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    Marcelo D2 e o baixista Formigão no show de dezoito anos do festival Se Rasgum, em novembro deste ano, em Belém (Foto: Raimundo Paccó)

questões contraculturais

Em cana, com o Planet Hemp

No camarim de um show recente, banda revê imagens de sua prisão pirotécnica em 1997

Alan Bordallo | 11 dez 2023_09h38
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O backstage de um festival de música funciona com horários apertados. O tempo para preparar o palco entre um artista e outro é sempre curtíssimo. Na noite de 18 de novembro, a última do festival Se Rasgum, em Belém, uma produtora apressada levava quatro pizzas e um pote com bombons variados – à prova de qualquer apetite que surgisse no camarim, um cuidado especial com o Planet Hemp, principal estrela da edição, que comemorava os dezoito anos do evento. 

Logo os sete integrantes do grupo começaram a dar as caras. Um dos fundadores do Planet, Marcelo D2, chegou num carro com sua esposa, Luiza Machado. Assim que desceu do veículo, o casal se aproximou do palco onde, dois shows depois, a banda encerraria o festival. O vocalista observou o público e avaliou a qualidade do som. Àquela altura, Anelis Assumpção e seu marido, o baterista Curumin, dividiam a cena, tendo como convidada a cantora Mahmundi. Após sentirem um gostinho da apresentação, D2 e Luiza foram para o camarim.

Lá já estavam o baixista Formigão – outro remanescente da formação original do Planet –, o guitarrista Nobru, o baterista Pedrinho, o DJ Venom e o produtor musical Daniel Ganjaman, que assumiria os teclados, algumas guitarras e os samples, marca registrada do raprockandrollpsicodeliahardcoreragga que o grupo traz em seu DNA (a expressão serve de título para uma das faixas do EP Hemp New Year, lançado em 1996). O cantor BNegão apareceria um pouco mais tarde.

Toda vez que a porta do camarim se abria, em meio à fumaça era possível ver os amigos que visitavam a banda, entre eles os músicos da capixaba Mukeka di Rato, que se exibiu na mesma noite. Criado há três décadas, o Planet ainda se orgulha de encontrar “irmãos considerados, em qualquer jurisdição”, como apregoa a letra de Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga.

Do lado de fora, o fotojornalista Raimundo Paccó e eu esperávamos para entrar com uma surpresa: um inédito ensaio fotográfico do dia 9 de novembro de 1997, quando os então componentes do Planet Hemp foram presos depois de um show em Brasília, acusados de apologia às drogas.

Em 2000, a banda ironizou a acusação na música Contexto: Eu sou o primeiro e como sempre eu tô inteiro/E se a polícia chegar eu jogo tudo no banheiro/E dou descarga e finjo que só tô fazendo a barba/E só vou relaxar quando sai o homem de farda. Na mesma música, D2 declarava: “Tem gente que tá dizendo que o Planet Hemp faz apologia às drogas.” Em seguida, um sample da canção Mentira, de Marcos Valle, de 1973, rebatia: “É mentiiira, é mentiiira.” Valle, hoje aos 80 anos, também se apresentou no festival paraense, mas uma noite antes. Na ocasião, lembrou que o Planet foi o primeiro a samplear composições dele. 

Em 8 de novembro de 1997, Raimundo Paccó amargava o plantão de sábado no jornal Correio Braziliense. Quando um repórter entrou na redação, já no finzinho da tarde, o fotojornalista e alguns colegas tentaram se esconder. Ninguém queria ser escalado para uma cobertura àquela hora. Sem maiores explicações, o colega anunciou que precisava de dois fotógrafos. “Fiquei cabreiro”, recorda Paccó. “Num final de plantão, o jornal só requisitaria dois fotógrafos para uma mesma missão se o assunto fosse quente.” Ele e Jeff Rudy acabaram escolhidos. “Eu fui, mas injuriado”, conta Rudy. “Estava cansado, não estava zeradão, e ainda por cima ignorava o que iria encontrar pela frente. Um mistério da porra…” 

O repórter revelou do que se tratava apenas quando os três chegaram à portaria do Minas Brasília Tênis Clube. Naquela noite, o Planet Hemp faria um show ali para aproximadamente 7 mil pessoas. Logo depois do espetáculo, os músicos seriam presos – informação que o Correio Braziliense conseguiu com exclusividade. 

Durante a apresentação, policiais civis tiraram fotos que engrossariam o dossiê contra a banda. A ideia era enquadrá-la tanto no crime de apologia ao consumo de entorpecentes quanto no de associação para o uso de drogas. O juiz Vilmar José Barreto Pinheiro assinou o mandado de prisão. Ele também determinou o cancelamento de shows e o recolhimento de álbuns do grupo em Brasília. Ironicamente, dezesseis anos depois, o Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios condenou Pinheiro à aposentadoria compulsória por receber 40 mil reais de propina para soltar um traficante. O magistrado, porém, continuou ganhando o salário de 28 mil reais. 

No clube, o Planet entoou seus maiores hits, incluindo Porcos Fardados, que critica a polícia. Mal deixaram o palco, na madrugada de domingo, dia 9, Marcelo D2, Black Alien, Formigão, Bacalhau, Zé Gonzales e Jacksom caíram nas garras dos agentes da Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes. Como não cantou em Brasília por se encontrar no Rio de Janeiro, BNegão escapou. Bem posicionado, Paccó registrou a detenção minuciosamente.
O Planet ficou preso durante cinco dias. Políticos e artistas saíram em defesa dos músicos, denunciando a arbitrariedade policial e protestando contra o ataque à liberdade de expressão. Na mesma semana, o segundo álbum da banda, Os cães ladram mas a caravana não para, atingiu a marca de 300 mil cópias vendidas. O Planet Hemp, que raramente aparecia na mídia, teve uma exposição gigante, e o debate sobre a liberação da maconha – que estava no centro do discurso do grupo – ganhou força.

D2 levado pela polícia no Minas Brasília Tênis Clube (Foto: Raimundo Paccó)


Um incêndio queimou parcialmente o arquivo fotográfico do Correio Braziliense. Por sorte, Paccó guardou em casa alguns negativos das imagens de 1997. Quando os organizadores do Se Rasgum anunciaram que o grupo participaria do festival, ele fuçou seu acervo e achou os registros. Já Rudy afirma não ter mais nenhuma foto da época.

Depois de negociar com os assessores da banda, finalmente enveredamos pelo camarim do Planet. Um agitado Marcelo D2 recepcionava Marcelo Damaso e Renée Chalu, diretores do Se Rasgum. O duo agradecia a presença do grupo, que vinha direto de Sevilha, onde recebera dois troféus na edição latina do prêmio Grammy. O cansaço dos músicos até passava despercebido. Simpáticos e comunicativos, os sete já haviam passeado por Belém e almoçado num restaurante tradicional, além de posarem para incontáveis fotos e concederem muitas entrevistas.

Damaso presenteou o xará com um compacto duplo da banda escocesa The Jesus and Mary Chain, da qual o vocalista é fã, conforme declarou no podcast A playlist da minha vida, conduzido pela atriz Fernanda Torres. “Ouvi duas vezes o episódio com o D2. Tão lindo…”, disse Damaso. “Num trecho, ele revela que The Jesus and Mary Chain lhe abriu um portal novo. Por isso, resolvi dar o presente.”

Paccó mostra aos músicos as imagens da cobertura fotográfica de 1997 (Foto: Ygor Negrão/Se Rasgum)


Terminada a conversa entre os xarás, Paccó retirou as imagens inéditas de dentro de uma revista. Uma delas mostrava D2 sendo conduzido à delegacia por um policial de peito estufado e camisa desabotoada. “Aquele playboy queria me levar como troféu”, comentou o cantor, que chamou a atenção para um detalhe no segundo plano da foto em papel. “Olha aí o perigoso Bacalhau algemado”, tripudiou, referindo-se ao primeiro baterista do grupo, Wagner Bacalhau.

No dia 7 de novembro de 1997, antes de ir para Brasília, o Planet Hemp já tivera um show cancelado em Belo Horizonte pelo juiz Ely de Mendonça. A polícia mineira chegou a revistar a bagagem e os instrumentos da banda. Também deteve por cinco horas dezoito membros do grupo, entre músicos e técnicos. Uma campanha moralista contra o Planet, com direito a apresentadores de tevê endossando a repressão, varria o país. “Quando o repórter do Correio Braziliense perguntou se poderia passar o dia com a gente, eu sabia que tinha algo errado”, contou D2. “Questionei o cara: ‘Tu sabe de alguma coisa? Vão prender a gente, não é?’” O jornalista manteve o mistério.

O clima de tensão levou os artistas à impaciência. “Eu pensei: ‘Temos que tocar para ser presos logo. Do contrário, essa porra vai continuar pelo resto de nossas vidas”, prosseguiu D2. E assim foi. “À beira do palco, na hora que os policiais nos comunicaram a prisão, ainda pedi para a gente fazer um bis, mas não rolou, claro”, disse o vocalista. Os músicos se livraram do flagrante porque esconderam “os bagulhos” no camarim, embaixo do sofá.

 

Os integrantes da banda em cana: livres do flagrante (Foto: Raimundo Paccó)

 

À época, BNegão se dividia entre o Planet Hemp e o Funk Fuckers. Caso as agendas de ambas as bandas coincidissem, o Planet costumava ter prioridade. Na sexta-feira, véspera do show em Brasília, o Funk Fuckers se apresentaria no bairro carioca de Bangu. Teoricamente, daria para BNegão comparecer aos dois espetáculos. No entanto, o produtor não levou o PA (equipamento que faz a sonorização para a plateia) e o show em Bangu não aconteceu. O cantor caiu, então, numa farra épica. “Eu tinha passagem aérea para Brasília, mas bebi demais e acordei estragado no sábado. Preferi não viajar. O Funk Fuckers me salvou”, riu o artista no camarim do Se Rasgum.

Ainda sem saber da prisão, ele circulava por uma festa no Rio, e os presentes o olhavam como se vissem um alienígena. “Você por aqui?!”, indagavam. “Ué, tô”, respondia o cantor. Quando lhe informaram que o grupo havia sido preso, BNegão pensou que se referiam ao entrevero em Belo Horizonte e esclareceu que os músicos ficaram detidos na capital mineira por apenas cinco horas. “Só aí me contaram que a banda tinha rodado em Brasília.”

BNegão e D2 classificam o episódio como um tiro que saiu pela culatra. “Hoje em dia, a gente diria que a prisão fez o Planet viralizar”, compara D2. Embora a legalização da maconha continue sendo sua principal bandeira, o grupo aborda outros assuntos. Fala de brutalidade policial, crime organizado, desigualdades sociais, miséria, corrupção, racismo, feminicídio. Os cantores avaliam que, atualmente, a conscientização sobre tais problemas atinge camadas maiores da sociedade, o que ajuda a combatê-los. “Começamos a tocar logo depois que a ditadura acabou”, relembra D2. “Agora, quem está fazendo boa parte das merdas é justamente o resquício da ditadura. São aqueles que não sofreram nenhuma punição.” Para BNegão, o Brasil sempre foi um Estado policial, uma nação dominada pelos militares. “Enquanto não resolver essa parada, a confusão vai persistir.”

Em 2022, ainda sob o governo de Jair Bolsonaro, o Planet Hemp lançou Jardineiros, seu quarto álbum de estúdio. O anterior, A invasão do sagaz homem fumaça, saíra muito antes, em 2000. No ano seguinte, a banda se desentendeu e terminou. Entretanto, em outubro de 2010, topou fazer um pocket show para festejar as duas décadas da MTV Brasil, emissora que ajudou a tirá-la do underground e levá-la ao mainstream. Um novo espetáculo só aconteceu em setembro de 2012, no Circo Voador, espaço carioca muito querido pelo grupo. Aos poucos, outros shows vieram, e o Planet acabou voltando.

A hibernação não sufocou a energia caótica dos músicos, como se pode comprovar em Jardineiros. O baterista Pedro Garcia, o Pedrinho, teve papel fundamental na realização do disco. Ele aproveitou janelas durante a pandemia para, como quem não quer nada, convidar os antigos parceiros a se reunirem. “A gente não compunha junto havia um tempão e, mesmo assim, conseguimos lançar um trabalho relevante, com a essência do passado e toques de modernidade”, comemora Pedrinho.

Tão logo chegou à praça, Jardineiros seduziu o público e a crítica. Não à toa, em novembro faturou os dois Grammys latinos: o de Melhor Interpretação Urbana em Língua Portuguesa e o de Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa. “Agora somos uma banda que ganha prêmio. Antes, a gente queria destruir os prêmios”, disse D2, em tom de zombaria. O vocalista confessou que menosprezou o Grammy o quanto pôde. “Mas, no momento em que anunciam o teu nome e tu pega a parada, a sensação muda, tá ligado? O cara, na apresentação em Sevilha, falou que o prêmio iria mudar nossa vida. De fato, me senti diferente depois que peguei a bagaça. Talvez seja a idade”, emendou o cantor, às gargalhadas. Ele completou 56 anos no dia 5 de novembro.

O Planet Hemp foi a primeira atração que os organizadores do Se Rasgum procuraram para a 18ª edição do festival. O diretor Marcelo Damaso pirou quando viu o grupo no Lollapalooza de 2022, substituindo o Foo Fighters como headliner. “O Planet é a banda brasileira que melhor envelheceu. Os caras voltaram com sangue nos olhos.” Mesmo depois de viajar 24 horas entre Sevilha e Belém, os músicos subiram energizados no palco do Se Rasgum e fizeram um showzaço com mais de 120 minutos. Como nos velhos tempos, queimaram tudo até a última ponta.

 

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