Um estudo da Defensoria de São Paulo mostra que, em 64,86% dos casos de mulheres denunciadas, houve quebra de sigilo médico que compartilharam prontuário de atendimento das complicações do aborto ilegal Imagem: Hijack (@hijackart)
Condenadas sem julgamento
Mais de 60% das mulheres processadas por aborto no Brasil assinam acordo que impõe castigos morais, como não sair à noite e se apresentar ao juiz uma vez por mês
A cada dois dias, pelo menos uma mulher é denunciada no Brasil por fazer aborto. O que os números não mostram é que, mesmo não havendo condenação, mais da metade delas recebem algum tipo de pena. Para afastar o risco da prisão e manter a condição de ré primária, elas aceitam um acordo temporário que pode incluir proibição de saída noturna, pagamento de multa, comparecimento periódico em juízo e prestação de serviços à comunidade.
Em alguns casos, o juiz impõe uma punição ampla. Relatórios que retratam esses casos trazem inúmeras histórias. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Ana, moradora de Hortolândia, no interior paulista, entre 2015 e 2017. Delatada à polícia pelo médico que a atendeu no pronto-socorro após complicações pela ingestão de um medicamento abortivo comprado pela internet, ela ficou dois anos proibida de “frequentar bares, boates, salões de baile, casas de jogo e de prostituição”. Também precisou comparecer em juízo a cada dois meses para “informar e justificar suas atividades” e pedir autorização para se ausentar da cidade por mais de oito dias.
Por se tratar de um crime contra a vida, o aborto deve ser julgado pelo Tribunal do Júri. As Defensorias Públicas de São Paulo e do Rio informam que não têm notícia de um processo levado até essa instância no Brasil. Levantamentos das instituições mostram que em mais de 60% dos casos as ações foram suspensas mediante o cumprimento de requisitos estabelecidos pela Justiça.
Aplicável em crimes nos quais a pena mínima seja igual ou inferior a um ano – como no caso da prática do autoaborto, cuja detenção prevista é de 1 a 3 anos –, o benefício da suspensão condicional do processo impede a realização do julgamento. Caso a mulher aceite a determinação do instituto, a ação permanece suspensa por dois a quatro anos. Depois desse período, e se cumpridas as condições previamente estabelecidas no chamado período de prova, ela é extinta.
“Na prática, esses requisitos funcionam como uma condenação porque a pessoa fica submetida a essas regras por ao menos dois anos”, diz Nálida Coelho Monte, do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública de São Paulo.
De 36 ações penais analisadas pelo núcleo em estudo publicado em setembro, 22 foram suspensas de forma condicional pela Justiça paulista. Todas essas mulheres foram obrigadas a comparecer em juízo de forma periódica, e dezenove delas foram proibidas de frequentar “locais de reputação duvidosa”, como no caso de Ana.
Com exceção de apenas uma das rés, elas também passaram a ter de comunicar viagens. “Essas condições recaem sobre a vida da mulher, com um impacto importante. Se ela trabalha em horário comercial, por exemplo, vai precisar pedir autorização para se ausentar e ir ao fórum se apresentar”, destaca a professora Ana Paula Sciammarella, coordenadora do projeto Diálogos sobre Justiça Reprodutiva (Dijure), uma iniciativa feita em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Sciammarella chama a atenção para o fato de que as condições definidas pela Justiça não estão estabelecidas textualmente em lei nem seguem critérios educativos. “Veja que nenhuma das regras está relacionada a planejamento familiar ou atendimento psicológico. Elas não têm um caráter educativo, mas punitivo.” Para quem as cumpre, a sensação é de uma pena condicional, que, assim como foi ofertada, pode ser retirada.
Vera* chegou a ter um mandado de prisão expedido pela Justiça do Rio por descumprir as condições da suspensão de seu processo. Ela só não foi levada pelos policiais porque defensoras públicas a localizaram antes e explicaram ao juiz o motivo das faltas. “Depois do susposto aborto, ela ficou grávida de gêmeos e resolveu se mudar do Rio para São Gonçalo. Como não tinha dinheiro para a passagem nem com quem deixar os bebês, não pôde se apresentar ao fórum”, explica Ana Paula.
A antropóloga Debora Diniz cita o filósofo Michel Foucault para definir o mecanismo da suspensão condicional do processo em casos de aborto. “A mulher é forçada diante da lei a enfrentar esse texto de que errou e que, portanto, precisa se lembrar disso. É a força moralizadora da vigilância, do acompanhamento e do julgamento final. Foucault tem essa expressão, sobre as práticas do Judiciário: ‘Você está arrependida? Então me mostra, me mostra que você mudou!’.”
Professora da Universidade de Brasília, Diniz afirma que o instrumento traz uma marca da lei sobre algo que sequer deveria ser julgado. E, de acordo com um estudo do Nudem, esse julgamento social começa já nos serviços de saúde.
“Em 64,86% dos casos que levantamos houve quebra de sigilo médico, com entrega de relatório do atendimento ou prontuário médico às autoridades policiais sem o consentimento da paciente”, diz Nálida. “Na nossa avaliação essa oferta da suspensão é mais problemática ainda tendo em vista que ela é resultado de denúncias feitas com provas ilícitas ou com ausência de materialidade. Há casos nos quais não se comprovou sequer que a mulher estava grávida ou qual foi o método abortivo”, afirma a defensora.
Somente neste ano, pelo menos duas decisões do Superior Tribunal de Justiça apontaram para a ilegalidade de acusações baseadas em depoimentos de médicos, enfermeiros e demais profissionais da área da saúde. A quebra do sigilo profissional entre médico e paciente gerou nulidade de provas e consequente extinção dos processos.
Um deles envolvia uma moradora de Birigui, no interior paulista, que chegou a ser presa durante o socorro médico prestado por funcionários da Santa Casa, tendo seu nome e história expostos de forma pejorativa na cidade. Ao declarar seu voto a favor do trancamento da ação, o ministro relator, Antonio Saldanha, da 6ª turma, afirmou que o hospital deve ser um local de acolhimento para a saúde. A corte também decidiu por encaminhar o caso ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo diante do descumprimento da lei por parte do profissional.
Nas instâncias inferiores, no entanto, estereótipos morais e de gênero avançam. É o que mostra o estudo Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização de Mulheres, produzido por professores e estudantes da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto. Nele, os autores citam um caso paulista no qual o Ministério Público foi contra a concessão da suspensão condicional, tendo em vista que a ré foi “desumana, insensível, torpe e cruel contra um ‘ser totalmente inofensivo'”.
“Embora o número de processos contra o aborto seja baixo em geral – em comparação com outras infrações ou levando em conta o elevado número de abortos no Brasil –, as decisões e os casos analisados tornam claro que a reprovabilidade social do aborto no Brasil também pode afetar os julgamentos e a conduta de juízes e juízas”, conclui o trabalho.
Pouco antes de ter seu processo extinto em função do cumprimento das medidas relativas à suspensão condicional, Ana teve um pedido de habeas corpus negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi em 2017. No acórdão, o magistrado (o hoje desembargador Airton Vieira, candidato de Alexandre de Moraes para uma vaga no STJ) afirmou que “o direito à vida, intra ou extrauterina, tal como ocorre com o nascituro, deve prevalecer quando sopesado com qualquer outro direito fundamental da gestante, como o direito sexual, reprodutivo ou mesmo o direito de sua integridade física e psíquica. E finalizou seu voto declarando que “nascemos para morrer; não para sermos mortos. Assassinados”.
Em 2015, no Rio, uma vendedora de 19 anos teve o processo suspenso mediante uma condição extra e pouco usual. Além de não poder se ausentar do estado onde reside por mais de dez dias sem autorização, ter de comparecer mensalmente ao fórum para prestar contas de suas atividades e manter seu domicílio atualizado, ela foi obrigada a prestar oito horas mensais de serviço a crianças institucionalizadas ou hospitalizadas.
O caso foi um dos analisados pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 2017. Comandado pela diretora do órgão, Carolina Haber, o relatório Entre a morte e a prisão mostrou a situação de vulnerabilidade das mulheres criminalizadas pela prática do aborto, que não encontram no sistema de saúde a estrutura adequada para atendê-las no caso de um aborto malsucedido. “Pelo contrário, sabendo que sua conduta é ilícita, essas mulheres adiam ao máximo a decisão, apesar de não demonstrarem em seus depoimentos que iriam desistir por esse motivo, agravando o risco ao realizarem um aborto num estágio avançado da gravidez”, diz o estudo.
De acordo com a última edição da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), de 2021, uma a cada sete mulheres, aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto na vida. O levantamento foi realizado em novembro de 2021 e ouviu 2 mil mulheres em 125 municípios, sob coordenação da professora Debora Diniz.
Do grupo criminalizado, a maioria delas são mulheres negras, pobres, de baixa escolaridade, têm até 29 anos e já são mães. Em São Paulo, como mostra o relatório do Nudem, são solteiras e possuem as mais diversas profissões, como atendentes, balconistas, operadoras de caixa, ajudantes de cozinha, feirantes, manicures, vendedoras, professoras.
“A gente não tá falando de mulheres criminosas típicas, porque para você poder se valer desse benefício processual da suspensão você tem que cumprir alguns requisitos: ser ré primária, ter endereço fixo… Isso já mostra pra gente o perfil dessas mulheres que estão sendo incriminadas. Muitas delas têm trabalho fixo, inclusive”, destaca Ana Paula Sciammarella.
A análise dos processos paulistas, segundo o Nudem, mostra que as mulheres criminalizadas pelo autoaborto estão em uma encruzilhada entre a prisão e o cemitério. “Verifica-se que o cenário posto é de transformação de espaços de cuidado em espaços de investigação, fato que torna ainda mais dramática a criminalização do aborto no Brasil. Condicionar o atendimento médico de mulheres à confissão de crimes é prática assemelhada à tortura”, menciona o relatório.
Antes de se aposentar, a ex-ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, revelou ter o mesmo entendimento. Em 22 de setembro, ao liberar seu voto no sistema eletrônico pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, a magistrada destacou que a Constituição reconhece a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade e a proibição de tortura.
Relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, apresentada pelo Psol em 2017, Rosa quis fazer valer seu voto antes de deixar a Corte. A estratégia suscitou o debate, mas o julgamento segue sem data marcada depois que o atual presidente, Luís Roberto Barroso, decidiu levar o caso ao plenário. Hoje o aborto é permitido em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante e diagnóstico de anencefalia do feto.
Enquanto teses a favor e contrárias à descriminalização opõem a sociedade brasileira, as regras atuais não impedem que milhares de mulheres optem pela interrupção clandestina da gestação todos os anos. A criminalização da prática, portanto, não elimina o procedimento, somente restringe o acesso ao aborto seguro e resulta na acusação de mulheres de baixa renda que dependem de serviços de saúde pública.
“A suspensão condicional do processo não é o vilão da história. Ela é, na verdade, uma alternativa que dá à acusada uma opção menos gravosa. O problema aqui é a subjetividade na aplicação dessa medida. Em razão de convicções pessoais sobre aborto, acaba-se por impor condições que não têm relação com o crime praticado”, diz a advogada criminalista Luiza Oliver.
*Nomes fictícios
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