políticos e uma série de boatos, havia moradores confiantes de que a operação acabaria suspensa, como aconteceu em tentativas anteriores de desintrusão da terra indígena. Na última delas, em 2020, os ocupantes ilegais chegaram a cercar uma base do Ibama montada na vila e afastaram a Força Nacional com coquetéis molotov. Mesmo quando a expulsão dos moradores era bem-sucedida, muitos acabavam voltando depois que os agentes do governo se retiravam da área.
A esperança era alimentada pelo rumor de que logo um advogado chegaria à vila para representar os moradores. “E o João Cleber está em Brasília”, disse um morador, referindo-se ao prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber de Souza Torres, o grande incentivador da ocupação ilegal da Apyterewa – o MPF, inclusive, pediu seu afastamento do cargo por um vídeo que o prefeito gravou e disseminou, falsamente afirmando que a operação seria suspensa pelo presidente Lula. Na região, fala-se que os nomes de Torres e de Torrinho, seu irmão, costumam abrir portas e fechar bocas no sudoeste paraense. Pecuaristas associados aos latifundiários da região, eles estiveram, desde o início da operação, fazendo conexões entre Brasília e São Félix em busca de impedir a operação.
Entre os apoios conquistados pelos irmãos, estão o do deputado federal José Priante (MDB-PA), presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, e do senador Beto Faro (PT-PA), que chegou a gravar um vídeo junto com Torrinho afirmando que tanto ele como o governador Helder Barbalho atuavam junto ao governo federal para garantir que as pessoas retiradas de lá pudessem seguir suas vidas.
Por volta de 17 horas do primeiro dia da operação, quando o acesso à vila tinha sido liberado pela Força Nacional, chegou uma comitiva de caminhonetes, muitas delas com adesivos de fazendas nos vidros traseiros. Uma delas trazia mais um boi para o churrasco dos moradores. Pertencia a um fazendeiro e trazia, no banco do carona, o esperado advogado Vinicius Borba, que diz representar os moradores da Vila Renascer. Muito ativo nas redes sociais, Borba havia postado pouco antes um vídeo em sua conta no Instagram afirmando que estava sendo impedido de acompanhar os oficiais de justiça que notificavam os moradores.
Sempre equipado com um roteador de internet Starlink, do bilionário Elon Musk, Borba consegue fazer pressão em tempo real, conectado à internet mesmo nas áreas mais remotas. Ao chegar ao local do churrasco, pediu a palavra, acessou seu perfil no Instagram e iniciou mais uma live falando aos moradores sobre as iniciativas para interromper a operação ou estender o prazo dado aos moradores para desocupação. Em seu discurso, Borba se identificou como membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA, incentivou os moradores a respeitar o trabalho da Força Nacional, que cumpria ordens, e incitou os moradores a desconfiar da imprensa.
Questionar o rito da operação e apelar para o drama vivido pelas pessoas retiradas da terra indígena são algumas das principais estratégias de Borba. O advogado costuma louvar o comportamento ordeiro dos ocupantes ilegais da terra indígena. Um de seus clientes, porém, foi detido no segundo dia de operação: na fazenda de Derly dos Santos Ramiro foi encontrada uma carabina sem registro e 30 gramas de maconha, além de um veículo e itens pessoais de Lauanda Guimarães e Rogério Peixoto, o Goiano. O próprio Borba estava hospedado na fazenda, mas disse não ter tido contato com os dois moradores da Renascer, considerados foragidos. Seu cliente foi liberado após pagar fiança de 7 mil reais.
Eram por volta de 20h30 quando o comandante da operação desceu para falar com a imprensa. Nilton Tubino, assessor da Secretaria-Geral da Presidência da República, chegou à terra dos Parakanã com a credencial de ter liderado a bem-sucedida desintrusão da Terra Indígena Alto Rio Guamá, também no Pará. Tubino sabia que a empreitada que começava ali seria bem diferente da que ele viveu na terra habitada pelos Tembé. Ali, foi relativamente fácil costurar um acordo envolvendo os ocupantes ilegais e o poder público. “Havia uma certa resistência de prefeitos e vereadores, mas quando viram que era irreversível, passaram a cooperar, pois era interesse deles atender aquele público”, disse Tubino. “Pode ser que aqui a prefeitura veja que é um caminho irreversível e coopere também.”, disse, em tom diplomático.
Entre as complexidades que enxerga na operação atual, Tubino cita o histórico de violência no campo daquela região. Logo no primeiro dia, duas armas ilegais foram apreendidas. No quarto dia, dois trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados em inspeção à Fazenda Primavera, que pertence ao vice-prefeito de Tucumã, Wanderley Dias Vieira (PSD). Outra grande dificuldade será identificar e punir os mandantes ou patrocinadores das invasões. Tubino informou que há oito inquéritos da Polícia Federal investigando de onde vêm o dinheiro e as ordens para as ocupações.
Trata-se de dinheiro graúdo. Hoje, o comando da operação estima que haja entre 60 mil e 100 mil cabeças de gado irregular na Terra Indígena Apyterewa – o pasto cobre 98% das áreas desmatadas ali. Em agosto, toda a área havia sido embargada pelo Ibama, que determinou que o gado teria que ser tirado dali. Os rebanhos criados ali valeriam 200 milhões de reais, se fossem criados em terras regulares. Para vender esse gado, os fazendeiros com maior poder aquisitivo “esquentam” o rebanho, levando os animais para fazendas fora de área ilegal, a fim de conseguir as guias da Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará).
Os esforços para atrasar a ação deram resultado, e os ocupantes ilegais do território conseguiram fazer com que sua saída dali, que deveria ocorrer “imediatamente”, segundo a notificação judicial, fosse feita num um prazo de trinta dias, por autorização do comando da operação. Porém, as restrições à entrada de veículos de abastecimento de alimentos e outros itens básicos à vila trouxe desgaste aos invasores.
A dias do fim do prazo (a próxima terça, dia 31), uma saída pacífica em massa parece improvável. Entre as 851 casas visitadas pelo Incra, é maior o número de moradias onde os ocupantes recusaram cadastro para assentamentos no programa de reforma agrária (175) do que aquelas onde a resposta foi positiva (113). Na maior parte dos casos, os moradores estavam ausentes no momento da visita.
A estratégia de limitar a energia elétrica foi abandonada – para a própria operação ela é um serviço essencial. Paralelamente, o Ministério Público Federal aperta o cerco contra a pecuária ilegal na região. No dia 20, o órgão propôs 31 ações criminais e 17 ações civis públicas contra os responsáveis pela venda ilegal do gado criado dentro da terra indígena. Entre os alvos das ações estão grandes fazendeiros e frigoríficos da região. Os pedidos de indenização por esses crimes somam 76,7 milhões de reais, dos quais 56,6 milhões serão destinados à recuperação ambiental da área e o restante aos Parakanã.
Parte da boiada foi retirada, mas não há estimativa oficial sobre o número de cabeças.
A operação de desintrusão organizada pelo governo também previa retirar os invasores de uma outra terra indígena, a Trincheira-Bacajá. Ela tem 1,651 milhão de hectares (16,5 mil km²) e é habitada pelos povos Mebengôkre, Kayapó e Xikrim, com uma população de 1033 indígenas distribuídos por 31 aldeias. Tomada por invasores envolvidos com mineração, grilagem, desmatamento e pesca ilegal no Rio Bacajá, foi a terceira terra indígena mais desmatada durante o governo Bolsonaro, com 108 km² derrubados.
É jornalista e desde 2016 trabalha com comunidades tradicionais na Amazônia
É fotojornalista. Trabalhou no Correio Braziliense e na Folha de S.Paulo e dirigiu o longa-metragem Consagração
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