CRÉDITO: CAIO BORGES_2023
Javier Milei, Argentina e a construção de um novo “antiprogressismo”
Ascensão de Milei é mais um caso na América Latina de definhamento da direita tradicional e a ascensão das direitas puros-sangues
Fernando de Barros e Silva | Edição 206, Novembro 2023
O texto abaixo foi publicado na piauí_206, no início de novembro, com o título “Coringa nas ruas”. No domingo, dia 19, Javier Milei venceu o segundo turno da eleição presidencial argentina. Ele tomará posse em 10 de dezembro
Tão logo vieram a público os resultados do primeiro turno da eleição presidencial na Argentina, analistas correram para destacar a grande surpresa: Sergio Massa, representante do peronismo e candidato da situação, havia alcançado 36,68% dos votos. Javier Milei, o candidato da extrema direita, havia ficado supreendentemente atrás do ministro da Economia argentino, com quase 30%.
Até o dia da votação, havia alguma expectativa de que Milei pudesse liquidar a fatura no primeiro turno – pela legislação argentina, para que isso ocorra, o candidato deve ter 45% dos votos ou, então, 40% dos votos, desde que o segundo colocado não alcance a marca dos 30%. Massa e Milei voltarão a se enfrentar no dia 19 deste mês de novembro.
Apesar da sensação de revés, à luz da consagração que as pesquisas sugeriam ser possível, o outsider da direita radical superou com boa margem a terceira colocada, Patricia Bullrich, representante da direita convencional. Bullrich, ex-ministra da Segurança de Mauricio Macri, o liberal que antecedeu Alberto Fernández na Casa Rosada, teve um desempenho frustrante.
Com a economia do país em frangalhos – inflação anual batendo em 140%, dólar na estratosfera, retração do PIB, desalento generalizado –, os argentinos decidiram que a disputa final será entre os responsáveis pela crise e o candidato que promete apagar o incêndio com um lança-chamas na mão. O famoso bordão “É a economia, estúpido”, sempre usado para explicar o comportamento do eleitorado, desta vez não ilumina o caminho.
Se a nota surpreendente do primeiro turno ficou com a demonstração de resistência do peronismo, a novidade histórica da eleição se encontra na força social da extrema direita, que já se viabilizou como opção de poder, seja qual for o resultado do segundo turno entre los hermanos. As chances de Milei sair vitorioso aumentaram depois que Bullrich e Macri declararam seu apoio ao candidato ultraliberal.
Ocorre com o nosso vizinho mais importante o que vimos em anos recentes em vários países da América Latina (e para além dela) – o definhamento da direita tradicional, adaptada ao rame-rame democrático, e a ascensão das direitas puros-sangues, ou alternativas, empenhadas em tripudiar em todas as frentes sobre a sensibilidade progressista e convictas de seu radicalismo, o que pode incluir a defesa de ditadores, o elogio da tortura ou a apologia do fascismo.
No Chile de 2021, por exemplo, o advogado ultraconservador José Antonio Kast foi ao segundo turno da eleição presidencial contra Gabriel Boric defendendo sem meias palavras o legado sanguinário de Augusto Pinochet (“fez o que tinha de fazer”). Na Colômbia, no ano passado, o empresário Rodolfo Hernández, apelidado de Trump Tropical, desbancou a direita convencional e foi ao segundo turno contra o esquerdista Gustavo Petro. Hernández tinha já então no currículo uma frase definitiva: “Sou seguidor de um grande pensador alemão. Seu nome é Adolf Hitler.”
No país de Mario Vargas Llosa, o milionário Rafael López Aliaga, conhecido como “Bolsonaro peruano”, ficou em terceiro lugar na eleição presidencial de 2021. Quem disputou o segundo turno pelo campo conservador foi Keiko Fujimori, apoiada pelo autor de A guerra do fim do mundo. Perdeu por uma diferença mínima para Pedro Castillo e demorou mais de quarenta dias para reconhecer a derrota, como manda o script da nova direita. Aliaga, o Bolsonaro peruano, foi eleito no ano passado prefeito de Lima.
Todos esses exemplos, entre tantos outros, mesmo onde a extrema direita não ganhou, mostram como “se construiu um antiprogressismo de novo tipo” mundo afora. A formulação é do historiador argentino Pablo Stefanoni, doutor em história pela Universidade de Buenos Aires. Stefanoni publicou no ano passado um excelente livro que tem como título a seguinte pergunta: A rebeldia tornou-se de direita? O subtítulo indica o que encontraremos nas 170 páginas seguintes da edição brasileira, pela Unicamp: Como o antiprogressismo e a anticorreção política estão construindo um novo sentido comum (e por que a esquerda deveria levá-los a sério).
O terceiro capítulo – O que querem os libertários e por que eles se aproximaram da extrema direita? – começa justamente com Javier Milei, descrito como um economista excêntrico que no verão de 2019 levava ao teatro em Buenos Aires um bom público – jovens, na maioria – para ver seu espetáculo El consultorio de Milei. No palco, ele fazia gestos obscenos na direção do retrato de John Maynard Keynes, cuja obra seria “pura merda”, e se vendia à plateia como o “único que pode nos salvar do socialismo apocalítico”.
O cenário, meticulosamente mambembe, era composto ainda por retratos de heróis do liberalismo raiz – Friedman, Mises, Hayek –, entre os quais um menos célebre, Murray Rothbard, que mais do que ninguém fez a cabeça de Milei. Discípulo tardio da escola austríaca, onde o ultraliberalismo foi forjado, Rothbard dizia que “o Estado é uma organização criminosa coercitiva”. Em 2020, numa entrevista, Milei disse: “Entre a máfia e o Estado, fico com a máfia. A máfia tem códigos, a máfia cumpre, a máfia não mente e, acima de tudo, a máfia concorre.” Em outra ocasião, num programa de tevê, Milei propôs privatizar as ruas, ecoando uma ideia que Rothbard havia defendido nos anos 1980. “Os libertários não suportam a propriedade pública de nada, nem mesmo das ruas”, escreve Stefanoni.
Dias antes do primeiro turno, Milei reuniu cerca de 12 mil pessoas no comício de encerramento de sua campanha. A maioria do público era de homens e 70% dos participantes tinham até 35 anos. Uma pesquisa coordenada pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP revelou alguns traços desse eleitorado: 97% acreditam que “a internet permite descobrir verdades que os jornais e a tevê querem esconder”; 87% dizem que “os programas sociais desestimulam as pessoas a trabalhar”; 72% acreditam que “o sistema eleitoral não é confiável”; 70% acham que “os direitos humanos atrapalham o combate ao crime”; 50% dizem que “os artistas não respeitam os valores morais da nação”.
O anarcocapitalismo de Milei é primo-irmão do “anarcomilicianismo” que experimentamos há pouco. Enquanto a esquerda, cada vez mais indistinta de um “progressismo descafeinado”, se incorpora ao status quo e joga na defensiva para salvar o que dá (o SUS, a floresta, o estado laico, o casamento homoafetivo), a direita radical avança empilhando vitórias sobre os escombros da civilização. Quando o horizonte histórico se fecha e o futuro só pode ser pensado em termos distópicos, a destruição passa a ter um apelo irresistível.
Não é à toa que o livro de Stefanoni comece falando de Coringa, o filme de Todd Phillips. Refém de uma doença que o faz rir de forma maníaca, vítima de bullying e desprezado, o palhaço envereda pelo labirinto da loucura e acaba no crime, até se transformar, no final, em “líder inesperado [e involuntário] de uma rebelião dos marginalizados de Gotham City contra os ricos e poderosos”.
Stefanoni lembra que na época em que foi lançado, 2019, o filme suscitou leituras polares: crítica progressista às iniquidades do capitalismo? Ou levante do white trash ressentido a engrossar o caldo da extrema direita? Ele se abstém de tomar partido por uma ou outra interpretação, identificando nas análises divergentes um sinal da riqueza do filme. No mundo real, porém, parece que o Coringa já escolheu seu lado. Os ventos que sopram do Sul nos dizem que o palhaço está bem próximo da Casa Rosada.
Leia Mais