minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Mathieu Amalric (Pierre) e Nanni Moretti (Giovanni), em O Melhor Está Por Vir Foto: Divulgação

colunistas

O sol do futuro

Novo filme de Nanni Moretti renova, apesar de tudo, a esperança de um futuro utópico

Eduardo Escorel | 03 jan 2024_11h10
A+ A- A

O ano de 2024 começa bem, ao menos no que tange a um lançamento no circuito exibidor. A partir desta quinta-feira (4), a distribuidora Pandora Filmes oferece aos moradores de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte e Fortaleza, entre outras cidades, a oportunidade de assistir no cinema a Il Sol Dell’ Avvenire, batizado no Brasil de O Melhor Está Por Vir, mas que em tradução literal do italiano significa “o sol do futuro”.

A relevância do título original, perdida na versão brasileira, é enfatizada logo na sequência de abertura do novo filme de Nanni Moretti. Tarde da noite, na rua deserta perto do Castelo Sant’Angelo, em Roma, homens lançam, do alto da muralha na beira do Tibre, cordas com pequenas tábuas de madeira amarradas nas pontas. Sentados nesses apoios precários, eles começam a pintar faixas vermelhas. Aos poucos, letras garrafais vão sendo formadas até completarem o imenso título Il Sol Dell’ Avvenire. Em seguida, os pintores fogem correndo enquanto surge, superposto à imagem, o crédito da Regia (Direção).

“…Sapatos quebrados mesmo assim é preciso ir/Conquistar a primavera vermelha/Onde nasce o sol do futuro…” são versos de Fischia il vento (Sopra o vento), de Felice Cascione. A canção, difundida a partir de 1943, festeja a resistência italiana na Segunda Guerra Mundial – era o hino oficial das Brigadas Garibaldi e é considerada a música mais conhecida e importante da luta de liberação.

“Metáfora mais famosa do socialismo”, segundo Alberto De Bernardi, professor de história contemporânea na Universidade de Bolonha, “o sol nascente se tornou, junto com a foice e o martelo, o símbolo decisivo dos partidos socialistas e comunistas até poucos anos atrás. O ‘sol do futuro’ continha, de fato, uma esperança e uma utopia: a esperança de que um ‘novo mundo’ de igualdade, justiça e liberdade pudesse ser alcançado através do confronto incessante com o inimigo de classe – a burguesia capitalista –; a utopia quase religiosa era que o ‘sol’ (o novo mundo) fosse situado em um ‘futuro’ indefinido e que sobretudo estivesse desprovido de elementos constitutivos bem precisos: um meio-termo entre a fênix árabe e o paraíso na terra que se prestou a uma multiplicidade de interpretações, visões de futuro e noções teóricas que teriam atravessado a história do movimento operário ao longo do século XX e sido o prenúncio de dilacerações profundas e rompimentos sangrentos.”

O título do filme contém, portanto, além da metáfora utópica, alusão à crise que levou a “dilacerações profundas e rompimentos sangrentos” – crise resultante desses fundamentos que vem a ser o tema central de O Melhor Está Por Vir. Crise política, em primeiro lugar, mas com dimensão afetiva e profissional, além de se desdobrar ainda no impasse em que se encontra o próprio cinema do nosso tempo.

O filme dentro do filme que Giovanni (Nanni Moretti) está fazendo em O Melhor Está Por Vir transcorre em 1956, durante a revolta de trabalhadores e estudantes na Hungria, contra o regime stalinista. Enquanto assistem pela televisão a imagens em preto e branco dos tanques soviéticos chegando a Budapeste e das ruínas da cidade, Vera (Barbora Bobulová), militante idealista, sussurra para Ennio (Silvio Orlando), editor do jornal l’Unità e secretário da Seção Antonio Gramsci do Partido Comunista Italiano (PCI): “Não posso acreditar que os invasores sejam comunistas como nós. O que acontecerá agora? O que faremos?” Ao que Ennio responde: “Esperemos para ver que posição toma o partido. Vamos esperar.” Seguem-se outras cenas filmadas em preto e branco do conflito na Hungria – um incêndio e o corpo de um homem morto largado na rua.

Adiante no filme, Vera é repreendida por Ennio após fazer uma declaração exaltada dirigida aos integrantes do circo Budavari. Recém-chegados da Hungria, eles suspenderam os espetáculos em solidariedade aos jovens húngaros que arriscaram suas vidas para combater a ditadura soviética: “Nós vamos ajudar! Todo o bairro vai ajudar! Abriremos nossas casas para vocês. Podem contar conosco. Todos nós vimos as imagens dos tanques e os mortos nas ruas. Estamos chocados com a violência da repressão soviética. Nós sabemos de que lado ficar. O Partido Comunista Italiano não os abandonará. Nós comunistas italianos somos diferentes dos soviéticos…”

Não é preciso assinalar que O Melhor Está Por Vir ganha atualidade imprevista ao ser visto neste momento em que a Ucrânia e a Faixa de Gaza estão sendo bombardeadas – atrocidades contemporâneas que remetem às do passado e nos fazem compartilhar a perplexidade e decepção de Vera.

No filme de Moretti, além de política, a crise é conjugal. Giovanni e Paola (Margherita Buy), produtora executiva do filme que ele está dirigindo, são casados há quarenta anos. Ela está fazendo análise sem que o marido saiba e diz ao analista querer se separar, “mas sem conseguir. Nunca é o momento certo”. As sessões têm lugar no decorrer de O Melhor Está Por Vir, até o desfecho, quando ela revela a Giovanni estar indo a um analista há alguns meses: “Vou porque não estou mais feliz com você. Acho que devemos nos separar. Estou indo para ser ajudada… Ajudada a deixar você. Com você tenho sempre medo de errar, medo de seu julgamento. Estar com você se tornou cada vez mais difícil. Você é muito cansativo…”

Giovanni, de seu lado, falando da sua atividade profissional, diz que “gostaria de fazer um filme sobre os cinquenta anos de vida de um casal com muitas belas canções italianas. Os dois se conhecem, se amam, brigam, têm filhos, o tempo passa… e muitas canções italianas.” Ainda que o filme desejado não seja tão diferente do que o que ele está fazendo quanto pode parecer, Giovanni acaba concluindo não poder “continuar fazendo um filme a cada cinco anos” e deixa transparecer o grau do seu desajuste ao interromper a filmagem do plano final de outro filme que Paola está produzindo, revoltado com a violência da cena. Para ele, o que está sendo filmado “prejudica o cinema, faz mal às pessoas, ao espírito. Faz mal a você [dirigindo-se ao jovem e entusiasta diretor, interpretado por Giuseppe Scoditti] que a filma e a nós que a assistimos… Todo mundo está sob um feitiço há anos. Todos: diretores, produtores, roteiristas, sob um feitiço. Então, uma manhã, vocês acordarão e, de repente, começarão a chorar porque vão perceber o que fizeram.”

O paroxismo da crise profissional de Giovanni é atingido no antológico encontro com produtores da Netflix, após Pierre (Mathieu Amalric), seu produtor francês, ser preso. O casal de executivos da empresa americana se gaba a cada frase, sempre três vezes seguidas, de seus produtos serem vistos em 190 países; diz ainda que, “infelizmente”, o roteiro de Giovanni “é um slow burner que não explode [leva tempo demais para ganhar interesse]”; e enuncia regras sobre o comportamento do público, além dos requisitos necessários para prender sua atenção: “os espectadores decidem se continuarão a assistir a um filme nos primeiros dois minutos. É preciso chegar antes ao incidente deflagrador que só ocorre no minuto… enquanto o primeiro turning point [ponto de inflexão] acontece tarde demais” etc. O recitativo banal chega ao clímax com a sentença lapidar que encerra a reunião: “De qualquer forma, há um grande problema. Nesse filme falta um momento what the fuck! (mas que p*!)” Estarrecido, Giovanni emudece. Já na rua, caminha ao lado de Paola por algum tempo em silêncio. Só o que afinal lhe ocorre dizer bem alto é what the fuck!, em inglês mesmo.

Malgrado as variadas adversidades que Giovanni enfrenta, O Melhor Está Por Vir termina com a renovada expectativa utópica de um futuro radioso. Um suposto rompimento do PCI com a União Soviética é estampado em manchete imaginária do jornal l’Unitá: “Adeus, União Soviética!” A passeata comemorativa liderada pela bandinha do circo percorre uma rua de Roma próxima ao Coliseu. Os personagens do filme e participantes de produções anteriores de Moretti celebram. Além de bandeiras vermelhas, algumas com foice e martelo, uma ampliação fotográfica enorme é carregada pelos manifestantes. À primeira vista, parece ser Leon Trótski, mas há quem assegure que se trata de Antonio Gramsci. Montados em um dos quatro elefantes que participam do desfile, Vera e Ennio se abraçam e beijam. O último plano é de Giovanni sorridente e dando adeus.

No final da sequência anterior, Giovanni pergunta em voz off quem disse que “a história não é feita com ‘se’”. E completa: “Eu, pelo contrário, quero fazer história precisamente com ‘se’.” Daí ele se dar o direito de concluir o filme com uma celebração fictícia seguida de uma legenda fantasiosa: “Desde aquele dia o Partido Comunista Italiano se libertou da hegemonia soviética, realizando na Itália a utopia comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, que ainda hoje nos faz tão felizes.”

Afinal, trata-se apenas de um filme de ficção, e Moretti não faz mais do que exercer seu direito à liberdade de inventar.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí