Foliã se diverte em bloco do Carnaval de São Paulo em 2023 (Danilo Verpa/Folhapress)
A classe média cultural se recarnavalizou
Com a ajuda de músicos de vanguarda que resgatam hits dos anos 1990 a cada Carnaval, público desse estrato social deixa de lado recalque com a arte popular e revisita axé music e comportamentos antes elitistas
Uma pergunta difícil: quanto tempo dura o pré-Carnaval de rua? Mais ou menos um mês, quando os músicos e foliões vão esquentando os motores nos circuitos antes da chegada do rei Momo? Seria uma resposta aproximativa. O pré-Carnaval de 2025 começa depois da quarta-feira de cinzas de 2024 – seria uma réplica mais drástica que daria origem a um ciclo infinito onde tudo é Carnaval o tempo todo. Mas se tudo for Carnaval, qual seria mesmo a graça? Se é no contraste entre a vida cotidiana e os dias de folia desbragada que a energia é gerada, essa força estranhíssima que nos leva ao nonsense, ao delírio coletivo e, por fim, à ressaca, que nesse interregno não se transforma em rebordosa moral.
Nós, os autores deste ensaio, andamos meio cismados durante o verão. Moramos na cidade de São Paulo e somos vizinhos no bairro dos Campos Elíseos. Também temos em comum um longo histórico como foliões hardcore, sobretudo na cidade de Salvador, num passado em que o Carnaval de rua ainda não estava na moda por aqui. Hoje a festa cresce desenfreadamente, como tudo nesta cidade, e testemunhamos uma série de fenômenos que pipocam ao nosso redor. É bom dizer logo que este não é um texto do tipo “o Carnaval de Salvador ou de Recife é melhor do que o de tal cidade”. Também estamos cismados com o bairrismo identitário. E nós gostamos do Carnaval de São Paulo. No entanto, não podemos deixar de ver os vários tipos de desfile que passam diante de nós: 1) A ansiedade eufórica que estende o pré-Carnaval e desperta a antipatia dos moradores dos bairros que ficam todos urinados e atulhados de lixo; 2) As marcas de acessórios e roupas caríssimas que alimentam o narcisismo do pessoal descolado nas redes sociais; 3) O aumento da violência, principalmente contra a mulher, incluindo a escolha de Sofia de levar ou não o celular – se não levar, não tem post nem tem como perguntar para os amigos “onde tá o bloco?”; e 4) O folião classe média alta com o discurso de “vamos ocupar as ruas” etc., absurdo que a página do Instagram a Vida de Tina descreve muito melhor do que nós. Essas coisas esquisitas não acontecem só por aqui (em Salvador, por exemplo, o Furdunço do domingo que antecede a festa já engoliu o sábado, originando o Fuzuê), nem são apenas essas, mas vamos deixar de lado – por ora – esse baixo astral.
Dois anos atrás, em nossas andanças, encontramos um livro que concentrava em seu entorno uma série de contradições irresistíveis. Tudo começa com uma epifania: durante os festejos pré-momescos – as caixas de som tocando axé music –, um escritor percebe que o disco Banda Eva Ao Vivo, de 1997, com Ivete Sangalo à frente, é uma obra notável. A partir daí João Varella escreve Me Tirar da Solidão (ou como aprendi a amar Banda Eva Ao Vivo) para tentar entender por que estava curtindo tanto a voz daquela cantora com a qual não simpatizava. Feito como uma autoanálise do gosto e da própria formação, o livro arrisca reflexões estimulantes e muito vivas, sobretudo quando extrapola a autorrepresentação do relato e pensa nas contradições movidas pela gravidade de grandes estrelas da cultura de massa – nas misteriosas forças de atração entre elas e o público.
O tom do texto é de conversa informal; ouve-se a voz empolgada de um interlocutor interessado por música, videogames e literatura tecendo tiradas sagazes durante o papo. Mas para fazer jus ao gesto do ensaísta, é preciso observar com atenção seu autorretrato. A epifania inaugural, a revelação ante a beleza rara, acontece no corpo de um homem de 30 e poucos anos, “no terraço de um prédio no coração de São Paulo”, no contexto de revitalização do Carnaval de rua, quase duas décadas depois do lançamento do álbum. No entanto, em meados dos anos 1990, Varella era roqueiro raiz e queria distância de qualquer coisa que se parecesse com o axé. Aqui o mea culpa dele: “Minha atitude roqueira era diversofóbica. Bem simples de entender: o que estivesse dentro do rock era bom, o que estivesse fora era ruim.” Um personagem bastante conhecido da adolescência, mergulhado naquela rebeldia americana anglófila em vestes negras, que às vezes mantém-se do mesmo jeito pelo resto da vida.
Não foi o caso de João, que, assim como muitos jovens adultos da classe média cultural, hoje é um tipo simpático à folia de rua e às expressões da cultura popular brasileira, incluindo aí artistas e grupos dos quais, no passado, teria vergonha de gostar. Confirmando algumas afirmações que têm circulado bastante entre os jovens adultos de meia-idade da nossa geração: descobriu-se que o frevo é punk (o que Chico Science, Fred Zero Quatro, Otto, Sheik Tosado etc. já sabiam); e que o pagodão baiano de agora é mais rock do que os quarentões tristes e sem bronzeado que outrora se intitulavam rebeldes. Talvez o funk tenha sido um dos grandes responsáveis por fazer a classe média entender que o avant-garde esteve sempre nas periferias.
Mas estamos ouvindo um disco de música baiana dos anos 1990, e a questão é a seguinte: por que hoje em dia é legal gostar de Banda Eva Ao Vivo? Em outras palavras: por que agora é possível amealhar prestígio cultural valorizando esse bem de consumo? Tentaremos entender o que fez o jogo virar.
Por muito tempo, os signos em torno da axé music eram sinônimos do mau gosto que a classe média cultural queria evitar: as letras alienadas das músicas, o Carnaval de Salvador reproduzindo estruturas da violência classista (cordas dos blocos) e machista (beijo à força, para dizer o mínimo), a objetificação do corpo, a onipresença dos artistas nos programas de auditório cuja vulgaridade envergonhava as sensibilidades pensantes que se insurgiam discretamente contra o status quo embrutecedor. Pular e curtir dentro das cordas vestindo os abadás dos blocos de Banda Eva, Claudia Leitte, Chiclete com Banana e Asa de Águia eram coisas de gente inculta e sem consciência social – e muito menos estética –, numa época em que o espaço das ruas foi assaltado por empresas privadas que transformaram os blocos na epítome da festa soteropolitana. Nessa época, o folião pipoca estava em decadência, e foi ainda pior quando os camarotes de luxo lhe tomaram até as calçadas; realidade não apenas da capital da Bahia, pois o formato da micareta foi exportado para todo o país.
Ao longo das décadas de 2000 e de 2010 o cenário foi mudando, inclusive em outras cidades brasileiras, dentre elas São Paulo e Belo Horizonte, que testemunharam o fenômeno do renascimento da festa de rua. Um misto de pulsão popular que acarretou novas demandas por políticas públicas concomitante à ascensão de artistas e de movimentos coletivos que repensaram e repropuseram os moldes da folia. Formaram-se, então, grupos de dimensões variáveis em torno da ideia e da prática da renovação e/ou resgate de tradições: os blocos de rua que abandonaram o som mecânico e pegaram novamente em instrumentos para tocar seus repertórios; o BaianaSystem, que além de reclamar a democratização do espaço urbano através das letras, sempre tocava em trio sem cordas; a presença luminosa e monumental do gênio Letieres Leite (1959-2021) no rearranjo geral das mais poderosas possibilidades musicais e farrísticas pesquisadas dentro e além dos ritmos afro-brasileiros. E muito mais gente.
A sofisticação das empreitadas estéticas desse período é inegável. Se o próprio Leite já participava há muito tempo da axé music e do Carnaval (inclusive ao lado de Ivete Sangalo), a liberdade artística e o grau de experimentação das composições de sua Orkestra Rumpilezz chegaram a níveis nunca antes vistos em nossa música; até o trio elétrico deles tinha formato diferente: um caminhão com as laterais abertas para que o palco colocasse músicos e foliões na mesma altura.
Em São Paulo, surge a Espetacular Charanga do França, bloco que sai por aí tocando arranjos engenhosos de composições próprias e versões personalíssimas de clássicos. Ideias e andanças de Thiago França, um dos músicos mais criativos que já produzimos. A pedagogia lúdica de França libera um repertório que dialoga com referências internacionais e brasileiras, sem amarras puristas. Faz pensar na vibrante cultura carnavalesca dos cortejos de New Orleans, ou melhor, de Olinda.
Este texto não tem a pretensão de fazer o mapeamento das tendências estéticas em jogo no Carnaval de rua contemporâneo, missão quase impossível. A ideia é mais modesta: evocar alguns acontecimentos artísticos inquestionáveis para mostrar que as contribuições desses agentes são únicas e mudaram a relação do público com a festa, implicando também em mudanças comportamentais. Nesse sentido, é importante entender a dimensão das reivindicações das mulheres, que têm intensificado a luta contra a cultura do assédio (o movimento “não é não”, por exemplo) e continuam na luta para criar um ambiente respirável e seguro para as foliãs. Além disso, observar como a briosa participação das pessoas LGBTQIAP+ abala os alicerces das instituições e das normas conservadoras da sociedade. E como não mencionar também o papel das redes sociais?
Nesse bolo de glitter, confete e serpentina, o que se serve é a exibição da vida privada como se fosse pública através de registros infinitos e comprometedores do que antes era vivido como efêmero. Mistérios sempre hão de pintar por aí, mas imagina só se um tal de bebê de tarlatana rosa fosse flagrado no fundo de uma foto de grupo? A conformação da vida off e online transmitida em tempo real, com filtro, faz com que a participação em qualquer evento cultural ou social de um gesto cívico espontâneo se transforme num way of life muito bem codificado e precificado pelo império da publicidade.
Em meio a tudo isso, o gosto da classe média cultural vai se recarnavalizando. É chegada a hora de fazer as pazes com as referências duvidosas que formam parte do repertório desse estrato social que aos poucos descobre uma fonte de energia renovável: desrecalcar a arte popular, desbloquear o plexo solar e cantar a plenos pulmões “minha pequena Eva”.
Voltando ao ensaio de João Varella, sua tese é a seguinte: o movimento da axé music chega ao auge com o disco Banda Eva Ao Vivo, gravado por uma Ivete de 24 anos cuja voz “orgânica, sem concessões; sente a vibração percussiva, prescinde de acrobacias vocais. É pop com qualidades únicas”. O autor é ousado, divertido, competente e, além disso, assume riscos quando, por exemplo, encara a problemática do racismo durante a defesa do álbum– que estampa na capa uma cantora branca –, como o apogeu de uma expressão cultural de matriz negra. Ou quando diz que os solos de sax são fraquinhos, já que ficou cringe achar sax cafona, tanto quanto evitar a cultura popular de massa. Afinal, temos aqui, seguindo um sax, essa multidão que se desloca – de toda parte da cidade e do mundo – para tentar acompanhar a Charanga do França como um bloquinho, uma ideia idílica de passeio carnavalesco no paulistano bairro de Santa Cecília. Ora, o despreparado que cuide do celular e garanta sua água, porque o aperto de corpos para ficar perto dos músicos não amplificados é quase comparável com a agonia de pegar Daniela Mercury saindo do Farol da Barra, fazendo a curva com o trio para entrar na avenida no sábado de Carnaval sem cordas.
Afora o mérito do livro de Varella, quando analisamos as dinâmicas de prestígio artístico-intelectual e as forças de tensão em volta desses discursos, abrimos espaço para uma discussão mais ampla. A reconciliação com o Carnaval só foi possível devido ao trabalho de diplomacia operado por blocos, artistas e movimentos sociais. Continuemos com Thiago França: a charanga tem um arranjo de Arerê (faixa do disco Banda Eva Ao Vivo), sempre motivo de delírio para a multidão. Acontece que antes de virar carnavalesco, Thiago era (e continua sendo) um dos três do Metá Metá, grupo que faz música afro experimental, grande sucesso no meio alternativo – depois de uma longa trajetória pelo choro. Então, quando o Carnaval junta as duas coisas, isto é, um destacado músico de vanguarda tocando na rua um repertório que boa parte de seu público considera de segunda categoria, aí as coisas começam a embolar. O povo começa a entrar em contradição, a pescar na mente melodias recalcadas que agora se mostram úteis, a franzir cenhos e ao mesmo tempo dançar embalado por uma canção que já disse não gostar, mas é Carnaval e a regra é cair na gandaia. Da Anitta de Show das Poderosas a Gloria Groove, não há quem torça o nariz dentro de sua boa camisa florida ou meia arrastão.
O fenômeno guarda sua complexidade, pois os valores dos produtos culturais começam rapidamente a mudar de figura (negativo e positivo) através de reações que se sucedem sem parar dentro dos corpos envolvidos nos eventos de resgate e atualização. Para que Arerê arranjada por Thiago França – ou um velho Ijexá turbinado por Letieres Leite – chegue aos ouvidos do povo, um longo caminho de experimentação e sofisticação formal precisou ser percorrido, de ensaio a ensaio, de festa a festa, de Carnaval a Carnaval. Criar um novo repertório para a festa é uma constante negociação que passa por processos conscientes e inconscientes dos artistas e do público, passíveis de questionamentos em todas as esferas da sociedade, inclusive no mais implacável juiz: o tempo. E aqueles que passam pelo novo Carnaval, ao revisitar as canções antigas já estão contaminados pelas ações daqueles que no presente dão nova vida a elas. Como diria Jorge Luis Borges, o Metá Metá é precursor da Banda Eva. Como finda a Charanga, citando o mais melancólico e erudito dos mestres do samba e do sentimento: o sol há de brilhar mais uma vez. E como entoam Alice Coutinho e Elza Soares: mulher do fim do mundo eu sou e vou até o fim cantar.
é editor, ensaísta e tradutor. Doutorando em Língua, literatura e cultura italianas pela Universidade de São Paulo.
é jornalista musical e doutora em Sociologia pela UFRJ. Edita o blog Poro Aberto
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