O que ler, ouvir e assistir enquanto o ano não termina
Uma lista com dicas culturais dos jornalistas da piauí
Os leitores da newsletter cultural da piauí já estão acostumados: uma vez por mês, enviamos por e-mail uma lista de filmes, livros, séries, exposições e discos selecionados pelo editor Alejandro Chacoff. Uma curadoria diversa, meio brasileira, meio internacional (clique aqui para se inscrever gratuitamente). Com 2023 chegando ao fim, relembramos alguns desses destaques.
O curta-metragem Roundhay Garden Scene, de 1888, tem dois segundos e mostra um grupo de pessoas na frente de uma casa. É um dos registros cinematográficos mais antigos. A arquitetura faz parte, portanto, de um dos marcos inaugurais do cinema, fato que o diretor Kleber Mendonça Filho parece ter sempre em mente. Nos filmes Vinil Verde, Eletrodoméstica, Recife Frio, O Som ao Redor e Aquarius, ele fez da casa de sua família e do espaço urbano do Recife mais do que cenários e locações para suas obras. Transformou-os em organismos vivos que substanciam suas histórias.
Retratos Fantasmas, em cartaz nos cinemas desde o fim de agosto, é um filme-ensaio narrado por Mendonça Filho e dividido em três partes. Na primeira, o foco é familiar e intimista: a residência de Boa Viagem que aparece em seus filmes – comprada e idealizada por sua mãe quando ela superava o fim de um casamento, e projetada por seu irmão arquiteto – sofre alterações internas com o passar do tempo. As mudanças mais drásticas, porém, acontecem ao redor, na vizinhança que se transforma. Casas dão lugar a grandes condomínios, com muros altos, grades, cercas elétricas e câmeras.
Nas outras duas partes do filme, o olhar se volta aos espaços coletivos: o Centro antigo do Recife e os cinemas de rua que formaram o diretor. São espaços de sociabilidade que no passado foram vibrantes e que se deterioraram, sucumbindo à modernidade acachapante que desqualifica aquilo que considera ultrapassado.
Numa camada superficial, é tentador ler Retratos Fantasmas como um filme sobre a memória afetiva do cineasta. Mas é mais do que isso. É, sobretudo, a história do poder econômico que passa por cima da memória coletiva, do valor histórico e cultural, para oferecer um projeto de cidade excludente, paranoico e agorafóbico. Retratos Fantasmas foi escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar na categoria de melhor filme internacional, e o filme de Kleber Mendonça Filho de fato tem a capacidade de se comunicar com plateias mundo afora, porque parte do particular para o universal. No mundo capitalista, todo mundo tem um cinema de rua de estimação que foi destruído para dar lugar a um terrível prédio espelhado com vidros fumê.
Depois do lançamento do disco À Procura da Batida Perfeita, em 2003, o carioca Marcelo D2 foi consagrado um dos rappers mais engenhosos da sua geração. E também ficou conhecido, entre os seus pares e ouvintes, como aquele que mistura o rap com o samba. Esta seria a linha artística que D2 seguiria explorando ao longo de duas décadas, até aprofundá-la no que já pode ser decretado o álbum definitivo da sua carreira: o novo IBORU, que chegou às plataformas digitais em junho.
Em dezesseis faixas, o rapper combina as várias vertentes do samba com o grave eletrônico do hip-hop. Ao resultado da mistura, D2 dá o nome de “novo samba tradicional”, o gênero musical que, segundo ele estima, atrairá o interesse dos mais jovens para a cultura popular brasileira. “Arquitetos do samba merecem respeito e consideração”, declama D2 em Só vou morrer quando o meu samba morrer, a quinta música da tracklist. O time de sambistas reunidos em torno do disco é extenso. Entre compositores e intérpretes, D2 divide o espaço com Alcione, Zeca Pagodinho, Diogo Nogueira, Xande de Pilares, Nega Duda, Mumuzinho, Arlindinho e Moacyr Luz. O baiano Mateus Aleluia, que integrou o conjunto Os Tincoãs, aparece na faixa Kalundu.
Mas a ajuda fundamental para a criação do disco veio de Luiz Antonio Simas, historiador, compositor e babalaô do culto de Ifá, sistema divinatório de matriz africana. É dele a letra de Pra curar a dor do mundo, música que encerra o disco e na qual D2 declama um poema sobre a sua tradição cultural, religiosa e familiar. Não foi a primeira vez que a família serviu de estímulo criativo ao rapper. Em 2021, D2 declarou ao jornalista Filipe Vilicic, que o perfilou para edição de número 179 da piauí: “Minha avó veio do Maranhão. Meus ancestrais me trouxeram a comida, o samba, o boteco, o terreiro, o quintal, a simbologia ‘da esquina da rua’. Tudo isso que veio antes afeta tudo que sai de nós hoje, né, mano?”
A inclinação que precede a leitura de Os substitutos é relacioná-lo a Nove noites, romance que Bernardo Carvalho publicou em 2002 e no qual explorou, numa narrativa notável pelo arrojo e inventividade, a trajetória do antropólogo americano Buell Quain, que se suicidou em 1939 enquanto fazia trabalho de campo no Brasil central.
De maneira semelhante ao livro anterior, em Os substitutos Carvalho fala de indígenas, de Amazônia, do Brasil, de homossexualidade e dos desafios presentes em qualquer esforço para compreensão da identidade e da alteridade. Removido na solidão da fazenda, o protagonista do romance, um garoto, lê um livro de ficção científica protagonizado por outro garoto, também desalojado. “É a história de um menino que não sabe o que está fazendo ali”, o protagonista diz, sem ter consciência de que fala de si mesmo, e que a extensão do “ali” ultrapassa a fazenda para alcançar as dimensões do mundo. Assombrado pela figura do pai, homem enigmático e fugidio, aparentemente insensível à peculiaridade do próprio filho, o garoto cresce, estuda antropologia, e escreve sobre a metafísica dos Okano e seu sistema universal de substituições.
Em Nove noites, Carvalho usou um viés autoficcional para abordar a trama. Se há alguma autobiografia em seu livro mais recente, ela aparece na forma de personagens ambíguos e fraturados, incompletos e por isso verossímeis. A complexidade da relação entre o garoto e seu pai parece contaminar tudo – a memória é “uma armadilha”, e quando se trata de explicar as relações humanas, “a conta não fecha”. As figuras reencarnam umas nas outras, em inúmeras instâncias de deslocamento e substituição imperfeita. É justamente nessa resistência a explicações lineares e narrativas fechadas que reside a fortuna desse romance, e seu sucesso como literatura.
2022 foi o ano do centenário da morte de Lima Barreto, e entre os livros, artigos e ensaios que surgiram para homenagear o autor canônico, o romance Uma Temporada no Inferno, de Henrique Marques Samyn, foi das obras mais instigantes. No livro, um narrador não nomeado decide se internar voluntariamente no Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, a mesma instituição onde Lima Barreto se internara décadas antes, no início do século XX. As anotações de Barreto viraram o Diário do Hospício, livro publicado após sua morte. Diário do Hospício, por sua vez, era uma espécie de preparação para um romance inacabado, O Cemitério dos Vivos.
O narrador não nomeado de Samyn almeja de alguma forma repetir os passos do ídolo, e ao mesmo tempo superá-lo. Diz que irá “muito além de onde L.B. ousou ir, porque retomarei as suas ideias, mas concluirei a tarefa que ele deixou pela metade”. E segue: “L.B. não conseguiu escrever sobre a loucura porque não se aproximou dela o bastante.” O projeto é contraditório: se internar de forma racional para se aproximar o máximo possível da irracionalidade, colocando um pé na beira do abismo, mas sem cair nele. É quase uma metáfora para a própria literatura. O projeto megalomaníaco do narrador, combinado às anotações fragmentárias sem cronologia linear, dão a impressão inicial de um admirador fanático. Discorrendo sobre o gosto de Barreto pela cor azul, ele diz: “Ninguém percebeu isso; ninguém além de mim. Posso afirmar, sem qualquer possibilidade de erro, que sou o maior conhecedor de sua obra.”
O leitor é sempre uma espécie de louco, presumindo que conhece o autor melhor do que ninguém. Mas o narrador de Samyn é também um observador astuto, de prosa célere e seca, que o tempo todo nota a ambiguidade da fronteira entre a loucura e a sanidade – conceitos que mudam ao bel-prazer da sociedade e seu tempo. E nisso se inclui a loucura eugenista das teorias raciais do início do século XX, feitas em nome da ciência. Samyn – que, como seu narrador e como Barreto, é um autor negro – inclui nas anotações do personagem menções a essas teorias, e assim há uma inversão que permeia o livro. Barreto, um dos primeiros autores a questionar tais teorias, não foi levado a sério na época; e os autores eugenistas de então, agora considerados racistas, já foram a régua do que em certo momento foi considerado “são” . O desamparo dessa constatação, mesmo quando não aparece no livro, nutre o diário do narrador.
Como indica o título da série, cada episódio de How To With John Wilson tem nome de tutorial: “Como lembrar de seus sonhos”, “Como cozinhar o risoto perfeito”, “Como encontrar um banheiro público” e “Como ser espontâneo” são alguns. Mas quem assiste não aprende nada. Pelo menos, nada sobre o que diz o nome dos episódios.
How to With John Wilson é na verdade uma série de documentários ensaísticos feitos por um flâneur desengonçado em Nova York: John Wilson tem uma câmera na mão, mas as ideias ainda não parecem muito claras na sua cabeça. O ar de sem jeito, no entanto, não o impede de capturar momentos fascinantes, pelo gozado ou pelo belo, da vida cotidiana da cidade, ou de fazer reflexões profundas e inesperadas sobre a condição humana. Em “Como observar os pássaros” – quinto episódio da terceira temporada, e um dos melhores da série – ele se junta a um grupo de observadores de aves e descobre que seus membros não mentem sobre as aves que viram. A descoberta aparentemente banal leva a uma investigação divertida e profunda sobre verdade, mentira, teorias da conspiração e arte.
“E aí, Nova York?” – assim o narrador abre todos os dezoito episódios das três temporadas da série. A estética caseira dá a impressão que poderia ser um programa feito por um cineasta amador no porão de casa. Foi mais ou menos assim que surgiu a ideia da série, quando Wilson, por conta própria, começou a publicar mini-docs no Vimeo há onze anos. O trunfo de Wilson, porém – o que o separa de um cineasta amador qualquer – é seu senso aguçado para equilibrar beleza e esquisitice, uma habilidade que chamou a atenção de Nathan Fielder, outro artista conhecido por uma habilidade similar (O Ensaio, a série mais recente de Fielder, já foi recomendada aqui na newsletter da piauí). Fielder virou produtor executivo de How To With John Wilson e vendeu a série à HBO. Ela acabou se tornando um grande sucesso, unanimidade entre os amantes de séries e filmes esquisitos. Wilson, no entanto, decidiu terminá-la na terceira temporada, que teve o último episódio exibido em setembro. Todas as três temporadas estão disponíveis na HBO Max.
De Uma a Outra Ilha, da poeta Ana Martins Marques, é um dos lançamentos recentes da nova série de plaquetes do Círculo de Poemas, uma iniciativa conjunta das editoras Luna Parque e Fósforo, que já foi mencionada em edição anterior desta newsletter. Nessa série mais recente, autores são convidados a eleger o mapa de um lugar real ou fictício e escrever a partir dele. Marques escolhe a ilha de Lesbos, na Grécia. Safo, a poeta mais célebre da ilha, é tema recorrente, e a riqueza histórica da ilha é intercalada com uma parte mais sombria do seu passado recente, como local de trânsito, esperança e opressão de refugiados. Marques constrói um longo poema múltiplo, misturando fragmentos factuais de notícias de jornal com o seu tom mais íntimo e discretamente elegíaco. Mas a elegia é quase sempre tensionada pela experiência absurda e obscena dos refugiados, à qual parece ser impossível prestar testemunho adequado (uma sensação que se aprofunda quando Marques evoca as conversas banais que turistas costumam ter na ilha).
Numa época em que a demonstração de correção moral e social tem certo apelo mercadológico, não é fácil dar um tratamento original a dramas como dos refugiados, alguns dos quais morrem tentando atravessar o mar para chegar a Lesbos. Marques consegue não apenas porque é uma das maiores poetas brasileiras vivas, mas porque parece a antítese do carreirismo, tanto na discrição de sua figura pública como na paciente construção de seus versos, que nunca gritam por atenção, mas ainda assim sempre a conseguem. De Uma a Outra Ilha teve alguns trechos antecipados na edição de maio da piauí; eles podem ser lidos aqui.
“Escrever é muito perigoso.” A frase que dá título à coletânea de ensaios e conferências da escritora polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2018, resume bem o que vamos encontrar na leitura. Na contramão do lugar-comum de que a escrita é uma atividade libertadora, a dedicação à literatura é retratada nesses ensaios como uma forma de servidão: “Alguma vez já pensaram que a fonte da criação literária pode ser o fato de que algo quer ser escrito?”, a autora questiona. Para Tokarczuk, a escrita ficcional é uma atividade demoníaca.
A ideia de que um daimonion dita histórias ao pé do ouvido de quem escreve é bastante conhecida. E Tokarczuk não se acanha ao recorrer a esse mito – que está na base das noções antiga e moderna de gênio – para intervir no debate sobre os rumos da ficção atual. Em “O narrador sensível”, seu belo discurso do Nobel (e também o texto que encerra a antologia), Tokarczuk sugere que a recente proliferação de obras autobiográficas, que ela ironicamente chama de “narrações do tipo ‘vou contar a minha história para você’”, tem como efeito colateral o achatamento da imaginação. “Isso que você escreveu é verdade?”, os leitores não se cansam de perguntar, fazendo coro às vozes que “lutam por atenção” e terminam “por abafar umas às outras” com o seu samba de uma nota só: eu, eu, eu.
Quando deixam de alimentar seus demônios criativos e consideram que narrar as próprias vidas é intrinsecamente interessante, os escritores se esquecem da árdua tarefa de esquecer a si mesmos: “Entrar profundamente na vida de outro ser, entender suas razões, partilhar seus sentimentos, viver sua história.” Para Tokarczuk, o nutriente mais valioso da ficção é a diferença. E esse “outro significativo” não deve se restringir ao humano. “Máscaras dos animais”, um dos ensaios mais provocativos do livro, parte dessa ideia.
A primeira frase é impactante: “Para mim, é mais fácil suportar o sofrimento de um ser humano que o sofrimento de um animal.” Segundo a autora, isso acontece porque dispomos de ferramentas mentais como a cultura e a religião, capazes de atenuar nossa dor, enquanto “o sofrimento do animal é absoluto, total”. Como ela sabe disso? Como chega a essa conclusão? Especulando, fabulando. Em outras palavras, interrogando seus próprios demônios.
É sempre difícil dimensionar qual seria o caminho trilhado por um gênero artístico não fosse o papel exercido por determinado personagem-chave. Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho mostra como o samba poderia ter trilhado outros rumos sem o ativismo de Beth Carvalho. O documentário narra a trajetória de uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca que, na década de 1960, decide virar sambista, aproxima-se dos pioneiros do gênero, e, em 1978, reinventa a música dos morros e subúrbios ao lançar De pé no chão, disco considerado marco fundador do pagode carioca.
O filme retrata esse percurso através do olhar de Beth Carvalho nos seus encontros com nomes como Cartola, Nelson Cavaquinho, Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Jorge Aragão. Nos seus 53 anos de carreira, Beth Carvalho cultivou o hábito de sempre gravar shows, rodas de samba, gravações em estúdio e encontros musicais. As 2.000 horas do acervo da cantora são a matéria-prima para o filme e guardam momentos históricos da música popular brasileira, como Cartola apresentando As rosas não falam e O mundo é um moinho para Beth, Nelson Cavaquinho cantando a versão original de Folhas Secas e as primeiras idas da cantora ao Cacique de Ramos, berço do pagode carioca.
O filme também destaca o caráter político do samba e de sua protagonista. Nas palavras do jornalista Leonardo Lichote, em texto para piauí, o documentário retrata o samba “como espaço de resistência política pela alegria, pela festa”. Beth Carvalho, através da música, estabeleceu um diálogo direto com o povo – ao defender arranjos mais simples nas gravações; cantar versos do samba Virada (‘O que adianta eu trabalhar demais/ Se o que eu ganho é pouco”) em um comício das Diretas Já; ou organizando uma assembleia democrática para definir quais canções entrariam em um dos seus álbuns.
A música Brasileirinho parece um hino nacional não oficial. Diferentemente de canções como Garota de Ipanema, de Tom Jobim, ou Carinhoso, de Pixinguinha, poucos brasileiros associam aquele choro ligeiro, tocado na maioria das vezes por um cavaquinho, ao seu compositor – Waldir Azevedo. Se para as gerações mais novas ele é quase um desconhecido, entre as décadas de 1950 e 1970, Azevedo foi um pop star da música instrumental brasileira e principal divulgador do gênero choro no país e no mundo. Sua música Delicado, por exemplo, foi sucesso mundial, e uma de suas versões, interpretada pela orquestra do canadense Percy Faith, faz parte da trilha sonora do filme O Irlandês, de Martin Scorsese.
Waldir Azevedo, que morreu em 1980, completaria cem anos em 2023. O centenário ainda não foi devidamente comemorado, mas não passou despercebido. A gravadora Biscoito Fino relançou nas plataformas de streaming Waldir Azevedo – O Mestre do Cavaquinho, álbum que o músico Déo Rian produziu em 2000 e permite descobrir ou redescobrir dezessete composições de Azevedo. Além de Delicado e Brasileirinho, temas como Pedacinhos do Céu, Vê Se Gostas, Quitandinha e Cinema Mudo ajudam o ouvinte a conhecer melhor o compositor precursor no uso do cavaquinho como instrumento de solo na música popular brasileira.
Um dos atrativos do álbum é que todas as gravações seguem as partituras originais de Azevedo. É uma característica importante, porque, segundo o cavaquinista e pesquisador Henrique Cazes, que tem se dedicado a organizar e resgatar a obra do compositor, muitas das partituras em circulação hoje em dia não respeitam as composições originais do instrumentista.
Para quem quer ir além, no YouTube se encontram outras duas preciosidades. A primeira é a gravação do show Waldir Azevedo: 100 Anos de um Cavaquinho Brasileiro, com direção do violonista Gian Correa e a participação dos cavaquinistas Henrique Cazes, Messias Britto e Camila Silva. A outra, uma remasterização de um especial sobre Waldir Azevedo gravado em 1979, transmitida no Iº Festival Internacional do Cavaquinho (a partir do minuto 8’20” no link do festival).
O neorrealismo floresceu como linguagem cinematográfica em países cuja estratificação social é bastante desigual. Nos anos 1960, enquanto o Brasil e seu Cinema Novo e outros países periféricos se apropriavam da linguagem surgida na Itália do pós-guerra, a Turquia lançava em 1963 sua obra neorrealista seminal. Verão Seco, dirigido por Metin Erksan, venceu os festivais de Berlim e Veneza e projetou o cinema turco para o mundo. Em tom de fábula, e com simplicidade temática e narrativa, o filme conta a história do ambicioso Osman, um grande proprietário rural que decide irrigar suas terras represando a água que brota de uma nascente em sua propriedade. É um verão árido no interior da Turquia, impedindo que a água chegue a um povoado ocupado por camponeses pobres. “A água é o sangue da terra, você não pode cortá-la”, dizem os camponeses. Osman os desafia: “A água nasce em minhas terras, eu tenho o direito sobre ela. Se querem, se organizem.” Os trabalhadores se mobilizam judicialmente, mas um juiz dá o direito da água para quem tem a posse da terra. Osman tem a propriedade, a lei e a força das armas em seu poder. Se os camponeses não podem contra ele, o tom fabulesco dará conta de que a natureza se vingue.
A exuberante fotografia capta a textura campestre. A paisagem natural é espelho das relações humanas. Se a natureza da água represada é se libertar, o mesmo acontece com o povo subjugado. O fogo toma conta das terras secas e cria um clima tenso onde a paisagem natural ganha vida e vira personagem decisivo na história. O filme toma três lições caras ao neorrealismo: camponeses reais participam do elenco, é falado no dialeto local do povoado, e retrata um drama comum na região.
Apesar da projeção internacional, a carreira de Erksan no cinema estagnou sem apoio de seu próprio país. Verão Seco virou uma joia perdida e esquecida fora da Turquia. Até que em 2008 foi restaurada pela Cineteca di Bologna/laboratório L’Immagine Ritrovata, em associação com o World Cinema Project da The Film Foundation, organização de preservação e restauração de filmes criada por Martin Scorsese. E agora finalmente o filme pode ser visto no Brasil, já que a plataforma Mubi, em parceria com a The Film Foundation, exibe no país dezenas de obras restauradas.
O escritor francês Édouard Louis só teve esse nome no registro civil quando completou 21 anos. Até essa idade, seu nome de nascença fora Eddy Bellegueule. “Eddy” foi escolha de seu pai, um fã da televisão americana que achava que esse era o nome de “um cara durão”. Acontece que, enquanto o homem esperava a dureza do menino, ele gostava de fingir ser uma cantora e dar shows na sala de casa. O pai respondia à decepção com o silêncio, se levantando do sofá para fumar um cigarro na varanda da casa.
Mudar de nome foi a segunda atitude tomada por Louis para tentar romper com as projeções do pai. A primeira foi se tornar escritor. Pouco a pouco, conquistou um lugar entre os mais proeminentes autores gays da atualidade. Hoje, Louis é elogiado pela vencedora do Nobel Annie Ernaux, e circula pelo meio intelectual francês com o escritor Didier Eribon, que conheceu quando era estudante universitário.
A Todavia publicou neste ano dois pequenos livros de Louis que conversam entre si. Em Quem matou meu pai, o narrador elenca memórias da infância para tentar entender o que tornou seu pai uma figura homofóbica e autoritária. Lembra, por exemplo, do dia em que a mãe flagrou o filho dançando no quarto e disse que, dançando, era quando ele mais se parecia com o pai. O pequeno Louis demorou para absorver aquela informação. Por vezes escrevendo como se endereçasse uma carta ao pai, Louis diz: “O fato de que seu corpo já tivesse feito algo tão livre, tão bonito e tão incompatível com sua obsessão pela masculinidade me fez entender que talvez um dia você tivesse sido outra pessoa.”
Louis analisa a formação social e familiar do pai, tentando identificar a origem do comportamento violento que, a certa altura, descreve como “sua loucura masculina”. O pai (que no livro não tem nome) deixou a escola na juventude porque entendia que estudar não era coisa de homem. Cresceu sendo orgulhosamente alcóolatra, racista e antissemita, e terminou a vida como um incapaz, depois de um acidente na fábrica em que trabalhava. “A masculinidade o condenou à pobreza, à falta de dinheiro”, analisa o escritor.
Aquele ambiente também era hostil para a mãe de Louis, que deixou o marido quando o filho ainda era criança e se mudou com ele para outra cidade. Ela é a personagem de Lutas e metamorfoses de uma mulher, o segundo livro traduzido pela Todavia. É o olhar terno de um filho para uma mãe extremamente pobre, responsável pelo sustento da casa e dos filhos. Os detalhes comoventes da história são silenciosos, como no trecho em que Louis aprecia a caligrafia da mãe enquanto ela preenche, pela quarta vez, o formulário de um sorteio que promete deixá-la rica. O leitor acompanha a transformação da personagem enquanto os filhos crescem e apresentam para ela uma nova França, um novo mundo e um novo modo de se relacionar com quem diz amá-la.
A websérie e projeto audiovisual Psicanalistas que falam, iniciada em 2016 e dirigida pela psicanalista Heidi Tabacof, tem uma premissa relativamente simples: a de colocar analistas no papel de analisados. Para aqueles que fazem ou já fizeram terapia, não é difícil entender o apelo desse projeto ou seu título irônico. Ver a própria analista numa posição de vulnerabilidade, falando de si própria ou expondo traumas e pulsões, é um desejo tão comum quanto irrealizável. A série de certa forma supre esse desejo: não há entrevista ou perguntas, apenas um espaço para que cada psicanalista convidado discorra livremente, como se estivesse numa sessão.
No caso específico da convidada Isildinha Baptista Nogueira, em episódio recente lançado em setembro de 2022, um formato instigante dá vazão a algo maior – um testemunho que pode ser lido como uma espécie de documento histórico, em que a história pessoal da psicanalista e uma reflexão sobre sua própria negritude atravessa a dívida histórica da psicanálise com a questão racial, por muito tempo ignorada. Ao recordar os anos que passou na França após seu mestrado, ainda jovem, em companhia de Félix Guattari e outros grandes nomes da psicanálise, ela relembra o senso de dever com que Guattari e outros admitiram terem fracassado em incorporar a negritude como aspecto central dos estudos psicanalíticos.
Mas o relato oral de Isildinha não é acusatório; pelo contrário. Ela ressalta muito mais a experiência definidora de ter se sentido parte de um ambiente intelectual – jantando com esses pensadores, indo a festas – e o que isso gerou para sua vida posterior. A experiência de inclusão intelectual é contrastada com a experiência de exclusão que o racismo gera. Ao relembrar a primeira experiência consciente de racismo na infância e o desamparo de outras experiências similares, a psicanalista chega no aspecto mais cruel do racismo (diferente do preconceito e discriminação): o objetivo intrínseco de “desmonte”, o esvaziamento da identidade. Na rua, o corpo negro se torna apenas isso, despido de seus logros ou das nuances que o compõe – a formação intelectual, os gostos, as idiossincrasias. O relato de Isildinha (o uso do primeiro nome talvez seja mais adequado, já que ela mesmo relata como o sobrenome diz pouco de sua origem) comove ao mesmo tempo que disseca.
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