Aglomeração no Largo da Batata, em São Paulo, onde o filho adolescente da produtora de eventos circulava à procura de drogas lícitas e ilícitas (Andre Porto/UOL/Folhapress)
Precoce e devastador
Demanda por tratamento de menores de idade dependentes de drogas lícitas e ilícitas sobrecarrega unidades de saúde em São Paulo. Nos Caps, o total de atendimentos quadruplicou em um ano
O primeiro contato do filho com as drogas foi aos 12 anos. A mãe, produtora de eventos, tinha se mudado com ele para Cabreúva, cidade paulista a menos de 100 km da capital, com o intuito de oferecer uma vida melhor ao garoto, que enfrentava dificuldades para se enturmar na escola. “Era aquele menino que pedia um melhor amigo ao Papai Noel”, conta.
Na cidade pequena, ele deixou de ser solitário e se tornou mais expansivo. Ganhou também a simpatia dos donos de bares, mas por um mau motivo. Comprava cerveja para consumo próprio usando o nome da mãe. Depois de algum tempo ela descobriu o truque e alertou os comerciantes. Mas seguiu permitindo que fumasse maconha com “os moleques da praça”, por uma confusão de entendimento entre o uso medicinal e o recreativo da droga. “Ele tinha um pré-diagnóstico de autismo. Eu estudava bastante a questão da cannabis medicinal e liberei. O psiquiatra falou que estava errado, mas ele já estava fumando, e eu não tinha como controlar. Permiti a maconha, mas cortei a bebida completamente.”
Em algum momento, tentou colocar limites: só poderia fumar aos fins de semana, dentro de casa, na presença dela. Deu errado, e ele seguiu consumindo álcool e maconha. Sua agressividade aflorou, e a agrediu pela primeira vez. “Ele tinha 12 anos, mas já era um menino grande e forte. Eu tentava conter, mas não conseguia. Muitas vezes tive que chamar a polícia.”
A família se viu sem muitas opções para lidar com o alcoolismo precoce. Uma internação em uma clínica particular pode ultrapassar os 30 mil reais por mês. Aconselhada pelo psiquiatra que atendia o filho à época, a mãe o internou em uma clínica com os custos cobertos pelo plano de saúde. “Você já assistiu ao filme Bicho de Sete Cabeças? Então, era aquilo. Só que a gente não sabia”, diz, citando o filme dirigido por Laís Bodanzky que retrata os maus-tratos e abusos sofridos por um rapaz internado em uma clínica de reabilitação. A internação deveria ter durado seis meses, mas ela o tirou de lá no terceiro, quando tinha quase 14 anos. O garoto voltou para casa ainda mais agressivo. Seguiu com sessões de terapia, acabou abandonando a maconha, mas o álcool se tornou um problema cada vez pior. Aos 15, começou a cheirar cocaína. Para conseguir a droga e consumi-la, fugia de casa e só voltava depois de alguns dias.
Em outubro de 2022, os sumiços atingiram um patamar insustentável. Naquele mês, a mãe passou uma madrugada inteira vagando pelo Largo da Batata, reduto boêmio do bairro de Pinheiros, perguntando pelo “Mochilinha”, apelido que recebeu na região por sempre andar com uma mochila pendurada em um dos ombros. “O paraíso dele era o Largo da Batata. Trocava coisas por bebida, pagava 3 reais em um corote, trocava favor sexual por droga”, relata.
Sem sucesso nas buscas naquele dia, às seis da manhã ela voltou para casa, tomada pela angústia. Deitou-se na cama, mas não conseguiu dormir. Às 8h30 ligou para sua mãe, a avó do menino, e decidiu retomar a procura. Enquanto percorria as ruas da cidade, recebeu a ligação mais aguardada dos dois dias anteriores. Era da portaria de seu prédio, informando que ele estava em casa, mas não era propriamente uma boa notícia. “Ele estava acompanhado de um rapaz”, avisou o porteiro. A mãe voltou correndo para casa atrás do filho. Ao abrir a porta, ficou sem chão. Em troca de cocaína, o garoto tinha autorizado o colega a fazer uma limpa no apartamento. Ainda sob efeito da droga, o menino foi levado ao hospital.
Já são mais de seis anos de luta contra a dependência química e de tratamentos psiquiátricos. Em maio de 2023, ele tentou se matar pela terceira vez. O pai o encontrou na rua e o levou às pressas ao hospital São Camilo, onde foi direto para a UTI. O psiquiatra que atendia o garoto também foi para lá acompanhar o caso. Em dado momento, ele puxou os pais de canto e fez um prognóstico desalentado diante de suas atitudes: “Vamos perdê-lo.”
Alguns dias depois, porém, uma nova possibilidade de tratamento se abriu e colocou o garoto em outro rumo. O psiquiatra conseguiu interná-lo, pelo SUS, em uma instituição recém-inaugurada, ligada ao Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo: o Instituto Perdizes. A unidade se propõe a se tornar referência no país para tratamento e pesquisa de casos de dependência química na infância e na adolescência, ainda que também atenda adultos.
Desde o fim da internação, o filho da promotora teve duas recaídas com álcool, mas desde julho de 2023 não consumiu mais nada. Segue em tratamento ambulatorial e retomou os estudos.
O Instituto Perdizes abriu as portas em novembro de 2022, com oito anos de atraso, e de cara os profissionais tiveram de lidar com uma demanda enorme de menores de idade em busca de tratamento. Às pressas, leitos de internação tiveram de ser abertos para atender casos urgentes (a proposta inicial era começar apenas com atendimentos ambulatoriais, sem internações). No fim de junho de 2023, cinco adolescentes tinham sido internados, inclusive o filho da produtora de eventos. O mais novo deles tinha 12 anos.
A piauí conversou com três profissionais que trabalham no instituto: Eduardo Santocchi, diretor executivo da unidade, Kaled El Sahli e Nicolas Matakas, ambos psiquiatras da infância e da adolescência. A sensação é de um aumento real do uso de drogas por crianças e adolescentes na cidade de São Paulo. “Eu tenho uma percepção, sim, do problema se agravando”, diz El Sahli, que trabalha há dez anos na psiquiatria infanto-juvenil.
Entre os adolescentes internados, um chegou por vício em cocaína e opioides, outro por cocaína e álcool e um terceiro por álcool. Mais dois estavam lá por K9, uma droga sintética de baixo custo que se espalhou rapidamente pelas ruas de São Paulo. A proliferação desses entorpecentes feitos em laboratório é um dos motivos que ajudam a explicar o crescimento do uso de substâncias químicas entre os jovens.
Atualmente, o Instituto Perdizes atende regularmente cerca de cinquenta adolescentes com idade entre 12 e 17 anos e a ideia é ampliar o número para até cem pacientes. Por conta da alta demanda entre os adultos, os leitos de internação para adolescentes foram fechados até que uma reestruturação seja feita. Até lá, os atendimentos vão ser apenas ambulatoriais, o que consiste em consultas semanais (terças ou quintas). O que há de diferente? Um dos pontos é a equipe ampla, que trata de diversos aspectos do problema, e é composta por oito profissionais: três psiquiatras da infância e adolescência, um psicólogo, uma fonoaudióloga, um psicopedagogo, uma terapeuta ocupacional e uma assistente social.
Quando existe demanda por internação, os casos são encaminhados para outras instituições, como o Hospital Lacan, referência no tratamento por meio de internação no estado de São Paulo.
No Hospital Lacan a alta procura de pacientes jovens por tratamento é, também, crescente. A unidade, vinculada ao SUS, vem operando com capacidade máxima desde o ano passado. São 38 leitos destinados a menores de idade, vinte para homens e dezoito para mulheres. Em 2023, a taxa de ocupação para essa faixa etária era de 95%. Quando o diretor do hospital recebeu a piauí no local, fez um pedido incomum: apesar de ter a identidade divulgada no próprio site da instituição, ele pediu para não ter o nome publicado pela reportagem. “Às vezes me acham em vias paralelas e tentam buscar uma internação diretamente comigo. É difícil, eu só posso aceitar pacientes que chegam pelo sistema do governo estadual. Tenho medo de não dar conta da demanda”, justificou.
O local funciona em um casarão em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Lá dentro, os espaços são divididos por grades e para circular entre eles é preciso que a equipe autorizada abra os cadeados. O uso de uniforme pelos pacientes é obrigatório e as visitas de familiares são autorizadas uma vez por semana.
Uma das pacientes que a piauí encontrou por lá, no ano passado, tinha 12 anos e estava no final do tratamento. A internação dela já durava 83 dias – mais do que o período ideal definido pelo hospital, de 45 a 60 dias.
Ela é uma dessas crianças que perderam parte da infância por causa da droga. Aos 11 anos, começou a cheirar cocaína. Usava todos os dias, na escola com amigas, ou dentro de casa, por vezes sozinha, em especial em meio à angústia pelas brigas familiares. O pai a encaminhou para o Lacan por meio de uma internação compulsória, sob pedido judicial. É necessário que venha também de um juiz a autorização para a alta médica, por isso ela ficou lá por um prazo estendido. Apesar da ansiedade pela iminente volta pra casa, ela parecia feliz por ter conseguido chegar até ali. Era dia de visita e ela abriu um sorriso genuíno ao falar sobre a família. “Fico muito feliz. Mata a saudade que eu tenho deles. A relação com meu pai agora está boa.”
Com maior capilaridade, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) estão espalhados pela cidade de São Paulo e funcionam no modelo “portas abertas”, o que significa que não há necessidade de agendamento de consultas. Os Caps são unidades de tratamento de saúde mental pelo SUS, implantadas no começo dos anos 2002, em um esforço nacional para afastar o modelo manicomial. Das 102 unidades da capital paulista, 33 são destinadas exclusivamente para o atendimento infanto-juvenil (até 18 anos).
A piauí solicitou à Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo dados relativos ao total de atendimentos realizados nos Caps infanto-juvenis devido ao uso de drogas nos últimos cinco anos. Os relatórios mostram explosão recente de demanda. A série aponta para 902 atendimentos em 2018 e uma oscilação nos anos seguintes para 984, 988, 1.145, 1.178, até chegar a 4.228 em 2023.
A reportagem também pediu, repetidas vezes, uma entrevista com um representante da secretaria que pudesse explicar os dados, para entender os fatores que explicam a alta súbita do número de atendimentos (ela decorre unicamente da maior procura ou há hipótese de que os serviços de saúde tenham se tornado mais abrangentes e, por isso, acolhido mais usuários?). No dia 15 de janeiro, a assessoria de imprensa da pasta sinalizou com a possibilidade de uma conversa dali a dois dias, mas o encontro não aconteceu. No dia 29 de janeiro, a pasta informou que marcaria a entrevista com um profissional responsável pelo Caps. Não houve retorno e, diante disso, nos dias 15 e 28 de fevereiro, a reportagem enviou mensagens de WhatsApp para a assessoria de imprensa, e não teve resposta.
A percepção de médicos ouvidos pela reportagem, no entanto, é de que houve mesmo um recente agravamento do problema, que coincide com a difusão das drogas como o K9, mencionada acima, que são baratas e abundantes nas ruas, e o colapso social visto no Centro paulistano, onde a população morando nas ruas cresce a olhos vistos. Dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) de novembro de 2023 indicaram que a capital paulista tinha então 62.155 pessoas vivendo na rua. A prefeitura fez o levantamento por determinação judicial, depois de anos sem divulgar os dados.
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