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    Foto: Ahmet Yarali/Getty Images

questões urbanas

Uma epidemia silenciosa

Apesar da subnotificação, dados do SUS revelam quadro grave de violência doméstica contra crianças em São Paulo

Paulo Saldiva | 27 out 2023_14h19
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Em memória do menino Ezra, assassinado aos 7 anos pela mãe, em 2015, na capital paulista, e que teve o corpo colocado por ela em um freezer, com a ajuda do padrasto 

 

Em julho de 1962, Charles Henry Kemp – nascido Karl Heinz Kemp, no ano de 1922, na então cidade alemã de Breslau, hoje integrada à Polônia como Wroclaw – publicou, junto com alguns colaboradores, um artigo seminal no prestigioso Journal of the American Medical Association. Nesse texto, ele criou uma nova categoria na prática médica: a Síndrome da Criança Espancada. A introdução do artigo, hoje um clássico, é clara, incisiva e cortante: “A síndrome da criança espancada, uma condição clínica em crianças pequenas que sofreram abuso físico grave, é uma causa frequente de lesões permanentes ou morte. A síndrome deve ser considerada em qualquer criança que apresente evidências de fratura de qualquer osso, hematoma subdural, déficit de crescimento, edemas de tecidos moles ou hematomas na pele, em qualquer criança que morra repentinamente ou onde o grau e tipo de lesão esteja em desacordo com a história dada sobre a ocorrência do trauma.”

Um pouco mais adiante, Kemp e seus colegas apontam a responsabilidade dos profissionais de saúde para a detecção da violência contra os pequenos: “Fatores psiquiátricos são provavelmente de importância primordial na patogênese do transtorno, mas o conhecimento desses fatores é limitado. Os médicos têm o dever e a responsabilidade para com a criança de exigir uma avaliação completa do problema e garantir que não ocorra nenhuma repetição esperada do trauma.”

A incorporação à medicina do conceito de Violência Contra a Criança (VCC) e de suas consequências ganhou tração desde que o artigo foi publicado, seis décadas atrás. O problema, desde então, adquiriu novos contornos, saltando das esferas física e psíquica consideradas em níveis individuais para atingir outras dimensões, de caráter social.

A VCC é hoje um grave problema no Brasil, como atestam dados do SUS, e vem ganhando contornos de epidemia. Mas, diferentemente do que acontece com doenças, a epidemia de violência contra crianças é silenciosa e invisível. Cabe ao poder público desvendá-la.

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, em 2002, um relatório global sobre a violência, no qual sublinhava importantes conceitos sobre sua tipologia e consequências para a saúde humana. O texto define diferentes modos de classificar a violência como:

a) Autoria

  • Autoinfligida (suicídios ou abuso de substâncias nocivas à saúde);
  • Interpessoal;
  • Coletiva;

 

b) Natureza 

  • Física;
  • Sexual;
  • Psicológica;
  • Maus-tratos ou negligência;

 

c) Tipo de Vítima

  • Crianças;
  • Idosos;
  • Portadores de limitações físicas ou mentais;
  • Gênero;
  • Grupos culturais ou étnicos.

 

Embora simplificados, os critérios da OMS ajudaram a alargar o entendimento do assunto e resultaram na proposição de políticas públicas que contribuam para reduzir as consequências da violência. No caso das crianças, as consequências não são nada desprezíveis. Pesquisas clínicas e epidemiológicas conduzidas nos últimos vinte anos revelaram que atos de violência contra crianças tendem a acarretar problemas físicos e psíquicos de longo prazo. Diferentes estudos demonstraram, por exemplo, que a VCC aumenta de maneira significativa o risco de desenvolvimento de transtornos psiquiátricos (depressão, ansiedade, tendências suicidas e abuso de substâncias psicoativas) e doenças físicas crônicas (incluindo as cardiovasculares, respiratórias e autoimunes, obesidade e diabetes), resultando em longevidade reduzida. Há também fortes evidências de que esses riscos podem ser transmitidos hereditariamente, através de modificações epigenéticas dos mecanismos reguladores de stress.

É papel da saúde pública no Brasil detectar e remediar a VCC. Mas, como é um problema que passa por diferentes dimensões, é fundamental que a saúde se articule com outras áreas.

Casos de crianças atendidas pelo SUS são registrados de forma compulsória desde 2011. No entanto, como relatado em artigo assinado por Ana Carine Arruda Rolim e colaboradores, é possível que haja subnotificação de casos de VCC. Isso se dá, entre outras razões, por falta de confiança dos profissionais de saúde nas entidades de proteção aos menores e receio de se envolverem em um processo legal, caso ele ocorra. Pesa também a condição socioeconômica do paciente, além de outros fatores não facilmente quantificáveis, como o nível de violência local e redes sociais de apoio, que podem influenciar o diagnóstico ou não de VCC.

Mesmo considerando essas limitações e a provável subnotificação, os dados disponíveis apontam para um cenário grave. Quando se analisa os dados de violência sexual contra crianças em uma metrópole como São Paulo, percebe-se que os casos se distribuem de forma heterogênea pela cidade, conforme demonstrado nos mapas a seguir, montados com informações do Datasus:

As cores que tingem cada distrito indicam a frequência dos crimes praticados contras as crianças. Quanto mais escura a cor, maior a incidência desses crimes em relação à população. Há um padrão para ambos os sexos: as taxas de violência são mais altas nas regiões periféricas de São Paulo e na porção central da cidade. Essas duas zonas de maior violência – a central e a periférica – são separadas por um cinturão de bairros com menos casos.

Os mapas mostram que a insegurança das meninas é muito mais espalhada pelo território paulistano. Aparece em quase todas as regiões e distritos. Pode-se dizer, sem meias palavras: a maior parte da cidade não pode ser considerada segura para crianças do sexo feminino.

Além disso, os mapas indicam que distritos contíguos podem ter taxas discrepantes de violência, apesar da proximidade geográfica. É importante investigar se as altas taxas de violência contra crianças em alguns distritos se deve a um ambiente mais hostil ou a uma maior capacidade de diagnóstico e notificação. O inverso também deve ser apurado.

 

A resposta a esse problema demanda esforço e estratégias de maior abrangência do que aquelas que vêm sendo adotadas até aqui. Conectar os bancos de saúde já existentes pode contribuir para a construção de algoritmos de decisão capazes de orientar o diagnóstico da violência contra as crianças. Por exemplo: o Sistema Nacional de Nascidos Vivos fornece dados do bebê e da mãe, incluindo a sua idade e características do parto. É uma fonte importante para avaliar os casos de gravidez em crianças e, consequentemente, investigar a eventual violência que foi cometida contra elas. É importante sistematizar esses dados.

Do mesmo modo, unindo-se os dados de internações hospitalares com a notificação compulsória de violência contra crianças e os dados de mortalidade seria possível estabelecer algoritmos classificatórios em condições de identificar com maior precisão os casos de VCC, conferindo maior efetividade às medidas de proteção já previstas pela legislação brasileira.

Cuidando-se dos aspectos éticos da preservação da identidade da vítima e de sua família, um sistema de diagnóstico de violência contra a criança traria mais clareza para a análise geográfica desse fenômeno. Dentro de cada distrito certamente há diferenças entre as taxas de VCC. Em face disso, duas medidas podem ser tomadas. A primeira delas é a definição de áreas de apoio prioritário. A segunda é a comparação de áreas com altas e baixas taxas de VCC. Essa análise torna possível identificar soluções locais que permitirão reduzir o risco para os pequenos.

Mesmo reconhecendo o papel central da saúde, é fundamental que haja o envolvimento também da educação no trato dessa crise. Isso ajudaria na detecção de casos de violência. Por exemplo: como se sabe, as creches recebem crianças que voltam para casa após o banho. Se as cuidadoras fossem capacitadas para o diagnóstico, de modo a saber distinguir quedas acidentais e agressões deliberadas, muitas crianças poderiam ser salvas. Questionários sobre o comportamento e o estado de espírito dos pequenos também poderiam auxiliar. A conexão entre as redes de saúde e as creches e escolas pode ampliar a capacidade de identificação de casos de VCC e, com isso, estabelecer medidas de prevenção ou mesmo de reabilitação.

O Brasil é capaz de produzir ciência que concretize o que está nas leis de proteção à criança. É chegado o momento de produzir, para isso, parcerias entre agentes públicos e instituições de pesquisa – fórmula necessária para fazer o que se poderia chamar de “ciência da implementação”. Há recursos disponíveis para isso. E principalmente: trata-se de nosso “dever” e “responsabilidade”, para usar dois termos empregados por Kemp, em 1962.

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