Durante os meses de deslumbramento, quem fosse ao Nilton Santos saberia o que é ser multidão. A pessoa se dissolve nas outras e vira uma coisa só, tão grande que não se enxerga a borda CRÉDITO: GUSTAVO PECEGO_2023
O que eu tenho a ver com tudo isso
Sobre por que ser Botafogo
João Moreira Salles | Edição 210, Março 2024
Uma partida de futebol é muita coisa ou coisa nenhuma. A depender da perspectiva, um conjunto de partidas, isso que chamamos de campeonato, é, portanto, ou uma soma de migalhas – 38, no caso – ou uma coisa imensa, dessas que angustiam.
Este artigo é escrito da perspectiva dos angustiados. Dos esmagados. Os 90 minutos de uma partida de futebol não curam os doentes nem consolam os aflitos. Eles não fazem nada acontecer a não ser o próprio jogo. Ainda assim, é enorme a tristeza que podem causar.
Essa tristeza não é uma pose. É a verdade. O absurdo da situação – o contraste entre o tamanho da dor e a frivolidade do motivo – define a condição do esmagado, que provavelmente concordaria com a primeira frase deste artigo, mudando talvez apenas a conjunção: para ele, para nós, uma partida de futebol é muita coisa e coisa nenhuma.
Eu torço pelo Botafogo. Não é fácil explicar o que aconteceu com o meu time em 2023. Apelo então à mais improvável das fontes, o jornal de negócios The Wall Street Journal, que, em artigo de dezembro passado sobre as agruras esportivas de John Textor, proprietário de vários clubes de futebol, dentre os quais o meu, atestou: “A última frustração de Textor veio este mês do Brasil, onde o seu clube Botafogo esteve a um passo de ganhar o primeiro campeonato em 28 anos, apenas para produzir um dos colapsos mais dramáticos que o futebol testemunhou desde 1863, ano em que as leis do jogo foram formalizadas pela primeira vez. Com 14 pontos de vantagem na tabela, o clube carioca tinha apenas onze jogos para disputar. Não venceu nenhum deles e terminou em quinto lugar.”
No primeiro turno do campeonato, o Botafogo ganhou quinze das dezenove partidas disputadas, o melhor desempenho de um time desde a adoção do sistema de pontos corridos para determinar o campeão brasileiro – fizemos 47 pontos. No segundo turno, não chegamos à metade disso. Contudo, era tamanha a margem de segurança construída nos deslumbrantes meses anteriores que, a onze rodadas do final, os estatísticos ainda davam ao Botafogo 90,5% de probabilidade de ser campeão.
Desses onze jogos, bastariam duas vitórias, uma delas contra o futuro campeão, o Palmeiras, ou uma vitória e quatro empates. “Botafogo está bem próximo de confirmar o título brasileiro”, dizia um jornal. Na televisão, André Rizek, um dos melhores comentaristas do país, argumentava que o campeonato tinha se encerrado. O Botafogo já podia encomendar a festa.
E que festa seria. Desde 1995 não erguíamos uma taça relevante. A longa espera daria à vitória uma intensidade inaudita, e o sentido da conquista iria muito além de recompensar uma torcida tão carente. Diria respeito a todos os que gostam de futebol.
Botafogo e Santos são clubes fundamentais na história do futebol. Um nos deu Pelé, o que basta. O outro cedeu à Seleção Brasileira alguns dos jogadores decisivos para a conquista dos nossos primeiros títulos mundiais: Garrincha, Nilton Santos, Didi, Zagallo, Amarildo, Jairzinho. O estilo brasileiro de jogar, o “jogo bonito” da crônica internacional, deve muito a esses dois clubes. Vila Belmiro, sede do Santos, e General Severiano, casa do Botafogo, estão para o esporte nacional como Copacabana e Ipanema para a bossa nova: o lócus onde se inventou algo novo que deu uma alegria ao mundo.
Mas isso foi no passado. O Botafogo teve seus anos de ouro entre o final da década de 1950 e a segunda metade dos anos 1960. Depois, graças a gestões catastróficas, iniciou-se um lento declínio, salpicado aqui e acolá por uns poucos momentos luminosos.
Com o passar do tempo, as leis econômicas do futebol mundial se transformaram radicalmente. A disparidade entre o dinheiro que circula nas ligas europeias e o que está disponível por aqui aumentou de forma exponencial, os nossos maiores talentos se tornaram objeto de desejo global e o nosso futebol empobreceu.
A esse quadro preocupante, somou-se nos últimos anos um fator quem sabe letal para o ressurgimento do grande futebol brasileiro: a concentração de recursos em poucos clubes. Seja porque bem administrados, seja por terem um mecenas ou uma torcida de massa, esses clubes se aproveitaram da nova lógica econômica, segundo a qual se recebe por audiência, e abocanharam a parte do leão das receitas televisivas. Estão no seu direito.
Acontece que o que é bom para um clube pode não ser para o esporte. Concentração de recursos deságua inapelavelmente em concentração de títulos. Bom para quem vence, ruim para quem assiste.
Na Espanha, sabe-se de antemão que o título ficará entre Real Madrid e Barcelona, com Atlético de Madrid estragando a festa a cada ano bissexto. Na França o campeonato é quase tão previsível quanto uma eleição presidencial na Venezuela. O Paris Saint-Germain (PSG), time comprado em 2011 por um fundo soberano do Catar, venceu oito dos últimos dez campeonatos. Na Alemanha, o time dominante é o Bayern de Munique, cujas receitas na temporada 2022-23 chegaram a quase 1 bilhão de dólares. A absoluta dominância econômica se traduz em absoluta dominância em campo. O Bayern venceu dez dos últimos dez campeonatos alemães (este ano pode vir a ser a exceção que confirma a regra). Não conheço muita gente que acompanhe o campeonato alemão. Nada é mais tedioso do que o tédio.
A liga inglesa costumava se sair melhor do que suas congêneres europeias. Mas as coisas vêm mudando. Dos últimos seis campeonatos, cinco foram vencidos pelo Manchester City, clube comprado em 2008 por um membro da família que governa os Emirados Árabes Unidos, com fortuna avaliada em dezenas de bilhões de dólares. Em novembro de 2023, um artigo do jornal The New York Times reproduzido pela Folha de S.Paulo atribuía o sucesso do City à competência do treinador, o espanhol Pep Guardiola, e a “um suprimento aparentemente ilimitado de dinheiro”.
E por aqui? De 2014 para cá, o Campeonato Brasileiro foi vencido por cinco clubes, uma alternância animadora não fossem os últimos cinco anos, quando Palmeiras e Flamengo, cada qual com dois títulos, começaram a cristalizar seu domínio sobre os rivais. São os clubes mais valiosos do Brasil. São também os de maior receita, maior investimento e de elenco mais caro.
O Palmeiras gastou o triplo do Botafogo para montar a equipe de 2023; o Flamengo gastou quase sete vezes mais. Ainda assim, de abril a novembro do ano passado, meu clube exerceu uma liderança inquestionável durante a maior parte daqueles longos e lindos meses. A poucas rodadas do fim do campeonato, o Botafogo estava prestes a bater os dois.
A pergunta, então, é se o fato de não ter batido simplesmente confirma a inexorabilidade do triunfo dos mais ricos ou, por outra, se aí não se vislumbra um futuro em que é possível vencer o poderio econômico, ainda que esporadicamente e a duras penas.
O poeta francês Paul Valéry tem uma bonita definição de acaso. “Existe acaso”, ele diz, “quando se produz o que é possível em detrimento do que é provável. Em lugar do esperado, outra coisa aparece e nos ensina que ela também podia ser.”
Não houve acaso na nossa derrota. Ou melhor, não houve apenas acaso. Se penso aqui na formulação de Valéry, é por causa da ideia de que, às vezes, somos surpreendidos pela constatação de que outra história pode acontecer. Em 2023, não foi uma impossibilidade estrutural que impediu essa “outra coisa” de vir à luz. A derrota foi nossa, mais do que a vitória foi deles. E por isso, paradoxalmente, apesar da dor e da tristeza, há razões para não esmorecer.
O Botafogo começou 2023 como coadjuvante do futebol brasileiro, repetindo um desempenho de décadas. Durante boa parte dos anos anteriores, nossa mais sincera aspiração no Campeonato Brasileiro era evitar o rebaixamento, o que nem sempre conseguíamos. Caímos para a série B em 2002, 2014 e 2020.
Em dezembro de 2021, bem a tempo do Natal, um americano apareceu na nossa vida. John Textor, empresário do ramo do entretenimento, demonstrou interesse em comprar a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Botafogo. Consumada a compra, todos os ativos ligados ao futebol do clube – equipe, estádio, contratos comerciais – pertenceriam a ele.
Em março de 2022, Textor assinou a papelada e se tornou dono do nosso futebol. Com histórico de alguns sucessos e fracassos nos negócios, ninguém o confundiu com um fundo soberano árabe. Não anunciava gastos a fundo perdido, fosse por não ser senhor do petróleo do mundo, fosse porque seu intuito era tornar rentável a operação para, mais adiante, revender o Botafogo por mais do que comprara. Sim, o time voltaria a ser competitivo, prometeram, mas não em um ano ou dois – a médio prazo, depois que os investimentos na estrutura profissional e na formação de base dessem fruto. Por ora, o essencial era que a nova gestão traria alguma racionalidade à administração das nossas coisas. A torcida entendeu e celebrou a mudança.
Para torcida e imprensa, havia um consenso em relação a essa fase inicial da SAF: bom resultado seria um campeonato sem pesadelos de rebaixamento. Em 2022, havíamos terminado em 11º lugar, e não sem flertar com a queda. No primeiro jogo de 2023, pelo desprestigiado Campeonato Carioca, conseguimos a façanha de perder para um time nascido das costelas de um supermercado e cuja folha salarial era uma fração da nossa. Terminamos em 5o. lugar.
Pois seria esse mesmo Botafogo que, a partir de abril, entraria em campo para enfrentar Palmeiras, Flamengo, Grêmio, São Paulo, Corinthians, Atlético-MG, os times mais valiosos e fortes do futebol brasileiro.
E que Botafogo era esse?
Essencialmente, um time de homens comuns. Eles foram chegando aos poucos, alguns no início de 2022, outros dali a uns meses, outros ainda no início de 2023. Nenhum vinha com pompa, nenhum dava manchete de jornal ou carregava multidões para o aeroporto. Tivemos que ir ao Google para nos informar sobre eles: Tiquinho, Carlos Eduardo, Adryelson, Lucas Perri, Segovinha, Gustavo Sauer, Lucas Fernandes, Victor Sá, nomes sem cachê, alguns deles desconhecidos até de boa parte da imprensa.
Desse conjunto de homens maravilhosamente normais, nenhum representou melhor o Botafogo de 2023 do que Tiquinho Soares. Paraibano, 32 anos, sua vida fora dos campos chama a atenção pelo que não aparece nela. Ibiza, Miami, joias que valem carros, carros que valem apartamentos, esses e outros acessórios do jogador de futebol bem-sucedido não fazem parte da sua persona pública.
Nas férias de fim de ano, Tiquinho trocou destinos caros pela sua cidade natal, Sousa, onde virou o ano junto de velhos amigos com os quais jogou bingo marcando a cartela com grãos de milho. Na folga depois de uma vitória do Botafogo, pôde ser visto no bondinho do Pão de Açúcar. Na foto que registrou o passeio, na qual aparece ao lado da esposa, dos filhos e dos pais, ninguém se preocupa em ser instagramável. Eles estão só vivendo a vida, contentes na companhia uns dos outros.
Tiquinho passou anos pulando de clube pequeno para clube pequeno – times chamados Visão Celeste, Corinthians Alagoano, Caicó, Veranópolis, Cerâmica – até chegar a um clube de expressão, o Porto, de Portugal. Tinha 26 anos, idade já meio tardia para um jogador deslanchar uma carreira internacional. Embora sem ganhar títulos, saiu-se bem no Porto. De lá, jogaria ainda na China e na Grécia, vindo para o Botafogo no segundo semestre de 2022 sem nunca ter disputado as ligas principais do futebol europeu.
Encontrou aqui uma equipe dirigida por Luís Castro, técnico português na casa dos 60 e com uma carreira (até então) relativamente modesta. Contratado por Textor em março de 2022, a princípio foi bem recebido pela torcida. Tinha o que se pode chamar de papo reto: dizia as coisas como eram, não dourava a pílula. Sorria pouco e parecia entender do riscado.
Nos meses iniciais de 2023, com o desempenho pífio do Botafogo no estadual, a coisa perigou desandar. Castro se tornava cada vez mais áspero e mal-humorado com a imprensa e a torcida. Não parecia à vontade no Brasil, como se carregasse o que Kipling chamava de white man’s burden, o fardo do homem branco, o suposto sacrifício do colonizador europeu que se desloca para terras incultas a fim de cumprir o pesado dever de civilizá-las (para outro exemplo dessa mesma presunção, ver as coletivas de Abel Ferreira, conterrâneo de Castro e técnico excelente do Palmeiras). Na perna final do campeonato estadual, uma faixa no estádio pediu sua demissão. À beira do campo, Castro ouviu: “Burro! Burro!” Dependendo da versão que se compre, o Botafogo pagaria caro por essa faixa e por esses gritos.
E foi assim, com mais angústia do que esperança, que estreamos no Campeonato Brasileiro de 2023, contra o São Paulo. A partida aconteceria no Estádio Olímpico Nilton Santos, a nossa casa, cujo gramado sintético tinindo de novo seria inaugurado naquele 15 de abril. Vencemos por 2 a 1, com Tiquinho marcando aos 3 minutos do primeiro tempo e Carlos Eduardo, um meio-campista de 33 anos que pouco antes jogava na Arábia Saudita, desempatando a 8 minutos do apito final.
Vencemos a segunda partida também: 1 a 2 contra o Bahia, jogando na casa deles. De modo geral, para não ser rebaixado, um time precisa somar 45 pontos ao longo do campeonato. “Já temos 6, só faltam 39”, diziam meus amigos (e eu também) – era essa a conta que estávamos acostumados a fazer.
Veio a terceira partida, agora contra o Flamengo, o Golias diante do qual somos todos Davi enfrentando a petulância natural dos mais fortes. No Maracanã, terreno deles, éramos uma gota alvinegra num oceano de rubro-negros. Não só ganhamos, mas ganhamos com um jogador a menos. Tiquinho marcou duas vezes, uma delas quando já jogávamos com dez.
Naquele domingo, dia 30 de abril, assumimos a liderança do Brasileiro. Agora só faltavam 36 pontos para chegar aos 45 da segurança – ao sair do Maracanã como quem flutua, muitos de nós provavelmente fizeram essa conta na cabeça. Sei que eu fiz. Mas lá num canto da consciência uma vozinha acanhada começava a se perguntar: Será?
Vencemos o jogo seguinte, Botafogo 2 a 0 Atlético-MG. Foi durante a quinta partida – Botafogo 3 a 0 Corinthians – que os amantes do futebol repararam que algo andava acontecendo com o time de Luís Castro. A vitória foi avassaladora e, melhor, construída por atletas que pareciam jogar sorrindo. Tiquinho marcou duas vezes, consolidando a posição de artilheiro do campeonato. Ao narrar o terceiro gol, marcado por Carlos Eduardo depois de uma linda troca de passes entre boa parte do time, o locutor do canal Premiere, Gustavo Villani, abriu a caixa de superlativos: “Gooooooool de um encantáááádo Botafogo!”, “Gol! Gol! Gol! Golaço de videogame! Toca aqui, toca ali, não tá mais comigo!”, “É futebol do jeito que o brasileiro gosta!”, “Que time é esse?!” E não demorou a vaticinar o que todos nós começávamos a ter coragem de pensar em voz alta: “O Botafogo entra no campeonato pra valer.”
Eu não tinha conseguido ir ao estádio. De casa, mandei um e-mail para o meu filho, que sem dúvida assistia ao jogo mesmo estando fora do país: “Cê tá vendo isso? Inacreditável.” Em minutos, recebi uma selfie que mostrava três caras na frente de uma tevê: “Três botafoguenses incrédulos que nunca viram o Botafogo jogar assim.” Os olhos dele estavam esbugalhados.
Era a primeira vez que o Botafogo ganhava as cinco primeiras partidas do Campeonato Brasileiro, e apenas a segunda vez que algum clube realizava essa proeza na era dos pontos corridos. Os 7 mil torcedores que costumam ir ao estádio independentemente da situação do time agora já eram 20 mil. Luís Castro, hostilizado poucos meses antes, começava a ser celebrado pelas arquibancadas.
Nos meses seguintes, Tiquinho não parou de marcar gols e o time não parou de encantar. Jogamos mal umas poucas vezes, vencendo até quando não merecíamos. Na nossa casa, no gramado que logo ganhou o apelido de Tapetinho, não perdemos uma só partida no primeiro turno. Melhor: ganhamos todas.
Em 25 de junho, dois meses e meio depois do início do campeonato, fomos a São Paulo enfrentar o Palmeiras, então campeão brasileiro e o clube mais vitorioso dos últimos anos. O empate seria um ótimo resultado, dado o contexto, e nem a derrota mudaria muito as coisas. Nossa vantagem acumulada era mais do que suficiente para nos manter no alto da tabela mesmo com um placar adverso. Além disso, o Botafogo jamais vencera no Allianz Parque, o estádio deles.
Pois nós vencemos. Quando, às 16 horas daquele domingo, os dois times entraram em campo, 9 pontos separavam o primeiro colocado de seu adversário mais imediato, exatamente o Palmeiras. Encerrada a partida, a diferença havia passado para 12 pontos. Embora com dois terços do campeonato ainda pela frente, entre nós e os outros se abrira um abismo quase intransponível.
Ou, por outra: intransponível em condições normais. Para observadores atentos, a vitória trazia duas notícias. A primeira, sobre por que esse time era tão especial, tão bonito. A segunda… Bem, a segunda tratava daquilo que todo botafoguense sempre soube e que naquele fim de tarde quis desesperadamente esquecer. Parafraseando o poeta T. S. Eliot, que era botafoguense e não sabia, tratava do fato de que, entre a intenção e o ato, cai a sombra; de que entre o esforço e a conquista, cai a sombra; de que entre a esperança e a graça, cai a sombra. A sombra quase sempre cai.
Tiquinho, de novo ele, foi quem marcou o único gol da partida. A jogada foi inteiramente dele, mas Tiquinho não comemorou. Ao menos, não de imediato. Enquanto corria ao encontro da torcida, acenou para o time, pedindo que se juntassem a ele. Vieram todos, e até o banco foi convocado. Só quando se viu cercado dos companheiros Tiquinho festejou o gol, todos juntos pulando abraçados.
Diante de 39 mil torcedores e de outros tantos milhões assistindo pela tevê, o jogador mais vistoso do Botafogo, àquela altura já considerado pela imprensa o craque do campeonato, preferiu não chamar atenção para si. O Allianz testemunhou o contrário do solipsismo característico do jogador-celebridade, que gosta de se exibir como herói providencial. Tiquinho não se apresentava como alguém melhor do que seus pares, nem mesmo como o primeiro entre iguais. O gol, a vitória, a campanha até então exemplar, tudo era de todos.
Tinha sido esta a mágica de Luís Castro: transformar bons jogadores – apenas isto: bons – num time maravilhoso, num conjunto maior – muito, muito maior – do que a soma das partes. Tão ou mais importante, escolhera bem os homens que defendiam as cores do meu time. Eram gente solidária, alegre, profissionalmente séria e, até prova em contrário, bons cidadãos. Nossos principais jogadores não faziam arminha com as mãos, pronunciavam-se contra o racismo, não se metiam em confusão.
Algum tempo depois, recebi de um amigo mineiro, grande botafoguense, um e-mail curto. “Uma só pergunta”, dizia o campo do assunto: “É o melhor Botafogo que você já viu?” Se era o melhor eu não sabia, mas respondi que, sem dúvida nenhuma, era “o mais fácil de amar”. E, como a mensagem tivesse chegado depois de mais uma vitória nossa (4 a 1 contra o Coritiba, dois gols de Tiquinho), confessei: “Ontem – ai, ai, ai – chorei na hora da virada. Em pleno estádio, me debulhei em lágrimas. Que coisa…”
De fato, que coisa, e não apenas por causa do meu sentimentalismo. Tampouco porque agora não eram mais 7 mil torcedores no estádio, nem 20 mil, nem 30 mil. Eram 40 mil. Que coisa, porque na partida contra o Coritiba, a penúltima da primeira fase, já não era Luís Castro quem dirigia o Botafogo. Não era tampouco o sucessor dele. Não: era um terceiro técnico.
Até onde sei, não existe caso igual nos anais do futebol. Clubes trocam de técnico nas crises, não na glória.
Era a sombra.
A sombra nos chegou sob a forma longilínea e atleticamente irretocável de Cristiano Ronaldo. Cristiano Ronaldo! Ele, um dos dois maiores jogadores do século XXI, eleito cinco vezes o melhor do mundo. Cristiano Ronaldo, que provavelmente até então jamais dispensara mais de 2 segundos de atenção ao Campeonato Brasileiro, que dirá aos clubes brasileiros, que dirá então ao Botafogo.
Pois em 2023, exatamente em 2023, essa espécie de Taylor Swift do desporto mundial decidiu espichar os olhos na nossa direção. Mais precisamente, na direção de Luís Castro. No penúltimo dia de 2022, Cristiano Ronaldo assinou um contrato de dois anos e meio com o clube saudita Al Nassr. Prestes a completar 38 anos, CR7 dedicaria o resto de sua carreira a deslumbrar os estádios da Arábia Saudita, decisão regiamente recompensada pelo príncipe Mohammed bin Salman, herdeiro do trono e autocrata que efetivamente dá as cartas no reino.
Bin Salman e seu país estavam com problemas de imagem. Em outubro de 2018, o jornalista exilado Jamal Khashoggi fora morto e esquartejado dentro do Consulado-Geral da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia. Seu assassinato gerou uma torrente internacional de críticas ao governo saudita. Tanto a CIA quanto a ONU indicaram que Bin Salman era o provável mandante do crime.
Montou-se então uma operação de relações públicas em que o futebol desempenharia um papel-chave. A ideia era criar do nada uma liga capaz de atrair – e desviar – a atenção do mundo. Em 5 de junho de 2023 o Estado saudita deu a última demão de tinta na sua lavanderia ludopédica. O fundo soberano nacional comprou quatro dos cinco clubes mais vitoriosos do país, dentre os quais o Al Nassr de Ronaldo. CR7 estava feliz com os 210 milhões de dólares que receberia por ano, mas, já sendo um homem rico, não seria um caminhão de dinheiro a mais que satisfaria a sua ambição. Como todo atleta excepcional, ele queria vencer também. Jogadores quase tão talentosos quanto ele e, pior, bem mais jovens estavam sendo contratados para os times rivais.
Que os ventos dessa barafunda geopolítica envolvendo assassinatos escabrosos, autocratas caídos em desgraça e celebridades planetárias tenham bafejado o Botafogo é de cair o queixo. Se a liga saudita tivesse sido estruturada em 2022, a vida seguiria igual para o meu time; se em 2024, idem. Mas não. Ela, essa imensa improbabilidade, essa quimera político-desportiva, veio à luz exatamente em 2023, o ano em que o Botafogo surpreendeu o Brasil com seu futebol feliz, jogado por homens corretos mas atletas apenas talentosos, não excepcionais. Era o técnico que extraía deles o que não parecia possível.
Não faço ideia se Cristiano Ronaldo acompanhava a carreira de Luís Castro antes de 2023. O mais provável é que soubesse quem era, um pouco, digamos, como Chico Buarque sabe quem é Benito di Paula. Sua maior conquista antes de chegar ao Botafogo havia sido o título de campeão ucraniano, conquistado em 2020 pelo Shakhtar Donetsk, time do qual seria demitido um ano depois por não repetir os bons resultados. Foi certamente o desempenho do Botafogo a partir de abril de 2023 que o tornou alvo de interesse. Ronaldo estava à cata de um técnico competente que, fazendo frente a rivais cada vez mais competitivos, fosse capaz de lhe dar mais títulos.
Outra condição, claro, era que o escolhido se dispusesse a trocar o que estivesse fazendo por uma casa em Riad e um trabalho na periferia do grande futebol. Isso excluía praticamente todos os técnicos de renome com bons empregos nas potências europeias. Já alguém no Rio de Janeiro, dirigindo um clube que ensaiava os primeiros passos para recuperar a sua antiga glória…
Dois dias depois da vitória do Botafogo sobre o Palmeiras, enquanto nós, botafoguenses, ainda vazados de luz, nos reuníamos nos bares da cidade para reviver cada minuto da partida, Cristiano Ronaldo ligou para Luís Castro. Disse algo assim: “Venha para cá me treinar, você é o técnico de que eu preciso.”
Difícil exagerar a potência desse chamado. Se Silas Malafaia recebesse um telefonema de Jesus dizendo “Silas, estou dando uma última ceia, quer aparecer?”, o impacto não seria tão maior assim. Para qualquer treinador, ser cobiçado por Cristiano Ronaldo representaria um ponto altíssimo na carreira, que dirá na de Luís Castro, profissional que, já tendo passado dos 60 anos, nunca comandara um jogador daquele calibre. Quando o dito jogador é um seu conterrâneo, o mais célebre português desde dom Sebastião, aceitar deve ser quase um dever patriótico. E outra coisa: a proposta saudita representava a independência financeira de várias gerações de Castros. Respondendo ao chamado de CR7, Luís Castro se tornaria um dos dez técnicos mais bem remunerados do mundo.
Botafoguenses espalhados pelo país apelaram para que ficasse, alguns com o argumento sentimental (“Não nos abandone”), outros partindo para a vulgaridade (“Não seja uma prostituta”). Era injusto. Duvido que, postos na situação de Castro, algum deles recusaria a proposta. Futebol não é poesia.
Meses depois, Castro diria que um dos fatores que o fizeram partir havia sido a lembrança da faixa e das vaias no início de 2023. Igualmente injusto, agora com os torcedores. Poderia ter sido mais decoroso: “Fui porque uma das formas de reconhecimento profissional é o quanto te pagam, e os sauditas me valorizaram como nunca fui valorizado antes. Além disso, Cristiano Ronaldo é parte da história do meu país. Minha ligação com ele é muito mais profunda do que com qualquer jogador brasileiro.” Razões legítimas e honestas.
O jogo contra o Palmeiras foi o último em que o Botafogo atuou sob a direção de Castro, que partiu para Riad com um saldo de dez vitórias nos doze primeiros jogos do Brasileiro e deixava o seu agora ex-clube na posição de líder inconteste da competição.
Existe uma foto minha no Nilton Santos, tirada em seguida à vitória por 2 a 0 contra o Bragantino, em julho do ano passado. Só soube dela depois, quando um amigo me mostrou. Estou de costas para a câmera, de braços abertos para a torcida. Muita gente, imagino, fez o mesmo gesto logo que o juiz apitou o fim do jogo. Era a resposta instintiva do corpo ao que sentíamos por dentro, uma conexão profunda com os outros, uma dissolução da parte no todo, como se as barreiras entre nós e o mundo tivessem sido suspensas.
Durante os meses de deslumbramento, quem fosse ao Nilton Santos saberia o que é ser multidão. Você é velho, jovem, doente, saudável, gordo, magro, homem, mulher, e na hora isso se torna irrelevante porque você virou uma coisa só, uma coisa muito grande da qual não se enxerga a borda. É um sentimento poderoso. Quem experimenta não quer mais se privar.
Um amigo, pesquisador importante na área ambiental, estava na Polônia por razões de família. Sexta à noite, encerrada a visita aos parentes, saiu às pressas, cruzou a fronteira e foi dormir em Praga; acordou de madrugada e embarcou num avião para Paris; de lá, em voo diurno, seguiu para o Galeão, onde aterrissou às 20h15; pulou num táxi de mala na mão e, pouco depois das 21 horas, entrou no Nilton Santos para ver o Botafogo vencer o Fortaleza com dois gols de Tiquinho.
O que ele queria, o que todos nós queríamos durante aqueles meses, era viver o momento em que deixamos de ser nós mesmos e passamos a ser todos. Passamos a ser Botafogo. Não botafoguenses – Botafogo. O clube éramos nós, a vitória deles era a nossa vitória, o gol do Tiquinho era o nosso gol, um gol do qual nos orgulhamos pessoalmente, como se todos nós – eu, o meu amigo da Polônia, cada torcedor no Nilton Santos – tivéssemos posto a bola lá dentro.
Há algo de inexplicavelmente narcísico nessa experiência. Em agosto, mandei para o meu filho o link de uma mesa-redonda em que todos se derramavam em elogios ao Botafogo. Ele respondeu: “Eu fico até sem graça.” “Estranho, né?”, devolvi; “Parece que tão falando da gente. Encabula.”
A foto no Nilton Santos é o registro de alguém que não tem passado nem futuro, só presente, e naquele instante o presente não tem hora para terminar, é sem fim. Todo torcedor vive algo parecido. Logo, não sendo privilégio dos botafoguenses, não é exatamente disso que quero falar aqui. A imanência é real, mas passa. O que me interessa é o que vem depois, a necessidade de encontrar um enredo do qual eu, como botafoguense, seja personagem. O que me interessa é o impulso de lembrar depois da coisa acontecida. Lembrar de estar dentro, sim, não do momento, mas da trama. No fim das contas, a multidão é feita de pessoas. O que distingue – se é que distingue – a pessoa de uma torcida da pessoa de outra torcida? O que significa ser botafoguense?
De certa forma, quando Luís Castro partiu, o melhor ainda estava por vir. E, ainda que não soubéssemos, a bonança traria dentro de si, tragicamente, a sua contradição. O Botafogo de 2023 é um prato cheio para quem gosta de dialética.
John Textor buscou uma solução caseira e temporária para cobrir a saída de Castro. De Lyon, onde é proprietário do time local, trouxe um auxiliar técnico do clube, Cláudio Caçapa. Mineiro simpático, de fala mansa e ótimo trato com os jogadores, Caçapa assumiu interinamente o comando do Botafogo. Nunca tinha dirigido um time profissional.
Uma vez mais, botafoguenses foram ao Google para saber quem era esse novo técnico. Quando Caçapa se despediu do clube treze dias depois, todos já sabiam: ele era o interino mais querido do Brasil. Foram quatro partidas sob seu comando, quatro vitórias, todas por 2 a 0. Oito gols marcados, nenhum sofrido. A quatro partidas do final do primeiro turno, Caçapa deixava o Botafogo com uma vantagem de 12 pontos sobre o Flamengo, o vice-líder.
O mal foram esses 12 pontos.
Compreensivelmente, Textor queria um técnico experiente para conduzir o Botafogo mansamente até o título, sem sustos, visto que o trabalho duro de abrir uma distância quase invencível sobre os rivais já estava feito. Encontrou-o de novo em Portugal. Chamava-se Bruno Lage, tinha 47 anos e um currículo mais robusto do que o de Castro. Fora campeão em seu próprio país, dirigindo o Benfica, e havia treinado um clube da Premier League, o campeonato inglês, destino cobiçado por qualquer técnico ambicioso.
Ao aceitar o convite de Textor, Lage se pôs numa enrascada. Cinco dias antes da última partida de Caçapa à frente do Botafogo, escrevi aos meus amigos sobre o dilema do novo treinador português: “Não gostaria de estar na pele dele. Afora o bom salário, o cara tem muito mais a perder do que a ganhar. Se for campeão, será inevitável que as pessoas lembrem que ele assumiu um time encaixado e com 10 pontos de vantagem sobre o vice-líder [dali a cinco dias, cresceria para 12]. Se perder, terá desperdiçado uma vantagem quase imbatível. Um péssimo negócio. Mas isso é problema dele. O nosso é Lage querer imprimir a marca dele no time.”
Botafoguenses oscilavam entre querer a permanência do interino e exigir a contratação de um técnico calejado. Eu era um dos oscilantes. Num dia, escrevia: “Continuar com o Caçapa de fato tem as suas vantagens. É muito difícil imaginar que um técnico de renome não queira mudar muita coisa.” No dia seguinte, argumentava o oposto: “Muito provavelmente, no decorrer da competição teremos que nos adaptar a circunstâncias novas e aí precisaremos de um técnico experiente. Caçapa funciona bem nas condições atuais. Mudou o barômetro, ele passa a ser uma aposta arriscadíssima, que nenhum dirigente (ou torcedor) toparia bancar em situação normal.”
Cristiano Ronaldo foi um raio em céu azul. Uma fatalidade sobre a qual não tínhamos controle. Bruno Lage, por sua vez, foi um erro forçado. Erro cometido de boa-fé, de quem quis acertar. E não foi nem o maior que cometemos. O erro maior, quem sabe?, pode ter sido demiti-lo dois meses e meio depois, como viríamos a fazer, quando faltavam somente treze partidas para o término do campeonato e a nossa vantagem seguia bastante confortável. Olhando hoje pelo retrovisor, a impressão é de que àquela altura não havia mais escapatória. As engrenagens da derrocada já estavam girando, silenciosamente ainda, mas de modo fatal.
Lage fez o que se temia. Começou a mexer no time, mudando a escalação e testando outras formas de jogar. A equipe passou a oscilar e vieram os empates, uma novidade na nossa vida de líderes do campeonato. Até ali, só tínhamos vencido (muito) ou perdido (pouquíssimo).
Em 2 de setembro recebemos o Flamengo em casa. Lage enfrentaria pela primeira vez um dos rivais cariocas do Botafogo, e logo o maior deles. Foi uma partida esquisita. Com 1 minuto de jogo, marcamos um gol contra, o que desestabilizou a equipe. Chegamos a empatar, mas o time não estava bem escalado e o Flamengo não teve muita dificuldade em passar à frente no segundo tempo.
Perder para o clube mais rico do Brasil por um placar apertado é um resultado normal. Estranho é o que veio depois da partida. Na coletiva de imprensa, sem nenhum aviso, Lage pôs o cargo “à disposição do Botafogo”. “Que maluquice!”, escreveu um amigo; “Que loucura!”, exclamou outro; “Que coisa estapafúrdia!”, desesperou-se um terceiro.
O comando do Botafogo fez que não ouviu e manteve Lage no posto. Não havia emergência, ao menos não visível. Na pior hipótese, apenas uma sensação difusa de que Lage começava a se dar conta da arapuca em que voluntariamente tinha se metido. Os 12 pontos de vantagem que herdara de Castro e Caçapa estavam cobrando seu preço. Tivesse recebido um Botafogo em luta ponto a ponto pela liderança, ele talvez fosse mais conservador, mantendo o que vinha funcionando bem. Um campeonato ganho em condições mais difíceis seria uma vitória dele, conquistada palmo a palmo, partida a partida. Nossa grande vantagem foi também a nossa maldição.
Do nada, Lage conjurou uma crise e com isso deu concretude ao que não passava de uma suspeita: a de que o time começava a perder o brilho e a autoconfiança. Pela primeira vez no campeonato, éramos derrotados no Nilton Santos. Tinham sido onze vitórias seguidas diante da torcida (dezesseis, se contarmos outras competições), uma maré tão favorável que dera origem à mística do Tapetinho. Durante cinco meses o Tapetinho foi a nossa poção mágica – nossa, dos torcedores, e deles, dos jogadores. Alguma coisa se quebrava ali.
A grande angústia alvinegra de 2023 começou naquela 22ª rodada. Que mais da metade da competição tivesse ficado para trás, que já antevíssemos a linha de chegada, isso só aumentaria a dor que estava por vir. “Por que diabos isso afeta tanto a gente? Não somos nós em campo, não fazemos nem sofremos gols, não escalamos o time, ninguém ali é meu amigo, parente, irmão”, desabafei com os amigos na noite da derrota.
Às 5h45 da manhã seguinte, cansado de revirar na cama, fui correr. Cruzei com umas quatro ou cinco camisas rubro-negras. Cada uma delas parecia acusar o meu fracasso. Meu fracasso, não do Botafogo. Vá entender.
Dali em diante não venceríamos mais nada no Tapetinho.
Perdemos as duas partidas seguintes. Na terceira, contra o Goiás na nossa casa, Lage tomou a decisão que se revelaria fatal para a sua permanência no Botafogo: deixou Tiquinho no banco. O artilheiro do campeonato, eleito pela imprensa o melhor jogador da competição até ali, sacado do time. Ninguém entendeu.
Para piorar, a sorte não estava com Lage. Terminado o primeiro tempo, perdíamos por 0 a 1. Lage foi para o vestiário sob um misto de vaias e pedidos desesperados para que Tiquinho entrasse em campo. Tiquinho entrou. Aos 6 minutos do segundo tempo, inventou um gol do nada e empatou a partida, encerrada num melancólico 1 a 1. Lage foi demitido no dia seguinte.
Era a 25ª rodada, faltavam treze para o fim do campeonato e o Botafogo sempre no topo da tabela, agora com 7 pontos de vantagem sobre o novo segundo colocado, o Bragantino. Havíamos assumido a liderança em abril e já era outubro. Ninguém nos ameaçava e, mesmo assim, apesar do claro domínio durante toda a competição, o Botafogo estava prestes a entrar no seu quarto técnico. Times à beira do abismo ou mesmo já despencando penhasco abaixo não trocam quatro vezes de técnico na mesma temporada.
Desconheço torcedor que não tenha suspirado de alívio com a demissão de Lage. Uma vez mais, a direção do Botafogo fazia o que parecia certo. O Botafogo de 2023 é uma história em que a catástrofe foi sendo construída à base de boas intenções. No recesso dos nossos quartos, diante da foto de Tiquinho que colamos na parede, nós, torcedores, deveremos admitir que apoiamos a maioria das decisões tomadas.
Retrospectivamente, hoje desconfio que Lage percebeu alguma coisa que não tínhamos como enxergar. Na semana anterior à partida contra o Goiás, Tiquinho havia treinado todos os dias. Depois de observá-lo, Lage decidiu mantê-lo no banco. Como os treinos são fechados, não sabemos o que ele viu. O fato é que, dois meses antes, Tiquinho havia sofrido uma contusão que o deixara quase trinta dias fora de combate. Nesse período, seu pai, a quem é muito ligado, foi diagnosticado com uma doença grave. Quando Tiquinho voltou, não quisemos admitir que ele já não era o grande jogador do primeiro turno.
Numa festa de paradoxos, o Botafogo errou ao contratar Lage e provavelmente errou ao demiti-lo.
“O Botafogo voltou a ser o velho Botafogo”, ouvi de uma colega de trabalho um dia depois da saída de Lage. Senti a estocada. Dói, essa suposição de que somos um time fadado a não cumprir as promessas que faz. Não tanto, porém, quanto a piedade contida na frase de outro colega, um gremista: “Estamos todos torcendo pelo Botafogo, ninguém quer o Bragantino.” Tenho um amigo rubro-negro que sente um ódio mortal do Botafogo. Esfuziante nas nossas derrotas, amarga um luto pesado nas nossas vitórias. Mal sabe ele que nos elogia. A ira dos adversários nos honra, a misericórdia nos diminui.
Àquela altura, a misericórdia começava a tomar conta do Brasil. Vascaínos, tricolores, corintianos, santistas, são-paulinos, cruzeirenses, atleticanos, gremistas, colorados – sem maiores ambições no torneio salvo barrar o triunfo dos respectivos grandes rivais, essa multidão de gente agora também torcia pelo Botafogo.
Doses assim agigantadas de piedade adquiriam a forma de um punhal cravado na nossa vaidade alvinegra. O nosso temor – o meu, pelo menos – era que, ao fim do campeonato, merecêssemos que se apiedassem de nós.
A cada passo o risco aumentava. Não querendo repetir o erro de contratar mais um treinador ansioso por imprimir sua marca, John Textor optou por uma nova interinidade. Lúcio Flávio, ex-jogador do clube e treinador do Botafogo B, composto por atletas de até 23 anos, assumiu o comando do time principal. Um podcast botafoguense gravou um episódio extra para comentar sua efetivação. A chamada dizia: “Agora é orar.”
Oramos todos, os ateus, os agnósticos, os crentes. No início, parece até que funcionou. Vencemos as duas primeiras partidas. Em seguida, não vencemos mais nenhuma. Um amigo resumiu: “Primeiro turno: Fausto contrata. Segundo turno: Mefistófeles cobra.”
As derrotas do time comandado por Lúcio Flávio foram do amargo ao humilhante e daí ao inverossímil. O início do tombo não precisou nem da escalação de um adversário capaz de nos vencer. Bastou um empate em casa – mais um – para provar que dali em diante nada mais daria certo. O jogo contra o Athletico Paranaense, marcado para as nove da noite de sábado, começou bem. Tiquinho marcou o primeiro gol e pouco depois eles empataram. Não era o ideal, mas estávamos confiantes, jogando bem diante de quase 40 mil torcedores. O primeiro tempo ainda rolava e teríamos no mínimo mais 45 minutos para vencer. Foi quando acabou a luz.
E voltou. E acabou de novo. E voltou. E acabou de vez. Era a possível soma de duas falhas: do lado de fora, a da Light, responsável por dois picos de luz (a companhia nega a ocorrência desses picos); do lado de dentro, a dos geradores, que não seguraram todos os refletores acesos. A partida parava e seguia, parava e seguia. Até que o árbitro decidiu suspender o jogo e mandou todo mundo para casa. O segundo tempo seria realizado no dia seguinte. Por questões de segurança, o Botafogo jogaria de portões fechados, sem uma única alma alvinegra a empurrar o time.
Era ruim, mas ficava pior. Na rodada seguinte o Botafogo enfrentaria o Fortaleza na casa deles, onde são adversários temíveis. Ocorre que na mesma semana eles disputariam a final de uma competição continental, de modo que naqueles dias, e somente naqueles dias, o Botafogo não ocupava espaço na cabeça deles. Enfrentaríamos praticamente uma equipe de funcionários do clube, já que os atletas do primeiro escalão estavam todos concentrados para a partida decisiva da Copa Sul-Americana, que aconteceria no Uruguai. Três pontos garantidos.
Mas não. O adiamento dos 45 minutos finais de Botafogo x Athletico-PR significou que o Botafogo não teria como respeitar o intervalo mínimo de 66 horas que a lei exige entre partidas. Se, no dia anterior, o jogo tivesse sido à tarde, não à noite; se os disjuntores não tivessem caído; se os administradores do estádio tivessem zelado pela manutenção dos geradores – se qualquer dessas coisas tivesse acontecido, é provável que o Botafogo terminasse a semana seguinte com mais duas vitórias, ou 6 pontos, na sua conta. Restou-nos acompanhar pela tevê o segundo tempo da partida adiada. O silêncio no estádio vazio fazia jus ao tristíssimo placar final, o mesmo 1 a 1 da véspera. O que ainda não podíamos saber é que exatamente 6 pontos iriam nos separar do campeão brasileiro de 2023.
Dali em diante foi queda livre. Uns dias depois, apanhei um amigo a caminho do Nilton Santos. Ele entrou no carro e disse: “Se nós ganharmos hoje, somos campeões.” Estava certo, ele. Apesar da trapalhada da luz, a rodada anterior tinha nos favorecido. Faltavam apenas dez partidas e havíamos conseguido aumentar a vantagem em relação aos adversários mais imediatos. O rival do dia, Cuiabá, estava na 12º posição. No primeiro turno, em Mato Grosso, tínhamos voltado com uma vitória.
Naquela noite, perdemos por 0 a 1.
A partida seguinte era o jogo do campeonato. Enfrentaríamos o vice-líder Palmeiras diante da nossa torcida. Eles estavam a 6 pontos de nós, vantagem ainda considerável faltando tão pouco para o fim da competição.
A partida começou às 21h30 daquela quarta-feira, dia 1º de novembro. Quarenta e cinco minutos depois, quando o árbitro apitou o final do primeiro tempo, os quase 35 mil torcedores no estádio tinham dificuldade de acreditar no que acabava de acontecer. Olhei em volta e vi gente chorando. “É verdade?”, perguntou um. “É um sonho”, disse outro. Por todo canto as pessoas buscavam confirmar o que lhes parecia perfeitamente irreal. Olhavam para o celular, para o placar no alto das arquibancadas, para as tevês penduradas nos camarotes. Sim: Botafogo 3 a 0 Palmeiras.
Foi uma aula magistral de futebol. No meu ouvido, um comentarista de rádio dizia ter acabado de assistir à melhor atuação de um time brasileiro no ano. Enquanto os jogadores desciam para o vestiário, quem foi ao site do Globo Esporte pôde ler: “Baile de campeão! O Botafogo fez um primeiro tempo perfeito e amassou seu rival na disputa pelo título.” Um amigo diria: “Nosso melhor primeiro tempo dos últimos vinte anos.”
Quando a bola rolou no segundo tempo, deixei passar um minuto e gritei na direção do juiz: “Acabou!” Todo mundo riu, eu ri também. A gente só grita “Acabou!” nos últimos minutos de uma partida que estamos vencendo por pouco, um jeito de pressionar o árbitro para encerrar logo. Nossa vantagem naquela noite era tão grande, nosso domínio tão avassalador, que simular um desespero inexistente sugeria que dali em diante toda angústia seria meio cômica.
Três minutos depois, o quarto minuto da etapa complementar, o Palmeiras fez 3 a 1. O tempo das brincadeiras ficava para trás. Tinha durado menos de cinco minutos. O estádio se aprumou, tentando manter a sensatez. Continuávamos dois gols à frente, continuávamos jogando bem. A torcida voltou a gritar, reforçando o elo inquebrantável que nos unia aos jogadores. Não esmorecemos nem quando Adryelson, melhor zagueiro do campeonato até então, foi expulso aos 30 minutos, numa decisão do var que, de tão duvidosa, mereceu até menção no Financial Times.
Dois minutos depois, o estádio explodiu numa comemoração que hoje, passados três meses daquele 1º de novembro, ainda sinto nos ossos. Aos 35 minutos do segundo tempo, faltando apenas 10 para o encerramento, ele, Tiquinho Soares, a melhor expressão daquele time inesperadamente encantador, o artilheiro que Bruno Lage tivera a audácia de deixar no banco, recebeu a bola a um palmo da área do Palmeiras, invadiu, deixou o marcador para trás, ficou de cara para o gol e foi derrubado. Pênalti para o Botafogo.
No estádio a gente se abraçava, ria e chorava, tontos de felicidade. Era a bola do campeonato, e ela estava nos pés do melhor jogador da competição. Era o quarto gol contra o então campeão brasileiro, contra o rival que começava a nos ameaçar, contra um time acostumado a vencer e agora prestes a ser derrubado por um adversário que, injustamente, jogava com um homem a menos. A bola foi posta na marca do pênalti, Tiquinho tomou distância, olhou para a bola, olhou para o gol, ouviu o apito, correu e chutou.
Não chutou para fora, não chutou na trave. Chutou para o canto, como deve ser. Mas não chutou forte o suficiente, tampouco chutou para o canto certo, que é sempre aquele que o goleiro não escolherá. Infelizmente, lamentavelmente, tragicamente, chutou para o lado errado, e, a centímetros de cruzar a linha e de nos dar o campeonato com o qual sonhávamos fazia quase trinta anos, a bola encontrou um obstáculo – Weverton era o seu nome.
Um minuto depois, faltando sete para o fim da partida, o Palmeiras fez 3 a 2. Faltando um minuto, o Palmeiras fez 3 a 3. E no oitavo minuto dos acréscimos, o derradeiro instante do jogo, o Palmeiras fez 3 a 4. A partida foi encerrada. O ano do Botafogo foi encerrado.
As últimas oito partidas são uma névoa. Ainda ficaríamos três rodadas em primeiro lugar, mas ninguém mais acreditava no campeonato. Contra o Grêmio, perdemos pelo mesmo placar e quase do mesmo modo. Vencíamos por 3 a 1 e sofremos uma virada de 3 a 4, resultado que se pode atribuir ao nosso desequilíbrio emocional e à banda mexicana RBD. Na mesma data da partida, o estádio Nilton Santos estava alugado para a turnê Soy Rebelde Tour, dos cantantes latinos. Com isso, foi preciso sair à cata de outro estádio para enfrentar o time gaúcho.
A partida aconteceu na casa do Vasco, cuja grama, ao contrário da nossa, é natural. Em gramados artificiais, o jogo é mais veloz e castiga os atletas. O veterano Luisito Suárez, então com 36 anos, atacante uruguaio mortal, não joga em gramado sintético. O joelho não aguenta. A transferência da partida do Nilton Santos para São Januário permitiu que ele entrasse em campo. Dos quatro gols do Grêmio, Luisito marcou três – os três últimos. Lúcio Flávio foi demitido poucos dias depois.
Nas quatro partidas seguintes, três delas já com um novo técnico, o quinto da temporada, estávamos vencendo até os últimos instantes quando veio o gol de empate – aos 50 minutos, aos 41, aos 44 e aos 52. Se três dessas partidas tivessem terminado um minuto antes, dois minutos antes, hoje seríamos nós os campeões brasileiros.
Em fins de agosto, quando o Botafogo ainda estava 11 pontos à frente do Palmeiras e Bruno Lage começava a acumular empates, escrevi para o meu filho: “O Palmeiras me assusta porque é um time acostumado a vencer. Nossa torcida tem sido heroica, mas não se pode pedir que de uma hora para outra se comporte como a torcida do City ou do Real. Somos traumatizados, e por boas razões. Se apertar demais, o nervosismo se transferirá para o campo, é inevitável. Confiança de americano é coisa que só vem depois de ganhar a Segunda Guerra Mundial e colocar o homem na Lua. A gente ainda precisa passar por isso.”
Rory Smith, o setorista de futebol do New York Times, lembra que clube e time não são sinônimos: “Os times mudam com relativa facilidade, sai um jogador, entra outro. Já a instituição que representam possui um caráter tão inefável quanto determinante, capaz de se alterar apenas em ritmo glacial, nunca num par de verões.”
Aos poucos, da década de 1970 em diante, o Botafogo foi se transformando nas suas derrotas e humilhações. Alguém já disse que nas verdadeiras tragédias quem morre não é o herói, é o coro. No futebol, o coro somos nós, a torcida. Jogadores seguem em frente, mudam de time, se refazem em outros estádios, com outras bandeiras e outros hinos. Quando eles perdem, o legado da derrota fica conosco.
A nossa decepção foi do tamanho da nossa esperança. Depois de meses de um sentimento oceânico de irmandade, cada um de nós foi obrigado a voltar para a sua solidão. A queda é particularmente dolorosa para os mais velhos. Nos piores momentos, ela significa a consciência (talvez prematura, não importa) de que aquela experiência dificilmente se repetirá no nosso tempo de vida. Ser parte da multidão feliz depois de décadas, isso acabou. Nesse sentido, é um luto. A apreensão de um fim.
Difícil imaginar como outras torcidas reagiriam. Nós, botafoguenses, temos nossas estratégias de sobrevivência, desenvolvidas ao longo de décadas de decepção. Folheando uma revista no dia seguinte à virada do Grêmio, tropecei num poema da americana Carmen Maria Machado cujos versos finais descrevem uma dessas estratégias:
Ele quer saber se tenho perguntas e eu lhe digo:
o truque para ter o coração partido
é dizer a alguém Você vai partir
meu coração porque ou você fica feliz
por estar errado ou você está certo.
A única maneira de ser Botafogo é aprender esse truque.
Então por quê? Por que torcer? O que sobra de tanto investimento emocional mal correspondido? Aí é que está: sobra a torcida. Não qualquer uma, mas esta torcida. Sobra a sua beleza, a sua integridade. Sobra muita coisa. É a respeito disso que eu queria escrever.
Steve Harris, baixista da banda Iron Maiden, é um torcedor apaixonado do West Ham, clube londrino de raízes operárias cuja época de ouro são os anos 1960. Recordando uma partida em que o West Ham vencia por 3 a 0 e quase entregou o jogo nos últimos minutos, Harris balança a cabeça e ri: “Toda uma vida de sofrimento…” O repórter que o entrevista, também torcedor do clube, escreve: “Esse tom é familiar a todos nós: desejamos ter feito escolhas diferentes, mas também agradecemos o dia em que fizemos esta escolha.”
Muitos botafoguenses se reconhecem nessa formulação, sobretudo em relação à ideia de agradecimento. Um amigo com quem almocei depois das derrotas para Palmeiras e Grêmio sofria com o sofrimento do filho: “Por que eu fiz isso com ele?”, penitenciava-se. “Por que eu passei pro meu filho essa certeza do sofrimento?” O lamento dizia respeito apenas ao menino, nunca a ele próprio. Não conheço nenhum botafoguense que tenha se arrependido da escolha que fez (e fica para outra hora discutir se é mesmo uma escolha). Nenhum voltaria atrás – e, vamos combinar, isso exige explicação.
Em 2019, passei alguns meses no Pará para escrever a série Arrabalde, sobre a Amazônia. Num fim de semana em Belém, visitando a feira de livros da cidade, percebi que um rapaz me seguia pelos corredores dos estandes. Eu dobrava uma esquina, ele dobrava a esquina. Eu parava, ele parava, sempre a cinco ou seis passos de distância. A coisa seguiu assim por algum tempo, até que uma senhora me abordou. “Você é o João Salles?” Assenti. “Desculpa. É que eu estou com o meu filho ali e ele é muito tímido. Ele queria muito falar com você, mas está passado de vergonha. Você pode dar um minuto pra ele?” Podia, claro.
A mãe acenou para o rapaz, que se aproximou sem tirar os olhos do chão. Tinha uns 16 anos e sinais de acne adolescente no rosto. Estendi a mão. Ele tentou dizer alguma coisa, mas travou. Quis ajudá-lo, e, como estávamos num ambiente de leitores, arrisquei: “Você gosta de jornalismo e lê a piauí?” Ele arregalou os olhos e se virou para a mãe. Além de encabulado, agora estava confuso. Aflito, mudei a chave e pulei para outra atividade minha: “Ah, você gosta de cinema e se interessa por documentários?” Piorou: ele soltou um gemido, sofria cada vez mais e não entendia uma palavra do que eu dizia.
Eu tinha esgotado a minha munição. “Será que você tá falando com a pessoa certa?”, perguntei. Ele confirmou com a cabeça. “Então como posso te ajudar?” Criando coragem, ele murmurou: “É o Botafogo.”
A situação do time claramente determinava parte não insignificante da alegria e da tristeza do rapaz. Naqueles dias, lutávamos para escapar do rebaixamento. Como se não bastasse, a nossa situação financeira era crítica. Eu vinha participando de um esforço coletivo de captação de recursos para ajudar o Botafogo a respirar um pouco, e por isso talvez o rapaz imaginasse que eu poderia saber de alguma boa novidade sobre o nosso clube do coração (não sabia). “Teu pai é botafoguense?”, perguntei. “Não”, ele respondeu. “Tua mãe?” Não. “Um tio, um irmão, um padrinho, um parente?” Não. “Um amigo de escola?” Também não. Eu estava ficando ansioso. “Então por que você é Botafogo?”, insisti. Ele entendeu que falávamos a mesma língua e respondeu de bate-pronto, me olhando pela primeira vez nos olhos: “Não sei, só sei que o Botafogo é muito importante pra mim.” Quando era mais novo, tinha visto um jogo pela televisão e “soube na hora”: “Esse era o meu time e eu não ia conseguir torcer pra mais ninguém. Não consigo não pensar no Botafogo.”
Nunca me esquecerei desse encontro. De todas as escolhas que um adolescente tímido e socialmente desajeitado pode fazer para se tornar mais popular, virar botafoguense não é das mais indicadas. Que esse jovem esteja em Belém, a mais de 3 mil km do Rio de Janeiro; que more numa cidade onde raramente acontece um jogo do Botafogo; que ele não tenha idade para ter visto o seu clube erguer alguma taça relevante; que tenha sofrido as tantas decepções dos muitos anos de vigência da nossa mediocridade; que, apesar de tudo, não tenha desistido; e, principalmente, que o seu amor seja gratuito, sem influência de parentes ou de amigos, fruto portanto de uma eleição soberana, que esse rapaz seja o resultado desse conjunto de circunstâncias tão raras – isso é em tudo maravilhoso. Pede um tipo de pessoa especial, capaz de decidir por si o seu caminho, indiferente à sedução da popularidade. É mais seguro e reconfortante fazer parte da maioria.
O encontro também me fez compreender algo sobre mim. Me lembro de sentir uma ponta de orgulho ao me dar conta de que o rapaz me reconhecera por eu ser botafoguense. Para ele, era essa a minha identidade; para mim também é. Intimamente, o que me faz Botafogo me descreve bem mais do que o que me faz documentarista, por exemplo. Não sei explicar por quê. O que posso dizer é que estou mais à vontade na minha pele quando penso que sou Botafogo do que quando penso que sou alguém que faz filmes ou que escreve para a revista.
Não sei se alguém escolhe o time de futebol pelo qual torce. Como para o menino de Belém, cujo nome infelizmente não guardei, virar botafoguense talvez estivesse inscrito na minha sina, mais ainda do que na minha vocação. Como se ele e eu não tivéssemos a liberdade de não ser alvinegros. Como se fôssemos predispostos por temperamento a torcer por esse time.
Paixão clubística à parte, difícil não pensar que o Campeonato Brasileiro de 2023 sonegou ao esporte uma vitória do mais fraco sobre o mais forte. Para muitos, isso apenas confirma o que já se sabia, ou seja, que o mundo pertence aos detentores da força. Essa, contudo, é uma leitura problemática, uma vez que o Botafogo perdeu mais para si mesmo do que para os adversários. Ainda assim, eles, os adversários que vencem, são cada vez mais os mesmos. São os poderosos.
Ora, se tudo é poder e força, se a vitória está determinada de antemão, por que o botafoguense não cai no niilismo?
No meu caso, a razão está antes de tudo na torcida. Depois de décadas de estádio, hoje eu sei o que não sabia aos 20 anos: sou Botafogo não apenas por causa da camisa (linda), não apenas por causa do escudo (tão bonito que fecha todos os artigos desta revista), não apenas por causa da nossa história; não sou Botafogo nem mesmo apenas por causa de Garrincha, Nilton Santos, Didi, Jairzinho, Nei Conceição, Mendonça, Donizete, Loco Abreu, Adryelson ou Tiquinho. Sou Botafogo sobretudo por causa dos torcedores.
Quanto mais um time perde, mais se exige da torcida. Inversamente, quanto mais um time ganha, menos se pede dela. Vitórias e desprendimento se excluem mutuamente. Jamais a torcida botafoguense foi tão valente quanto no ano de 2023. E isso porque nunca o time esteve tão perto da humilhação, quando não da desonra.
Quando a vaca já estava com três patas no brejo, cruzei na rua com um pai barrigudinho e sua filha pré-adolescente. Os dois vestiam a camisa do Botafogo, alheios ao risco das gozações que àquela altura começavam a pipocar na cidade. Fui até eles e elogiei o brio. Brio por quê? “Por causa das viradas, dos gols no último minuto, do campeonato que estamos entregando”, respondi. “Você é Botafogo?”, perguntou o pai. Sim. “E tá desanimado?”, prosseguiu com certa rispidez. Olhei para a filha, que me fez um sinal aflito de pelo-amor-de-Deus-não-envereda-por-aí-não. Ela ainda tentou contemporizar: “Pai…” Mas o pai não queria conversa: “Você não é um botafoguense de verdade. Nunca foi fácil. Se você já desistiu é porque não entende o que é ser Botafogo.” “Paaaai…”, a filha implorou. Antes que eu conseguisse me defender, ele a tomou pela mão, os dois me deram as costas e seguiram em frente. Fiquei ali, pasmo. E certo de que sou botafoguense por causa de gente como eles.
Porque é difícil não admirar uma capacidade tão grande de amar sem exigir recompensa. Contei a história ao amigo da rota Polônia-Nilton Santos, fazendo o elogio desse amor gratuito que é condição do torcedor botafoguense. Ele balançou a cabeça: “É menos que gratuito. O saldo é negativo.” Exagero dele, às vezes sobra uns trocados, mas de modo geral ele está certo. Costumamos dar muito mais do que recebemos em troca.
Do ponto de vista moral, nada disso é objetivamente melhor ou pior do que a condição de quem torce por time vitorioso. É apenas diferente. A certa altura do ano passado, o Palmeiras tinha sido desclassificado da Copa do Brasil e ia muito mal no Campeonato Brasileiro. A única chance de título parecia ser a Copa Libertadores da América. Foi quando a torcida começou a gritar na direção dos dirigentes: “A Libertadores agora é obrigação!” Não era um incentivo. Era ameaça.
Não passaria pela cabeça de um botafoguense dizer coisa parecida. Se há uma certeza sobre o torcedor alvinegro é que a relação dele com o time não é transacional, do tipo Eu te dou a minha torcida e você me devolve um título. Num mundo que preza o toma lá dá cá, esse é um vínculo no mínimo bonito.
E, dependendo da perspectiva (a minha), deveria até ser motivo de orgulho. Porque, pensando bem, do que poderia se orgulhar uma torcida do Real Madrid, do Manchester City, do PSG, dos times mais fortes do Brasil? Ela não entra em campo, não dá passe, não bate pênalti. Ela incentiva. Ora, não é infinitamente mais fácil incentivar quem vence sempre? A que prova de lealdade a torcida estará se submetendo se ela sabe que, no caso de o seu time não vencer este ano, no ano que vem possivelmente vencerá? Se ela tem a convicção de que virão melhores reforços, melhores técnicos, melhores olheiros, melhores tudo em relação aos adversários?
Sempre achei isso gozado, uma forma meio cômica de presunção. Torcidas assim se alçam acima da Terra e supõem que o Céu esteja a seus pés, quando, na realidade, subiram até lá de elevador panorâmico, sem fazer um pingo de esforço.
Em matemática, a ideia de gosto está ligada ao tipo de problema que se escolhe atacar. Suponho que o time de futebol pelo qual a gente torce também possa ser uma questão de gosto, de maior ou menor afinidade com este ou aquele time. Um matemático de bom gosto é aquele que escolhe os problemas mais difíceis (mas isso só vale para a matemática).
Torcidas acostumadas a vencer gostam de se definir como otimistas. Nós, não. Temos esperança, o que é outra coisa. Confiamos em que um dia a vitória chegará, apenas não a damos nunca como certa.
Poucos dias depois do fim do campeonato de 2023, a jornalista Dorrit Harazim publicou uma coluna em que mencionava os escritos de Nick Cave, um músico e escritor que conhece bem o sofrimento. Quando lhe perguntaram se era otimista, ele respondeu: “Esperança e otimismo podem ser forças diferentes, quase opostas. A esperança surge do sofrimento que se viveu e é a centelha que desafia e se recusa a ser extinta. já o otimismo pode ser a negação desse sofrimento, um medo de enfrentar as trevas, uma falta de consciência, uma espécie de cegueira para o real. A esperança é sábia e desobediente. O otimismo pode ser medroso e falso.”
Cada botafoguense que segue para o estádio carrega essa esperança. Afirma-a. Ele não arreda da trincheira, convencido de que os outros não vencerão sempre. No que não chega a ser um paradoxo, apenas uma vicissitude da condição alvinegra, o valor da sua resistência será tanto maior quanto maior for o peso da promessa não cumprida, o gol tomado no último minuto, o campeonato perdido na última meia hora. Não é o que sonhamos. Trocaríamos essa bravura por um título sem piscar, mas enquanto ele não vem a realidade é esta: mais o time perde no gramado, mais comovente e bela parece ser a torcida na arquibancada.
Posso antecipar as críticas: “Ah, isso é fantasia de derrotado.” Falso. Vencer é o objetivo, mas se a vitória ainda não veio o que existe é a trincheira. Quem estará dentro dela? Quem não estará? Igualmente justo é perguntar se aqueles que cerram fileiras com vencedores habituais serão mais ou menos dignos do que aqueles que insistem em se entrincheirar com os menos fortes. Durante a Segunda Guerra Mundial, os ingleses tomaram muita bomba na cabeça antes de virar o jogo; no Vietnã, passaram-se cerca de quinze anos antes que os vietnamitas pusessem os americanos pra correr. A vitória de uns e de outros é admirável, assim como o fato de terem resistido. Nos anos mais difíceis daqueles conflitos, admirar a capacidade de resistência não seria tomado como romantização da derrota. Seria apenas expressar um sentimento em nada controverso: quem não joga a toalha merece consideração e respeito.
Ainda mais no Brasil. Boa parte dos frequentadores de estádios de futebol, se não são necessariamente pobres – as entradas custam cada vez mais caro –, tampouco são ricos. É gente que batalha para pagar as contas. Para quem já nasceu com montanhas de adversidade pela frente, torcer por times como Flamengo, Palmeiras, São Paulo ou Corinthians pareceria a opção mais sensata. Seria estar do lado da força, pelo menos nessa parte da vida. Na sociologia do futebol, equivaleria a ser membro da classe dominante. Para quem não nasceu abastado, então, recusar esse privilégio para se alinhar com os mais fracos não deixa de ser, em última instância, uma inclinação política.
Nas grandes vitórias, a alegria é indescritível. Nas grandes derrotas, indescritível é a tristeza. O que não muda, independente do placar, é o sentimento de irmanação em torno de uma coisa bela, preciosa, frágil e instável, tantas vezes prestes a se desfazer em dor. Quando isso acontece, saio do estádio olhando o rosto de pessoas que não conheço, mas são da minha família. Vejo neles o sofrimento, que me abate, e a resistência, que me consola.
Na semana em que o campeonato de 2023 chegou ao fim, viam-se pelas ruas do Rio muitas pessoas com a camisa do Fluminense, do Flamengo e do Vasco. Esses times comemoravam títulos conquistados, classificação para copas importantes ou, no caso do Vasco, um heroico esforço para escapar do rebaixamento.
O que não se via eram camisas do Botafogo. Tinham sumido da paisagem. Sei disso porque elas me confortam e eu tenho olho para encontrá-las. Num final de tarde, na academia, em meio a rubro-negros e tricolores, uma menina ruiva fazia seus exercícios vestindo a nossa camisa. Não passava dos 15 anos. Quando ela atravessou o salão em direção à saída, altiva, alheia à circunstância, pensei: enquanto existir alguém como ela, o mundo ainda tem jeito.