Bolsonaro conversando com o embaixador húngaro no Brasil, Miklos Halmai (à esquerda)
Depois das noites húngaras, que providências tomar
Um decreto de prisão preventiva contra Bolsonaro seria politicamente delicado, mas nunca foi tão juridicamente plausível
Ou os bailes carnavalescos da Hungria são um arraso e ninguém sabia, ou Jair Bolsonaro precisará de uma justificativa mais convincente para sua estada de duas noites na embaixada húngara no Brasil entre a segunda-feira de Carnaval e a Quarta-feira de Cinzas. A hospedagem inusitada foi revelada pelo jornal americano The New York Times, que teve acesso a filmagens de câmeras de segurança. Os bolsonaristas nas redes sociais podem até não fazer muitos questionamentos, mas a Justiça fará. Respondê-los com banalidades como “frequento embaixadas” e “converso com embaixadores” não vai bastar para convencê-la, por várias razões.
Primeiro, porque não foi uma mera conversa. Foi uma estada de duas noites, algo incomum até mesmo quando se trata de viagens de políticos ao exterior. Neste caso, a embaixada fica em Brasília, cidade onde Bolsonaro tem casa própria e mora há décadas. Não precisaria, portanto, de um sofá onde pudesse dormir por uns dias.
Segundo, porque não foi em qualquer embaixada. A Hungria é um país comandado por um autocrata de extrema direita, Viktor Orbán, que não apenas foi um aliado internacional próximo de Bolsonaro durante sua presidência, como também tem se mostrado um apoiador fiel durante o cerco jurídico que vai se fechando contra o ex-capitão. Dias antes do Carnaval, Orbán publicou no X (antigo Twitter) uma mensagem de apoio ao aliado, que acabara de ter seu passaporte recolhido. “Um patriota honesto”, escreveu, na postagem. “Continue lutando, senhor presidente!”
Terceiro, porque a tal conversa não aconteceu num café ou na praça de alimentação de um shopping, mas em uma embaixada – território protegido por privilégios e imunidades reconhecidos por convenções internacionais, que têm o objetivo de assegurar o exercício das funções diplomáticas. Convenientemente, essas regras seriam um obstáculo caso as autoridades brasileiras precisassem entrar na embaixada para cumprir uma ordem judicial. Bolsonaro, é claro, sabe disso.
Por último, ninguém é bobo a ponto de acreditar que o ex-presidente trabalharia tão intensamente, por três dias ininterruptos, durante o Carnaval, a ponto de não conseguir pedir um Uber para voltar para casa e dormir. Tamanha disposição não se viu durante seu mandato. Difícil crer que ela daria as caras num feriado em 2024.
Por todos esses motivos, a justificativa dada por Bolsonaro é insuficiente. Os investigadores da Polícia Federal talvez abracem uma hipótese mais simples e plausível: o ex-presidente, temendo ser preso pela tentativa frustrada de golpe de Estado, abrigou-se em um lugar onde estaria a salvo das autoridades penais brasileiras caso elas viessem buscá-lo. É com essa hipótese que devemos trabalhar.
Juridicamente, o que se deve fazer com alguém que usa sua influência política para esconder-se em local sabidamente inalcançável à Justiça que o investiga? Em tese, o Código de Processo Penal prevê a possibilidade de prisão preventiva em casos assim, com o objetivo de assegurar a aplicação da lei. Afinal, de nada adianta investigar e processar uma pessoa se, uma vez condenada, ela puder escapar da punição.
É verdade que o mesmo código sugere medidas alternativas antes da prisão preventiva. Devem ser buscadas providências que, sem recorrer à violência do encarceramento, sejam igualmente capazes de assegurar a aplicação da lei. O recolhimento do passaporte de Bolsonaro em fevereiro foi um exemplo disso. É uma medida que diminui as chances de que ele fuja para o exterior para evitar a cadeia.
No caso de Bolsonaro, no entanto, considerando seu fácil acesso a líderes estrangeiros que poderiam recebê-lo na condição de foragido, a eficácia dessas medidas cautelares é relativa. Se Bolsonaro conseguir fugir, como fez o empresário brasileiro Carlos Ghosn em sua escapada cinematográfica do Japão, e se instalar num país que aceite não extraditá-lo para o Brasil; ou se topar viver entocado em uma embaixada estrangeira, como Julian Assange fez por quase sete anos na representação do Equador em Londres, a Justiça poderá não alcançá-lo. A estadia de Bolsonaro na Embaixada da Hungria, no momento em que as investigações do Supremo Tribunal Federal o cercavam, sugere que alternativas desse tipo estão sendo não apenas cogitadas, mas ativamente buscadas pelo ex-presidente, que se move para viabilizá-las com um senso de urgência que interrompe até seu Carnaval.
A não ser que a PF descubra que tudo não passou de um grande mal-entendido, e que Bolsonaro realmente viveu três dias de intenso trabalho na embaixada húngara em pleno feriadão, o STF precisará decidir como garantir a aplicação da lei contra ele. A apreensão do passaporte já foi feita. Outras medidas podem ser adotadas para evitar uma prisão preventiva. Pode-se, por exemplo, proibir que Bolsonaro frequente embaixadas, por motivos óbvios. Ou pode-se determinar que ele use tornozeleira eletrônica, tendo seu paradeiro monitorado pelos policiais durante as investigações.
É preciso dizer: prisões preventivas comumente são decretadas por menos do que isso. No Brasil, como regra, o simples evadir-se da cidade onde ocorre a investigação é considerado fundamento idôneo para uma prisão cautelar. Vale lembrar que, na ação penal movida contra o ex-deputado federal Daniel Silveira, o ministro Alexandre de Moraes considerou a tentativa de obtenção de asilo político, com a presumida intenção de escapar da Justiça, razão suficiente para a prisão preventiva.
O ex-presidente está secando, até a última gota, o estoque de cautela que a Justiça corretamente adota em casos como esse, que mobilizam os ânimos de parte da população e requerem, portanto, enorme prudência. Mas a verdade é que hoje, à luz do ordenamento jurídico brasileiro e dos entendimentos mais corriqueiros da Justiça, a prisão cautelar de Bolsonaro não seria surpreendente nem teratológica.
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