Lula, Dino e Alexandre de Moraes, durante uma reunião no Palácio do Planalto em abril deste ano Foto: Gabriela Biló/Folhapress
Flávio Dino e o notável saber político
O ministro de Lula se saiu vitorioso numa disputa que envolveu figuras do Centrão, do PT e do Supremo, e na qual o direito ficou em segundo plano
As indicações de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal (STF) e de Paulo Gonet para a Procuradoria-Geral da República (PGR) não pegaram ninguém de surpresa. Pelo contrário, confirmaram uma tendência: a indicação para os mais altos cargos jurídicos do país está cada vez mais parecida com a indicação para cargos de governo. O presidencialismo de coalizão, com o Centrão, com tudo, chegou ao Judiciário – poder que também tem coronéis, ciosos de emplacar seus apadrinhados em cargos na Justiça e nos demais poderes. A disputa por uma indicação ao STF não escapa a essa lógica, o que distorce o requisito de “notável saber jurídico” previsto na Constituição.
Elites jurídicas e políticas sempre estiveram ligadas por vasos comunicantes, mas nunca de forma tão aberta. Durante todo o tempo em que o nome de Dino foi especulado para o Supremo ao lado de outros “candidatos” – no caso, Jorge Messias, advogado-geral da União, e Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) –, o debate público girou quase que exclusivamente em torno dos apoios e das resistências a cada um deles no governo, nos partidos, no Congresso e no Judiciário. Um observador atento do noticiário já terá decorado: Dino contava com a simpatia pessoal de Lula, mas não agradava tanto ao Senado e ao PT; Messias era mais próximo de Dilma do que de Lula, mas tinha o apoio do partido do presidente; e Dantas era o favorito da classe política e dos ministros do Supremo que se permitem pular de cabeça no jogo das indicações, Gilmar Mendes à frente.
Não era tão simples, porém, dizer o que os candidatos pensavam sobre temas jurídicos importantes, que são o objeto principal do trabalho de um ministro do STF. Isso vale inclusive para Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, cujas posições recentes não têm como ser diferenciadas da agenda do governo Lula, ao qual ele serve. Seu nome ganhou força, na reta final, por motivos estritamente políticos: o senador Jaques Wagner (PT-BA), um dos principais apoiadores de Jorge Messias, se indispôs com o STF depois de votar a favor da PEC que restringe as decisões monocráticas do tribunal. O advogado-geral da União, consequentemente, perdeu força. Dino foi quem sobrou de pé ao final de um tiroteio em que os próprios ministros do Supremo atuaram como pistoleiros.
Há certamente outros fatores na balança. Alguns analistas dizem que Lula, ao colocar Dino no STF, eliminou um potencial adversário na disputa pelos votos da esquerda em 2026. Seja como for, é tudo política. O pensamento e a qualidade técnica dos “supremáveis” tornaram-se detalhes desimportantes. Isso não é de hoje, nem começou com Lula, pois, se vale para Cristiano Zanin, vale também para André Mendonça e Kássio Nunes, além de indicados por Fernando Henrique Cardoso. É coletiva a obra que enterrou o notável saber jurídico como critério para o STF.
O problema que daí resulta é evidente: o Supremo, como tribunal de cúpula, deveria ser a bússola de todo o Judiciário brasileiro, oferecendo respostas para os assuntos mais difíceis e complexos, às quais só é possível chegar por meio do esforço de juristas de alta capacidade, imbuídos do objetivo comum de extrair o melhor sentido das leis e da Constituição. Esse papel de liderança não pode ser cumprido por um tribunal cuja composição seja determinada, na prática, pelo mesmo tipo de jogo que orienta o preenchimento de quaisquer outros cargos políticos.
Nós, do direito, sempre acreditamos que a exigência do notável saber jurídico seria um dos mecanismos pelos quais a nossa comunidade (o “campo jurídico”) se protegeria da política. O presidente da República faria a indicação, o Senado a sabatina, mas só nós controlaríamos os parâmetros do tal “notável saber”, da mesma forma que só quem joga e conhece futebol é capaz de detectar um verdadeiro craque. É algo que pressupõe um ponto de vista interno, um olhar de quem vivencia a prática. Por mais que a escolha de um novo ministro coubesse a políticos, ela seria limitada a candidatos ungidos com uma distinção reputacional que só a comunidade jurídica poderia conferir.
Longe de ser um fetiche dos juristas, a independência do Judiciário em relação à política é um pilar importante do que chamamos de estado de direito. Não foram poucas as ditaduras que se valeram do controle sobre as leis, da subjugação do ensino jurídico e da colaboração de juristas para cometer crimes contra a humanidade. O direito que oscila como biruta de aeroporto, seguindo os ventos da política, torna-se instável, imprevisível e arbitrário, incapaz de entregar a segurança que dele se espera. Desde os primeiros anos da faculdade, somos instruídos a desconfiar de qualquer arranjo que subjugue as instâncias do Judiciário àquelas em que o poder político e econômico fatalmente vencerá.
O “notável saber jurídico”, tal qual a “reputação ilibada” exigida pela Constituição, deveria garantir que a mais importante das instituições de Justiça, o STF, fosse ocupada por pessoas dotadas de virtudes intelectuais e morais suficientes para agir com coragem e altivez diante de ameaças e tentativas de cooptação.
Astutamente, porém, as elites políticas passaram a produzir elas próprias certificados de notoriedade jurídica. Há uma infinidade de cargos, posições honoríficas e distinções que hoje são tomadas como indicativos de excelência jurídica, mas cujo acesso é inteiramente controlado por quem tem poder político.
Todos os candidatos que disputaram a atual vaga do STF construíram sua notabilidade jurídica por meio de cargos e posições políticas. Dino atuou como juiz federal durante mais de dez anos, mas o que garantiu sua indicação ao Supremo foi seu trabalho como parlamentar, como governador do Maranhão e, mais recentemente, como ministro de Estado, destacando-se nas reações ao 8 de janeiro. Tornou-se estrela de oitivas parlamentares, de onde saem os clipes que o tornaram um político de imensa popularidade digital. Jorge Messias, funcionário de carreira da AGU, entrou para o páreo por ter ocupado cargos de confiança sob Dilma e Lula. Bruno Dantas, embora tenha atuação acadêmica, fez carreira na consultoria legislativa do Senado e, de lá, pulou para instâncias nas quais os políticos escolhem juristas de sua preferência: Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e por último o Tribunal de Contas da União (TCU), onde teve participação de destaque em muitos episódios da política nacional na última década.
É possível ainda pensar em outras formas de distinção jurídica politicamente outorgadas, como a participação na elaboração de anteprojetos legislativos (que se dá por meio de convite parlamentar) ou a nomeação para cargos de assessoria jurídica no governo. Lá na frente, quando os políticos tiverem de apontar algum “notável saber jurídico” para mostrar que atenderam ao que pede a Constituição, é esse tipo de experiência que eles invocarão. Tudo isso contribui para a subordinação de “juristas” aos donos do poder, aos quais o direito precisaria ser capaz de se impor.
Tornou-se comum a crítica, justa, à falta de representatividade na cúpula do Judiciário. Ao menos até pouco tempo atrás, em São Paulo, havia mais desembargadores chamados Luís/Luiz do que desembargadoras mulheres. Só no Supremo, são quatro. Lula pode respirar aliviado porque Dino, ao menos, é Flávio. Aos Luíses do futuro, uma dica: poucas coisas aumentarão tanto suas chances de chegar à elite do Judiciário quanto fazer carreira em Brasília, de preferência servindo a quem, dali a pouco, lhe premiará a pretexto da notoriedade intelectual que ela própria lhe outorgou.
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