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Ali Kamel, na Globo: repórteres da emissora avaliam que o jornalismo da tevê ficou mais acanhado nos últimos anos, com menos apetite por reportagens investigativas CRÉDITO: RENATO VELASCO_GLOBO
O cardeal Três
Ali Kamel e o fim de uma era
Ana Clara Costa | Edição 211, Abril 2024
“Um perfil meu acabaria na primeira frase: Ali Kamel é de poucas palavras e não dá entrevistas.”
Com essa declaração, o diretor de jornalismo Ali Kamel, o mais longevo da história da Globo, recusou meu pedido de entrevista, por e-mail, quando comecei a apurar seu perfil em novembro do ano passado. Durante 22 anos, Kamel dirigiu a maior operação de jornalismo da América Latina, comandando 1,3 mil profissionais distribuídos em programas que diariamente abasteciam com informações mais de 100 milhões de pessoas. Em seu período, aconteceram eventos de importância colossal: a posse do primeiro presidente de origem popular em mais de um século de República, os protestos massivos de 2013, o impeachment da primeira mulher a governar o país, a deflagração da Operação Lava Jato, a prisão de dois ex-presidentes, a ascensão da extrema direita ao poder, uma pandemia devastadora e a primeira tentativa de golpe desde a volta do país ao regime democrático.
Mas, no dia 26 de julho de 2022, Ali Kamel achou que isso tudo tinha de ficar para trás e foi à sala de reuniões de João Roberto Marinho, no 11º andar do prédio da Rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico, de onde se tem uma vista singular para o Cristo Redentor, a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Pão de Açúcar. Expôs então sua vontade de deixar a função, depois de quarenta anos de jornalismo, dos quais 33 no Grupo Globo. Falou sobre seu desejo de se afastar enquanto ainda tinha saúde para aproveitar a vida. João Roberto, o membro da família Marinho mais envolvido com a empresa, ficou atônito. Afinal, era ano eleitoral, e de uma eleição imprevisível na qual um dos candidatos atentava publicamente contra a democracia. João Roberto sugeriu que voltassem a falar depois das eleições.
O pleito acabou, Lula se elegeu, e Kamel saiu de férias. Quando voltou, em dezembro, João Roberto propôs que ele ficasse mais dois anos, até o fim de 2024, para organizar a transição. Kamel ponderou que era tempo demais. Acabaram chegando a um acordo: um ano. O assunto foi tratado com total sigilo na Globo. Só no início do ano passado, o jornalista Ricardo Villela, sucessor de Kamel, foi informado sobre o que estava por vir. William Bonner, o apresentador e editor-chefe do Jornal Nacional (JN), também foi avisado com antecedência. Em 29 de agosto do ano passado, uma carta de despedida foi divulgada. Em dezembro, Kamel deixou a função. O encerramento do seu reinado – pelo tamanho da sua influência, a extensão do seu controle e a dimensão da crise da imprensa – é também o fim de uma era na Globo.
Em meados de 2018, Ali Kamel (pronuncia-se “áli kâmel”) teve uma série de conversas delicadas com Silvia Faria, então diretora executiva de jornalismo da TV Globo e seu braço direito. Ela queria preparar sua saída da empresa. Havia um tempo que pensava no assunto, mas agora estava disposta a colocar seu plano em prática.
– Eu quero sair – disse ela, segundo sua própria reconstituição de um dos diálogos que tiveram.
– Ah, você quer sair porque quer ir trabalhar em outra empresa – rebateu Kamel, relembrando que Faria recebera um convite de trabalho pouco antes e pensara em aceitar.
– Não. Eu não quero trabalhar em lugar nenhum. Ao contrário, não tenho convite nenhum. Ali, eu só quero parar. Não vi meus filhos crescerem.
– Quem me dera eu poder fazer isso. Não tenho como fazer isso.
– Você adora isso aqui – disse Faria. – Você adora esse papel, esse jogo. Eu não gosto.
– Eu estou cansado, também quero sair. Mas o que eu vou fazer da vida? – lamentou-se Kamel.
– Não se preocupe. Você vai ter muita coisa para fazer. A vida tem tanta coisa boa que você nem imagina. Isso aqui não é vida.
Faria deixou a emissora em dezembro de 2020. Desde então, Kamel passou a mostrar um interesse incomum em saber da nova rotina da amiga. “Como é a vida depois da Globo?”, perguntava. “Ah, é a vida”, respondia ela. “Uma vida que eu não sabia que existia. Estou fazendo uma porção de coisas que eu sempre quis fazer.”
No ano seguinte, Kamel começou a estudar sua própria saída. O mundo havia mudado. Nos anos em que dirigiu a Globo, a profissão de jornalista e a forma como se consome informação e entretenimento sofreram transformações vulcânicas com o avanço das redes sociais e do streaming. A Globo, antes soberana, passou a concorrer com inúmeros canais nas plataformas digitais – muitos deles sem compromisso com o jornalismo profissional. Com o correr dos anos, os novos atores do mercado ajudaram a diluir as verbas publicitárias antes destinadas à tevê e abocanharam parte da audiência.
Sob o governo de Jair Bolsonaro, a Globo também vivera um momento único. Fora a primeira vez, em suas quase seis décadas de vida, que a emissora não tinha interlocução, ainda que precária, com o governo federal. Nem as relações com as gestões do PT, que nunca foram muito tranquilas, chegaram a tamanho extremo. Afinal, Bolsonaro fora o único presidente da era democrática a promover uma estratégia de demonização da imprensa, elegendo a Globo como inimiga e emblema de tudo o que devia ser combatido – do jornalismo à cultura, do entretenimento à ciência.
Tudo considerado, o jornalismo foi virando um negócio mais arestoso e muito menos rentável, tornando-se potencialmente incômodo para os interesses empresariais da família Marinho, herdeira do fundador do grupo, Roberto Marinho, morto aos 98 anos, em 2003. Ficou mais sensível a função de Kamel de manter a credibilidade no noticiário, calibrando o interesse público com a visão editorial da família, cujos negócios vão dos serviços financeiros ao e-commerce, dos transportes ao agronegócio.
Questões corporativas também favoreciam sua saída. Desde 2018, o Grupo Globo vinha fazendo mudanças estruturais profundas, que transformaram drasticamente o modelo da empresa no entretenimento e no jornalismo. De um enorme grupo de comunicação, a companhia almejava se tornar uma media tech, mais dinâmica e com estrutura menor. O enxugamento na dramaturgia foi acompanhado pela imprensa em razão do fim dos contratos com estrelas da casa. No jornalismo, as mudanças foram menos ruidosas, mas ainda assim profundas e duras para Kamel, que se acostumara com quase duas décadas de expansão e orçamento confortável.
Tudo estava mudando na Globo. A década de 2010 iniciara de forma gloriosa. Em 2014, o grupo acumulou 4,3 bilhões de reais de Ebitda (sigla que designa o lucro antes do pagamento de impostos e outras obrigações). Um recorde. Mas, depois do ápice, veio o início do declínio. Em 2022, os canais Globo na tevê aberta e a cabo, a Globoplay e os sites da emissora somados alcançavam 76 milhões de pessoas. É um número fenomenal, mas representa a queda de 25% em relação ao cenário de cinco anos antes. Na década de 2000, o Jornal Nacional, produto jornalístico de maior alcance da tevê aberta, era visto por 40 milhões de telespectadores. Hoje, caiu pela metade. A Globoplay, criada para acompanhar a migração do telespectador para o streaming, atraiu até agora entre 5 e 7 milhões de assinantes, segundo estimativas do setor.
Diante do terremoto sofrido pelo mercado de comunicação, e com as Big Techs abocanhando o grosso das verbas publicitárias na última década, os irmãos Marinho optaram por mudar a gestão executiva da empresa, até então comandada por Jorge Nóbrega. Em 2022, Paulo Marinho, filho de José Roberto, assumiu como CEO. Estava no grupo desde 1998, e venceu a disputa pelo cargo com o primo Roberto Marinho Neto, que até 2019 dirigia a área de esportes da emissora. (Hoje, comanda a Globo Ventures, que investe em empresas de diversos setores.)
Paulo Marinho fez carreira nas áreas de negócios do grupo. Não se tem notícia de que tenha se desentendido com Kamel, mas, pelos corredores da Globo, a fofoca corria solta. Num evento interno chamado Conexão Liderança, em que os executivos foram chamados a falar sobre suas áreas, o nome de Kamel não apareceu na lista de palestrantes, e ele não compareceu. Foi o único gestor do mais alto nível da empresa – o N-1 – a ausentar-se, o que gerou desconfiança entre os executivos de que algo não estivesse bem.
Na avaliação de quem observou a cúpula do grupo nos últimos anos, Paulo Marinho preza o dinamismo e a capacidade de enxugar o que não vai bem. Kamel acatava as ordens de cortes, mas com alguma resistência. Ressentia-se, sobretudo, ao demitir jornalistas com muitos anos de casa, alguns dos quais eram amigos seus, como foi o caso de Maria Thereza Pinheiro, a Terezoca, que deixou a empresa em 2020. Outra divergência com a nova gestão era o seu modelo de controle total sobre o jornalismo, algo que talvez não fizesse mais sentido na “nova Globo”. O fato é que Ricardo Villela, dez anos mais novo que Kamel, com um estilo de liderança considerado mais “leve” internamente, vinha desenvolvendo afinidade com Paulo Marinho.
Na sucessão de Kamel, havia algum tempo que Villela disparara como favorito. Sua ascensão foi contínua. Depois de Veja, Jornal do Brasil e Playboy, entrou na Globo em 2005 como editor do Jornal da Globo. Enviara um e-mail a Kamel pedindo uma conversa. A resposta veio de Luiz Cláudio Latgé, diretor da Globo em São Paulo, que lhe ofereceu um teste. Villela aproveitou umas férias da Playboy e trabalhou como editor temporário da madrugada na Globo. Gostou. Quando abriu uma vaga, aceitou mudar de emprego para receber quase a metade do que ganhava na revista. Em 2013, tornou-se diretor da Globo em Brasília. Agora, é diretor-geral de jornalismo. Dado o declínio da Editora Abril e o fim da Playboy, Villela fez um excelente negócio.
Ali Ahamad Kamel Ali Harfouche nasceu numa família modesta. Seu pai, Ahmad Harfouche, veio da Síria nos anos 1950 e sua mãe, Zeny, nascida no Brasil, era filha de pai sírio. O casal teve dois filhos (Ali e Mamede) e duas filhas (Leila e Samira, esta gêmea de Kamel). O pai e o avô materno eram muçulmanos, mas, como a mãe era católica, as crianças estudaram em colégio de freiras dominicanas. Quando se casou com a jornalista Patrícia Kogut, nascida em uma família de judeus praticantes, Kamel passou a se interessar com obstinação pelo judaísmo, mas não se converteu.
Ahmad Harfouche era dono de uma quitanda em sociedade com os primos na Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema. Depois, passou a vender tapetes persas e tornou-se grande entendedor do produto. O filho participava do movimento estudantil e começou a ler a chamada “imprensa alternativa”, que se opunha à ditadura militar. Lia veículos como Repórter e Movimento, no qual colaborava o futuro presidente Fernando Henrique Cardoso. Aos amigos, sempre diz que aprendeu a ler jornais diariamente ainda no antigo primeiro grau, quando uma professora pedia que os alunos resumissem todos os dias a primeira página do grande veículo da época, o Jornal do Brasil.
Kamel pensava em cursar a faculdade de medicina, mas, obcecado por suas leituras, optou por fazer ciências sociais. Passou em primeiro lugar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com nota suficiente para entrar na medicina. Seu desejo era se dedicar à pesquisa em sociologia. Só fez jornalismo na PUC-Rio por insistência de um cunhado, que lhe dizia que ele jamais conseguiria trabalho como sociólogo.
O jornalista Arthur Dapieve, contemporâneo de Kamel, estudava de manhã na PUC. Ele se recorda de ouvir falar que, no curso noturno, havia um aluno diferente da fauna local. “Falavam que tinha um sujeito muito formal na turma da noite, que usava camisa fechada, muito tímido e meio geniozinho”, relembra. “Isso chamava a atenção numa época em que a gente se vestia de uma maneira francamente bagunçada.” Kamel concluiu os dois cursos, mas nunca trabalhou como sociólogo.
Sua personalidade reservada e a timidez não foram empecilhos para que assumisse funções de chefia desde cedo. No início da década de 1980, era repórter na Rádio Jornal do Brasil e tinha a atribuição de escolher os trechos mais relevantes do noticiário político para compor os informes espalhados pela programação. Ficava satisfeito ao constatar que, à noite, o Jornal Nacional, então apresentado por Cid Moreira, escolhera o mesmo trecho como destaque. Nesse período, segundo ex-colegas, a editora Regina Bodstein decidiu que a pronúncia do nome “Ali Harfouche” era incompatível com a rádio e definiu que, dali em diante, seria “Ali Kamel”. Kamel é nome próprio, e não sobrenome.
Aos 23 anos, deixou a rádio e foi trabalhar como repórter da Afinal, uma revista semanal que surgiu e morreu nos anos 1980. A sede ficava em São Paulo. Poucos meses depois de sua chegada, a chefe da sucursal carioca pediu demissão, e Kamel assumiu seu lugar. Em 1987, começou a trabalhar na redação da Veja no Rio de Janeiro, então dirigida por Alessandro Porro. Como seu chefe era mais afeito à vida noturna que aos fechamentos na madrugada, Kamel, então com 25 anos, na prática, comandava tudo.
Nesse período, editou reportagens que acabaram tendo grande influência sobre os rumos do país. A mais notória saiu em outubro de 1987, revelando o plano dos oficiais Jair Bolsonaro e Fábio Passos da Silva de explodir bombas em protesto contra os baixos soldos. Assim que a matéria saiu na Veja, o Exército disse que era tudo mentira. Na semana seguinte, a revista publicou nova reportagem, desta vez exibindo os croquis do atentado, desmoralizando o Exército. “A sucursal não passou nenhum aperto, não foi pressionada”, disse Kamel ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, autor do livro O cadete e o capitão, publicado pela Todavia. “Todos sabiam que estávamos falando a verdade.” Com esse episódio, Bolsonaro passou a existir para a opinião pública. Em 1988, depois de convidado a se retirar do Exército pela inclinação terrorista, elegeu-se vereador. O resto é história.
(Quando esteve nos estúdios da Globo para ser entrevistado no Jornal Nacional na campanha de 2018, Bolsonaro avistou Kamel e rememorou o episódio. “Ali [pronunciou “alí”, não “áli”], a gente já se cruzou por telefone ali pelos anos de 1988, não?” O jornalista não esperava a abordagem. “Sim, sim, eu tinha 25 anos e era chefe de redação da Veja no Rio.” Bolsonaro respondeu: “Sem mágoas, sem mágoas.” Ao que Kamel cortou, sem alterar o tom de voz: “Mágoas? Como assim? Foi depois daquela reportagem que o senhor se lançou na vida pública!” Nas eleições de 2022, ao comparecer à mesma entrevista, Bolsonaro fez o mesmo comentário. Kamel deu a mesma resposta.)
Em 1989, Kamel fez uma virada em sua vida. Aceitou a proposta do jornal O Globo, passo inicial de uma trajetória que o levaria ao topo do jornalismo televisivo no país.
Ali Kamel tem três traços que chamam a atenção de quem o vê pela primeira vez. Seu tom de voz é sempre baixo e monocórdico. Seus silêncios são longos. E, como acontece desde os tempos de faculdade, sua camisa é abotoada, quase sempre de manga comprida, com punhos também abotoados. Entre seus conhecidos, costuma-se dizer, entre a galhofa e a fofoca, que o zelo com que se cobre decorre da presença de tatuagens pelo corpo – boato que nunca se confirmou.
Kamel é assim: monocórdico, silencioso, abotoado – e colecionador de dedais de louça. A coleção cresceu depois que os mais chegados souberam de sua existência e passaram a presenteá-lo com dedais comprados pelo mundo. Seu prazer, contudo, é justamente o de achar e comprar o dedal a cada cidade que visita. Gosta de bibelôs e objetos com história familiar. Em sua sala na Globo, mantinha um pequeno Daruma, um boneco da sorte japonês em que se pinta um olho na esperança de alcançar um desejo. Outro talismã era uma pedra grafada com uma frase em inglês: DIPLOMACY – the art of letting someone have it your way (DIPLOMACIA – a arte de deixar o outro fazer do jeito que você quer).
É, também, bastante disciplinado. Parou de beber há cerca de seis anos, depois de uma cirurgia para a retirada da vesícula. Amigos contam que, embora nunca tenha sido dado a noitadas, ficava incomodado de ser flagrado sob efeito de álcool, considerando a alta posição que ocupava na tevê. Quando Villela, seu sucessor, ficou internado em razão da Covid, prometeu que voltaria a beber se o colega se curasse. Villela teve alta, mas Kamel ainda não cumpriu a promessa.
Costumava correr diariamente 5 km na orla de Ipanema. Parou durante a quarentena da pandemia. Temia que algum bolsonarista o avistasse na rua e fizesse um barulho público, acusando-o de violar o isolamento social. Depois, perdeu o hábito. Numa viagem à Islândia, decidiu andar de moto de neve, julgando ser uma opção menos arriscada. Escorregou ao sair do veículo e quebrou um ombro.
É botafoguense, mas não liga para futebol. Nunca foi a um jogo no estádio. No ano passado, quando o time disparou na liderança do Campeonato Brasileiro, Kamel apareceu no trabalho vestindo a camiseta alvinegra por cima da camisa social – um movimento de espantosa informalidade. Naqueles dias, arriscava até algumas análises táticas sobre os jogos. Quando o Botafogo entrou num declínio épico, terminando o campeonato em quinto lugar, ironizou dizendo que o revés decorrera do fato de que, pela primeira vez, ele decidira torcer. Tem humor afiado e às vezes autodepreciativo.
É metódico, e não apenas no trabalho. Em casa, é ele quem cuida de tudo. Coordena os empregados, define detalhes da decoração. Quando se emociona, não tem nada de discreto ou silencioso. Como diz um amigo, “ele chora pelo nariz, chora alto”. Passou por maus bocados ao perder os pais, o irmão e os dois amigos mais próximos num intervalo de uma década. Em 2011, depois de receber diagnóstico de uma doença degenerativa, Rodolfo Fernandes, ex-diretor de redação de O Globo, morreu aos 49 anos. Kamel chorou copiosamente quando, numa viagem a Paris, esteve com a netinha de Fernandes, que acabara de nascer e que o amigo não chegou a conhecer. Em 2013, morreu seu pai. Dois anos depois, sua mãe. Em 2017, Jorge Bastos Moreno, amigo desde os tempos de Brasília, morreu aos 63 anos, em decorrência de complicações cardiovasculares. Em 2022, seu irmão Mamede sucumbiu a um ataque cardíaco.
Quando é convidado para um evento noturno, ele sempre inventa uma desculpa. Mesmo nas noitadas que Moreno fazia em sua cobertura no bairro de São Conrado, quando voltara a viver no Rio, o jornalista raramente aparecia. Topava o convite só se Moreno fizesse uma reunião apenas com os mais próximos. Em 2023, numa festa dada pela jornalista Renata Lo Prete, apresentadora do Jornal da Globo, em comemoração aos seus 60 anos*, a Globo estava em peso, mas Kamel não compareceu. Havia dois palpites para sua ausência: o pouco apetite natural para festas e o receio de ser abordado para falar sobre sua (já pública) saída da empresa.
A vida discreta também serviu como antídoto para expor o menos possível sua família aos ataques inerentes à sua posição, sobretudo quando o jogo político ficou pesado. Ao amadurecer a ideia de deixar o comando do jornalismo da Globo, teve longas conversas com sua mulher. Discutiram as implicações financeiras da decisão, até concluir que dinheiro não seria um problema. Sua vida pessoal já havia se alterado. Na pandemia, o casal comprou um sítio em Secretário, na serra fluminense, para passar os fins de semana. Kamel passou a cuidar das plantas, tomar banho de cachoeira e encantou-se com a fauna, em especial quando uma câmera instalada no jardim captou a visita noturna de animais silvestres, como uma onça parda e uma jaguatirica. Antes recluso num apartamento em Ipanema, gostou tanto da ideia de um segundo lar que, no ano passado, comprou outro, desta vez em Paris. A nova rotina estava se tornando mais atraente que a pressão do cargo.
Quando entrou no jornal O Globo em 1989, Ali Kamel chefiava as reportagens do caderno de bairros cariocas. Evandro Carlos de Andrade dirigia a redação havia vinte anos e, na batalha bem-sucedida para superar o Jornal do Brasil, fizera uma mudança editorial importante num veículo antes pouco prestigiado e associado à ditadura. Andrade testava no caderno de bairros os jornalistas em quem mais apostava. Kamel continuava usando a camisa fechada e não conversava muito, mas tinha habilidade para comandar a equipe de repórteres. Sabia o que queria e sua postura reservada inibia demonstrações públicas de descontentamento por parte dos subordinados. Numa redação habituada a exaltações e tumultos, como era comum naqueles tempos, a direção não deixou de notar o exercício silencioso do comando de Kamel.
Em poucos meses, ele subiu degraus importantes. Foi editor do Segundo Caderno, editor de Suplementos, até ser convidado para dirigir a sucursal de Brasília, sempre a mais importante das publicações com sede no Rio ou em São Paulo. “A gente achou estranho vir um chefe de cultura, que não era da política. Caiu de paraquedas aquele menino, sem nenhuma experiência política, numa potência que era a sucursal naquela época”, lembra Ascânio Seleme, um dos coordenadores em Brasília nos anos 1990 e que foi diretor de O Globo entre 2011 e 2017. “Mas a gente entendeu logo por que ele foi escolhido. Era uma pessoa acima da média, entendia muito rápido, de boa negociação, bom trânsito.”
“O Ali, além de ser competente, tem muita sorte”, diz Helena Chagas, que foi repórter da equipe de Kamel em Brasília e, anos depois, diretora da sucursal. “Naquele tempo, ocorria o impeachment do Collor, e a equipe de Brasília estava indo muito bem, a sucursal estava num bom momento”, diz a jornalista. Ao desembarcar na capital federal, Kamel foi duplamente auxiliado pelo veterano Jorge Bastos Moreno, que cobria política para O Globo e tinha fontes por toda a Esplanada. Moreno apresentou Kamel para todas as autoridades importantes, facilitando sua ambientação. E abriu-lhe as portas até para uma relação amorosa ao apresentá-lo à cantora Fafá de Belém, com quem começou um relacionamento algum tempo mais tarde.
Depois da chegada de Kamel à sucursal de Brasília, não demorou muito e Moreno deu o furo que marcaria a gestão do amigo: quando a CPI sobre as traficâncias de Collor começava a perder fôlego, Moreno descobriu que o Fiat Elba usado pelo presidente fora pago com cheques-fantasmas de seu tesoureiro de campanha, PC Farias. O caso reacendeu a CPI e, cinco meses depois, Collor estava fora da Presidência.
Nos dois anos em que ficou em Brasília, Kamel fez grandes amigos. Entre eles, Silvia Faria, que seria seu braço direito no Rio. Também foi próximo de Tereza Cruvinel, então colunista de O Globo, do próprio Ascânio Seleme e de Ana Tavares, assessora de toda a vida de Fernando Henrique Cardoso. Mas passou pouco tempo na capital porque na redação de O Globo no Rio as coisas estavam fervendo. Era, de novo, sua sorte. Na época, o jornalista Merval Pereira, então editor-chefe de O Globo, havia pedido demissão por não concordar com mudanças na hierarquia interna. Luis Erlanger ficou no seu lugar e Kamel foi chamado de Brasília para ser seu braço direito. Como editor-chefe adjunto, aos 31 anos, estava a dois degraus da direção do jornal.
Continuava sua relação com Fafá, o que se tornou tema frequente nas conversas de corredor do jornal. A revista Caras queria noticiar o namoro, mas, sem confirmação oficial, precisava ao menos de uma foto do casal. Em certa ocasião, durante uma temporada de shows da cantora no Canecão, a revista mandou um fotógrafo ao espetáculo com a missão de clicar os dois juntos. O fotógrafo foi até o camarim, mas Kamel esquivou-se como pôde. A revista nunca publicou foto do então casal.
Em 1995, Kamel subiu mais um degrau. Com o afastamento de Roberto Marinho, já octogenário, e a chegada de seus três filhos à empresa, o impulso de profissionalizar a Globo produziu mudanças importantes. Evandro Carlos de Andrade deixou o comando do jornal O Globo e assumiu a direção-geral de jornalismo da tevê, levando Erlanger para integrar sua equipe. Merval Pereira voltou ao jornal, assumindo como diretor. E Kamel foi então alçado ao posto de número dois. Nessa função, ia de vez em quando às reuniões do Conselho Editorial, passando a ter contato maior com João Roberto Marinho. Em 2001, o “doutor Evandro”, como era chamado pelos Marinho, morreu vítima de uma doença hematológica rara. Dessa vez, a dança das cadeiras foi precedida por um ritual mórbido. O anúncio de que o jornalista tinha uma enfermidade incurável deflagrou uma disputa de poder velada, mas renhida.
Entre todos os candidatos de várias áreas da Globo, venceu Carlos Henrique Schroder, indicado pelo próprio antecessor, que afirmava querer corrigir uma injustiça. Quando chegou à tevê, Evandro Carlos Andrade colocou Erlanger no lugar de Schroder, que acabou sendo rebaixado. Aos poucos, Schroder foi conquistando a confiança do chefe com seu conhecimento técnico. (Uma dezena de fontes ouvidas pela piauí disse a mesma frase para defini-lo: “Schroder era capaz de colocar uma tevê no ar sozinho.”) Mas, como lhe faltava certo lustro intelectual, segundo jornalistas que acompanharam a sucessão, os Marinho resolveram colocá-lo no cargo com Kamel logo abaixo.
Numa troca de e-mails ocorrida em janeiro, perguntei a João Roberto Marinho como havia se dado a substituição. Ele respondeu: “Para nós, estava claro que o Schroder era o sucessor e que precisávamos escolher um editor executivo para completar a equipe. Foi quando surgiu o nome do Ali. Eu já o conhecia muito bem, trabalhamos juntos no jornal durante muitos anos e construímos uma relação profissional de muita confiança.” João Roberto continuou: “Ali e eu comungávamos dos mesmos princípios sobre o jornalismo profissional. Ali nos ajudou a escrever os Princípios editoriais do Grupo Globo. Quando o nome do Ali surgiu nas conversas de nós três [refere-se aos três irmãos Marinho], logo ficou claro que era o melhor nome para compor a direção do jornalismo com o Schroder. Quando Evandro faleceu, as escolhas já estavam feitas. Convidamos o Schroder e o Ali no dia seguinte.”
O convite surpreendeu a redação do jornal, cuja aposta mais alta era Merval Pereira. Ele rememorou a sucessão quando conversamos em seu apartamento com vista para a Praia do Leblon, em novembro: “Alegaram que se pusessem outra pessoa do Globo no lugar do Evandro, podia ser mal recebido pelo jornalismo da tevê. E puseram o Schroder. Mas o Schroder sempre foi mais um cara de tecnologia da televisão. Ele era bom de técnica. De jornalismo mesmo, não era. Aí o João Roberto veio falar comigo. Pediu o Ali. Eu não tive como recusar.”
Merval Pereira conta que, em meio aos boatos de quem assumiria, chegou a sugerir seu próprio nome. “Quando começou a especulação, o Luiz Eduardo Vasconcellos era o diretor-geral do grupo. Um dia, ele me diz que o João [Roberto] estava preocupado com esses boatos. Eu disse a ele o seguinte: não acho que seja uma obrigação eu substituir o Evandro só porque eu o substituí no Globo. Ele escolhe quem ele achar melhor. Mas eu acho que o meu nome deve ser levado em conta. Aí eles chegaram à conclusão que era melhor o Schroder, que seria melhor botar um cara da Globo, e não mais um do Globo”, conta. “Mas eu nunca fui convidado.”
De fato, quando o nome de Kamel começou a circular nas conversas de corredor, sua origem no jornal impresso causou apreensão na tevê. Marluce Dias da Silva, então diretora-geral da emissora, externou suas ressalvas para Erlanger. “Você precisa me ajudar”, disse ela. “Por quê?” perguntou o jornalista. “Porque os Marinho estão cogitando o Ali Kamel para a direção-geral. Eu acho importante que seja alguém da casa. Que seja o Schroder.” As especulações de que Kamel logo engoliria Schroder e assumiria a direção-geral de jornalismo mostraram-se equivocadas. Ele só assumiu o posto de Schroder em 2013, doze anos depois de sua chegada à Globo.
Schroder não conhecia Kamel. Quando soube que o jornalista seria o número dois, investigou seu perfil. Conversou com Erlanger, que tivera suas desavenças com Kamel no jornal. “Eu não tenho nenhuma informação contra ele”, disse Erlanger. “Ele não vai te sabotar. É um cara ético.” Kamel fez o mesmo movimento, desconfiado que estava de ter um superior hierárquico sem a bagagem jornalística de Evandro Carlos de Andrade. Desejava, tal como em O Globo, estar num ambiente de disputa intelectual, o que não era necessariamente o caso na tevê. Mas, no fim, o arranjo funcionou. Kamel ficou com as questões editoriais, Schroder, com a estrutura técnica. Certa vez, o jornalista Ricardo Kotscho, secretário de Imprensa no primeiro governo de Lula, brincou sobre os dois executivos: “Vocês estão sempre juntos. Ou gostam muito um do outro, ou não confiam um no outro.”
Kamel e Schroder tinham uma semelhança e uma diferença fundamentais, que favoreciam mais a conciliação do que a guerra. Ambos operavam com uma racionalidade florentina, quase maquiavélica, mas tinham objetivos distintos. Kamel era ambicioso e muito zeloso do seu poder, mas não tinha pretensões além de comandar o jornalismo. Schroder, mesmo sem reproduzir a afinidade que Kamel tinha com João Roberto Marinho, desejava um caminho ao topo. Conseguiu. Em 2013, tornou-se diretor-geral da Globo, cargo que deixou no final de 2020.
Quando chegou na emissora, Kamel não entendia nada de televisão. Em sua primeira semana no cargo, uma pane no switcher (uma espécie de sala de controle de um telejornal) deixou o JN fora do ar por 1 minuto, uma falha inédita. Apavorado, indagou a um editor na redação: “Por favor, me diz se tem alguma possibilidade remota de eu ter causado isso.” Para entender a dinâmica da tevê, Kamel passou a acompanhar repórteres na rua. Participou de coberturas na Sapucaí na alta madrugada. Viajou até o Vaticano junto com a equipe que cobria o velório do papa João Paulo II, ocasião em que segurou refletores, carregou câmeras e até socorreu com um cobertor um congelado William Bonner, que não usava roupa adequada para o frio de Roma. Interessou-se em especial pela cobertura eleitoral nos Estados Unidos, que coordenava in loco.
Dentro da redação, passou a exercer controle estrito sobre o conteúdo. Ele próprio escrevia muitos dos textos que seriam lidos pelos repórteres na tela – o que, para os mais experientes, representou uma ingerência incômoda. Editores do JN na época contam que, na gestão anterior, a direção interferia no texto quando o assunto era delicado. Com Kamel, a interferência se generalizou. Causou choque quando, logo depois de sua chegada, o editor executivo do JN, o experiente Renê Astigarraga, um dos decanos da equipe, teve que ler a abertura do jornal por telefone para que Kamel a aprovasse. Era um controle inédito. Para alguns, um insulto.
Kamel tentava controlar até o que a imprensa publicava sobre a Globo, em especial a Folha de S.Paulo. O jornalista Daniel Castro, que por nove anos cobriu tevê para o jornal, diz que Kamel era uma fonte constante de pressão. O auge das reclamações foi quando Castro publicou uma nota dizendo que um projeto de Kamel – a Caravana JN, em que uma equipe do jornal viajava pelo país num ônibus – era cópia de uma ideia da CNN. A vida de Castro virou um inferno. “Ele era um cara muito preparado intelectualmente. Muito mais preparado que eu”, reconhece o jornalista. “Mas a forma com que ele vinha falar era intimidatória.” De uma conversa com o então diretor da Folha, Otavio Frias Filho, Castro saiu com a impressão de que Kamel, além de reclamar com ele, também ligava para seus superiores.
Em 2002, depois de um ano no comando do jornalismo da Globo, Kamel já exercia com desembaraço não só o controle, mas também o poder. Numa ocasião, mandou e-mail para Eugênia Moreyra, a editora-chefe da primeira edição do Big Brother Brasil, fazendo comentários sobre o programa. Quando ela lhe disse que precisava de pelo menos dez minutos de horário fixo na grade de programação para atender suas sugestões, Kamel prometeu resolver. “Ele falou: ‘Tá bom, eu vou conseguir para você.’ Dois dias depois, ele tinha conseguido”, diz ela. Não era coisa fácil. Nem mesmo José Bonifácio de Oliveira, o Boninho, diretor do programa, parecia conseguir alterar a grade. “Fiquei muito grata porque o Ali não precisava fazer isso. Ele estava em outro momento, inclusive muito desafiador”, lembra Moreyra. Meses depois, ficaria mais desafiador.
O jornalista Tim Lopes estava envolvido numa apuração que o levou à Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Rio, no domingo, dia 2 de junho de 2002. Ele conhecia a favela, já fizera outras incursões no local, mas, no dia seguinte, seu chefe não conseguiu localizá-lo e achou melhor avisar Kamel. A despeito do controle que exercia, Kamel nem sabia da apuração. Pensou que Tim Lopes pudesse estar assistindo à estreia do Brasil contra a Turquia na Copa do Mundo no Japão. Como o dia transcorreu sem notícias, a polícia foi avisada e iniciaram-se as buscas. Uma semana depois de seu desaparecimento, veio a confirmação: Tim Lopes fora brutalmente assassinado. O autor do crime foi Elias Maluco, traficante do Comando Vermelho. (O criminoso se matou na prisão em 2020.)
O caso chocou o país e teve impacto no jornalismo da Globo. Kamel tornou-se muito sensível aos riscos que os repórteres corriam. Os jornalistas foram proibidos de fazer incursões em favelas, passando a cobrir o que acontecia nas comunidades em delegacias, hospitais e outros lugares mais seguros. Um ex-repórter do JN, que trabalhava em investigações no Rio, diz que o excesso de cuidado, em parte, burocratizou o trabalho jornalístico, numa época em que as milícias se capilarizaram. “Em várias ocasiões, a gente sabia que dava [para entrar em áreas perigosas], mas alguém sempre dizia: ‘O Ali falou que não.’”
Os jornalistas passaram a usar coletes à prova de bala, receber treinamento para atuar em zonas de perigo e andar em carros blindados. Na cobertura de guerras, passaram a ficar na fronteira, nunca no local do conflito. Todo o deslocamento para áreas de risco demandava autorização de Kamel – o que ajudou a ampliar ainda mais seu controle sobre a redação. Eugenia Moreyra conta que, quando comandava a GloboNews, mandou a repórter Bianca Rothier, correspondente em Genebra, cobrir a invasão russa da Crimeia, em 2014, sem avisar Kamel. “Ele ficou puto”, relembra ela. “Disse que não teria deixado.”
Enquanto a Globo tentava se recuperar da morte de Tim Lopes, a campanha presidencial corria solta – e Kamel tinha uma nova missão: João Roberto Marinho queria inovar a cobertura. Kamel saiu-se com a ideia de entrevistar os presidenciáveis na bancada do Jornal Nacional, ao vivo. A ideia era uma entrevista densa, curta e cheia de tensão, capaz de revelar o candidato por trás do discurso. Equipes de jornalistas faziam dossiês, elaboravam perguntas e simulavam respostas para estudar réplicas e tréplicas.
A entrevista de candidatos no JN estreou no dia 8 de julho de 2002, com a presença de Ciro Gomes, e logo traria desconforto entre a Globo e o presidenciável preferido da emissora – o tucano José Serra, o terceiro a dar entrevista. Em suas memórias, Fernando Henrique conta que Serra ficou irado ao deixar a bancada do JN. Considerou que William Bonner fora mais duro com ele do que com os outros candidatos. FHC concordava com a avaliação e, em jantar com a cúpula da Globo, tocou no assunto. “Com jeito eu coloquei a eles a questão, em particular ao João Roberto, não no sentido de mudar nada, mas para dizer que precisa haver equilíbrio…”, escreveu FHC em seu Diários da presidência, composto por quatro volumes editados pela Companhia das Letras. A resposta de Marinho foi a seguinte: “Nós fizemos perguntas embaraçosas de propósito para todos, eu acho que foi para todos.” Kamel estava no jantar, ocorrido na noite de 16 de julho, mas FHC não registrou sua reação à reclamação.
Na mesma ocasião, especulou-se sobre o resultado possível daquele pleito, já então liderado por Lula, com 33% das intenções de voto. FHC relatou que João Roberto achava que Serra, três pontos atrás de Ciro, ainda tinha chances de ir para o segundo turno e ganhar. “Todos muito preocupados com a subida de Ciro”, escreveu FHC. Kamel achava que o presidente precisava entrar logo na campanha para ajudar Serra. “Perguntei: ‘Entrar como? Eu o estou defendendo, mas na campanha eu só posso entrar mais adiante, quando começar o programa eleitoral na tevê e no rádio.” FHC tratava os Marinho como “amigos meus de muitos anos”, mas Kamel era mais que isso. “Alguns são torcedores, como o Ali Kamel”, escreveu.
Mesmo diante das preferências pessoais, a Globo fez uma cobertura equilibrada. Kotscho, que comandou a comunicação da campanha de Lula, diz que não houve nada para reclamar. “Foi uma cobertura correta e profissional”, avaliou outro petista envolvido na campanha, que pediu para não ter seu nome citado na reportagem. Mas, logo no início do governo, Kamel sentiu que as coisas não funcionavam mais do mesmo jeito.
Assim que Lula tomou posse e começou a se preparar para lançar o programa Fome Zero, Kamel procurou Kotscho e pediu para falar com o presidente. Queria compartilhar com Lula algumas ideias sobre o programa. Acostumado com a gestão anterior, em que a amiga Ana Tavares viabilizava com facilidade conversas com FHC, Kamel tomou um susto quando ouviu de Kotscho que Lula não iria recebê-lo. O petista mandou dizer que procurasse José Graziano, o ministro responsável pelo Fome Zero. “Claro que o Ali não gostou muito, porque ele queria falar com o presidente, né? Mas ele nunca me cobrou, nunca tive atrito com ele. Muito pelo contrário. Quando saía alguma notícia errada na Globo, eu ligava e eles logo retificavam”, diz Kotscho.
A relação da emissora com o governo caminhou sem maiores transtornos no primeiro mandato de Lula, mas azedou no segundo, quando Franklin Martins, que fora diretor da sucursal do Globo em Brasília e comentarista na tevê, virou ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência. A saída de Martins da emissora não foi pacífica. No primeiro mandato de Lula, ele era comentarista político do JN e começou a contradizer, em seus comentários, a apuração da tevê sobre o escândalo do mensalão, entrando em rota de colisão com Kamel – e depois se provou que os repórteres estavam corretos. Quando o Conselho Editorial resolveu cortar os comentaristas do JN – o próprio Martins e o cineasta Arnaldo Jabor –, o jornalista ficou na geladeira. As relações internas foram se desgastando e, em meados de 2006, Schroder avisou Martins que seu contrato não seria renovado. Depois de receber a notícia, Martins passou na sala de Kamel para se despedir.
– Eu não acredito que ele [Schroder] fez isso. Eu não estava sabendo – reagiu Kamel, com ar surpreso.
– Ali, nisso eu não acredito – devolveu Martins. – Você é o segundo cara do jornalismo da TV Globo e diz que não sabia que meu contrato não seria renovado?
Kamel sempre manteve sua versão. Martins jamais acreditou nela. Nunca mais se encontraram. Certa vez, Kotscho, já fora do governo, tentou articular um armistício. Na festa de aniversário de um amigo em comum, fez uma proposta a Kamel: “Vamos acabar com essa briga! Por que você não conversa com o Franklin? Vamos marcar um almoço.” Segundo Kotscho, Kamel não aceitou. Tempos depois, Kotscho procurou Martins e fez a mesma oferta. Ouviu negativa semelhante. “Simplesmente não havia mais diálogo”, diz Kotscho.
No governo, Martins não deu vida fácil à Globo, nem a Kamel. Priorizou entrevistas de Lula para rádios do interior, em detrimento dos grandes canais. Engordou a fatia das verbas publicitárias dos blogs simpáticos ao governo, um segmento que acabou se proliferando na internet. Alguns sites lembraram de um ator pornô dos anos 1980, homônimo de Kamel, e insinuaram que os filmes, na verdade, eram estrelados por ele. Kamel processou os autores, todos ex-jornalistas da Globo, e ganhou. Quando o então deputado Eduardo Cunha ofereceu a repórteres um dossiê acusando as enteadas de Kamel, adolescentes na época, de promover algazarra no prédio em que viviam, a Record foi atrás da história, mas nunca exibiu nada. Um ex-jornalista da Globo publicou o caso num blog já extinto. Foi processado e perdeu.
Martins dizia que não perseguia a Globo, apenas tentava ampliar a audiência de Lula. Kamel também dizia não ter nada contra Martins. A animosidade, no entanto, era evidente. Tanto que, durante o tempo em que Martins esteve no governo, ele e Kamel nunca se encontraram. “Foi ruim para a Globo não ter um interlocutor no governo”, avalia Kotscho. “Mas também foi ruim para o governo.” (Martins não quis dar entrevista.) O próprio Lula guardava mágoas de Kamel. Em 2008, em entrevista a Mario Sergio Conti, então diretor da piauí, disse: “O Ali já fez artigos me defendendo do preconceito. Mas tenho profundo ressentimento da cobertura da Globo na campanha de 2006.”
Kamel defendeu Lula ao escrever que chamá-lo de “cachaceiro” era puro preconceito, já que muitos políticos eram frequentes bebedores de uísque – e isso não era visto como problema. A mágoa de Lula vinha de uma matéria do JN, exibida na véspera do primeiro turno da eleição de 2006, que mostrava petistas empenhados em comprar um dossiê – falso – contra José Serra, então candidato ao governo de São Paulo. O caso fez barulho, e o PT avaliou que a divulgação da notícia acabou impedindo Lula de vencer a reeleição já no primeiro turno. Lula nunca se disse ressentido com os petistas do dossiê que, na época, ele mesmo chamou de “aloprados”. (Em 2007, o caso foi julgado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que avaliou não haver provas de que o PT ou Lula tivessem ordenado a compra do dossiê.)
Foi um período conturbado para o jornalismo da Globo. A saída recente de Martins deixara um gosto amargo entre jornalistas que expunham sua posição política, quase sempre de esquerda, dentro da empresa. Havia grupos internos que acusavam a emissora de dar menos ênfase aos malfeitos tucanos do que aos petistas. Essa percepção se aprofundou depois do caso do dossiê, sobretudo no braço paulista da Globo, no período em que os tucanos ocupavam o governo estadual. Uma reportagem da CartaCapital chegou a acusar o Jornal Nacional de ter omitido deliberadamente a queda do avião da Gol, que matou 154 pessoas, apenas para concentrar a atenção daquela edição no dossiê dos “aloprados”.
Em texto no site Memória Globo, a emissora explica que não noticiou a queda do avião no JN naquela noite porque o acidente não fora confirmado até o final da edição. A piauí constatou que o Boeing da Gol foi dado como desparecido às 21h14, horário em que o JN já havia terminado. Às 21h15, o Plantão da Globo noticiou a queda. A editora da reportagem sobre o dossiê para o JN, que deixou a emissora há anos, me garantiu que o assunto foi tratado com o mesmo rigor jornalístico dos outros. As acusações de manipulação contra o PT e a favor do PSDB acabaram rachando a redação de São Paulo. Até que o jornalista Mariano Boni, então um dos chefes de São Paulo, lançou um abaixo-assinado interno a favor da empresa, o que foi visto pela redação como exemplo de puxa-saquismo. Nem todos assinaram. Alguns jornalistas que deixaram a emissora, demitidos ou não, se tornaram detratores de Kamel na internet.
Em 2003, João Roberto Marinho sugeriu que Ali Kamel tivesse uma coluna em O Globo. Rodolfo Fernandes, seu amigo e então diretor do jornal, topou na hora. Em sua coluna de estreia, tratou de um tema que acompanharia seus anos de colunista. O título era: Não somos racistas. Dizia que não havia racismo no Brasil e defendia que a maior força segregadora no país era a pobreza, que afetava mais os negros em razão da herança escravocrata – e não por preconceito racial.
Para Kamel, conforme escreveu em colunas posteriores, não se podia falar em racismo “institucional” considerando que a cor da pele não era critério seletivo para concursos, vagas de emprego ou ingresso na universidade. Ele não negava a presença do comportamento racista, mas defendia que eram episódios pontuais e, na maior parte das vezes, “envergonhados”. Por isso, era contra as ações afirmativas a favor dos negros. Avaliava que o investimento em educação básica era o motor da redução da desigualdade e da pobreza – e, por extensão, favoreceria os negros.
Nas páginas de O Globo, Kamel tinha uma antagonista. A jornalista e colunista Miriam Leitão, defensora das cotas raciais, estava convencida de que o racismo permeava a sociedade brasileira, mesmo que não fosse institucionalizado. Entre 2003 e 2009, período em que teve a coluna, Kamel escreveu 35 textos abordando o tema ou correlatos. Fazia reflexões como: “As cotas não criarão o racismo. Mas vão acirrá-lo, dando origem ao ódio racial.” Ou: “A maior parte dos pobres brasileiros é de negros, mas isso não se deve à cor da pele.” Ou ainda: “Mais do que inapropriado, é errado chamar um pardo de afrodescendente.”
Em agosto de 2006, Kamel lançou um livro pela Nova Fronteira defendendo suas teses. O título era aquele mesmo – Não somos racistas – e ganhou boa publicidade. Em entrevista à Folha de S. Paulo na época, o cantor e compositor Caetano Veloso exaltou a obra. “Você sabe como é: a esquerda tem o velho hábito de só ler aqueles livros que já concordam com as ideias que ela tem. Aquelas pessoas que supostamente são progressistas e que querem a Justiça já se põem como inimigas do livro, o que é uma pena. O livro é para verdadeiramente fazer a discussão caminhar.” Kamel e Caetano mantiveram uma correspondência por e-mail a partir dessa convergência.
A crítica veio do músico e escritor Nei Lopes, que escreveu nas páginas de O Globo:
Mais uma vez o jovem jornalista e agora escritor volta ao passado mais obscurantista para justificar seus argumentos supostamente modernos. Em sua cruzada contra as tentativas de ações e políticas públicas que estabeleçam a tão sonhada igualdade entre negros e não negros (inclusive descendentes de espontâneos imigrantes levantinos, como ele) no Brasil, Kamel procura jogar os negros de pele mais clara (por ele derrogatoriamente chamados “pardos”), como nós, contra os mais pigmentados, como alguns de nossos familiares e amigos, militantes da mesma causa.
Kamel respondeu às críticas dizendo-se incompreendido por Nei Lopes.
Com a ebulição, Kamel, que é de poucas palavras e não dá entrevistas, falou como nunca numa entrevista ao programa Espelho, apresentado pelo ator Lázaro Ramos, no Canal Brasil (que pertence à Globo). O programa fez as mesmas perguntas para Kamel e para o cineasta Joel Zito Araújo, negro, que tinha uma visão oposta. Como era só mediador, Lázaro Ramos, embora negro como Araújo, ouvia tudo em silêncio, às vezes exibindo uma expressão de espanto. A certa altura, Kamel disse que as cotas prejudicavam “a autoestima dos negros americanos” porque eles mesmos pensavam: “Ah, nós somos assim porque os brancos deram cotas para a gente.” O ator não se conteve e retrucou: “Os brancos [deram as cotas]? Ou a batalha dos negros para adquirir essas cotas?” Depois disso, a disputa estava perdida para Kamel.
Era um momento novo. Kamel deixava para trás a timidez e a discrição para assumir posições públicas, como polemista. Em 2007, ele voltou ao mercado editorial. Publicou o livro Sobre o islã, no qual traça os pontos comuns das três grandes religiões monoteístas (muçulmana, cristã e judaica) e disseca as origens do terror islâmico. O livro fez uma defesa entusiasmada da invasão americana do Iraque – que, soube-se depois, foi promovida com base na farsa de que Saddam Hussein armazenava armas de destruição em massa. Dois anos depois, Kamel lançou Dicionário Lula, listando as 347 palavras mais recorrentes no discurso do então presidente. Com 669 páginas, a obra resultou numa surpreendente exaltação do “comunicador sem igual”, dono de “um repertório de palavras semelhante ao de alguém com formação superior”.
Em 2009, João Roberto Marinho achou que Kamel deveria parar de escrever a coluna, já que estava nublando a linha divisória entre suas opiniões e as opiniões do Grupo Globo. Quando a Ediouro, que comprou a Nova Fronteira, propôs uma reedição de Não somos racistas, a conversa não avançou. A amigos, Kamel não diz que mudou de ideia, mas reconhece que sua visão perdeu o debate público, e os resultados obtidos pelas cotas raciais são irrefutáveis. A editora Biblioteca do Exército, órgão vinculado à caserna, reeditou Não somos racistas em 2009.
Nunca antes Kamel se expusera tanto, nunca depois voltaria a fazê-lo.
No início do governo de Dilma Rousseff, sem Franklin Martins dirigindo a comunicação, a Globo se preparava para um recomeço. Os Marinho entendiam que a nova presidente era diferente do PT, o que consideravam positivo. Cercou-se de egressos da Globo. Helena Chagas, ex-diretora de O Globo em Brasília, assumiu a Secretaria de Comunicação Social. Thomas Traumann, ex-chefe da revista Época, virou porta-voz de Dilma. Silvia Faria, diretora da Globo em Brasília, tornou-se a principal interlocutora entre a emissora e o Palácio do Planalto. As duas partes construíram uma relação próxima e de confiança mútua nos primeiros anos de governo.
Tudo ia mais ou menos bem até a chegada das grandes manifestações de 2013. Na avaliação do governo, a Globo tratou os manifestantes como baderneiros, quando eram associados à esquerda, mas tornaram-se merecedores de crédito quando passaram a criticar a classe política e o governo. Kamel defendia o noticiário. “Não havia qualquer intenção de usar isso [os protestos] para derrubar a Dilma”, afirma Silvia Faria. “A ideia era a cobertura mais ampla possível.” Para ela, as relações da Globo com o governo se agravaram em razão das decisões econômicas e políticas da presidente. “Dilma era uma pessoa extremamente difícil de lidar, era ideológica, principalmente na economia.” Faria conclui que havia diferenças irremediáveis com a linha editorial da emissora. “Apesar de eu achar a Dilma uma pessoa extremamente íntegra, de valor, ela não sabia lidar com a política e mantinha aquelas crenças da esquerda de intervenção do Estado.”
Em 2014, Kamel passou a se preocupar ainda mais com o equilíbrio do noticiário, já que a Lava Jato estava fazendo barulho e as pesquisas eleitorais apontavam empate entre Dilma e o tucano Aécio Neves. Ele acompanhava as apurações de perto, contabilizava os minutos dados a cada candidato. No dia do debate do segundo turno na Globo, a Veja divulgou uma capa afirmando que o doleiro Alberto Youssef dissera que Lula e Dilma tinham conhecimento de todas as “tenebrosas transações” na Petrobras. A imprensa ficou em polvorosa, mas Kamel não sentiu firmeza na denúncia da revista. Avisou a Thomas Traumann que não daria a notícia. Afinal, o doleiro não apontara nem prova, nem indício. No caso, valia o aforismo: afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias.
A Folha de S.Paulo, no entanto, colocou o assunto na manchete, dizendo que duas fontes haviam confirmado a acusação de Youssef. O colunista de imprensa do jornal, Nelson de Sá, até questionou a decisão da Globo de ignorar o assunto. Kamel escreveu uma carta à publicação e defendeu-se com o argumento mais elementar: a Globo não havia confirmado a veracidade do que o doleiro dissera à revista, tampouco do que a Folha noticiara. Sobre a manchete do jornal, afirmou: “Nossas fontes a classificaram de distorcida.” A Globo só entrou na história quando vandalizaram a Editora Abril, em protesto contra a Veja. Kamel avisou Traumann que o tema seria noticiado, mas com discrição.
Dilma foi reeleita por uma margem ínfima. Na largada, a relação com a Globo já não era o que fora no passado. Durante o discurso da vitória, um grupo de petistas começou a entoar “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. A emissora foi obrigada a exibir o desaforo. Kamel não gostou e ligou para um interlocutor da presidente para reclamar. Quando Dilma nomeou Joaquim Levy como ministro da Fazenda em seu segundo mandato, quase toda a imprensa celebrou, embora com certo ceticismo quanto à real capacidade do novo nomeado para mudar o rumo da política econômica. A Globo tinha a mesma percepção. No início de 2015, Levy foi recebido em um almoço na sede da emissora, no Rio. João Roberto fez a recepção. Coube a Kamel e ao então diretor de O Globo, Ascânio Seleme, fazer as observações incômodas de que nem o PT nem a Dilma acreditavam no ajuste fiscal, a solução liberal clássica para reduzir o déficit. Embora Levy tenha argumentado que a troca ministerial já era um sinal de boa vontade da presidente, o almoço terminou no mesmo ceticismo.
Na medida em que cresciam as manifestações contra o governo, aumentavam as críticas à condução da economia. “Na hora em que ficou claro que o Joaquim não tinha o controle da agenda econômica, aí foi pancada [da Globo] do começo ao fim”, diz um ex-auxiliar do ministro. As visitas de Silvia Faria à presidente ficaram mais raras. Dilma se retraiu. Em setembro de 2015, quando o Brasil perdeu o grau de investimento da Standard & Poor’s, Kamel recomendou à equipe de Levy: “O ministro precisa falar.” Levy acatou e deu entrevista naquela noite no Jornal da Globo. Foi um desastre. Sua vulnerabilidade ficou patente. Quando terminou, um produtor lhe trouxe um telefone. Era Kamel. Cumprimentou-o pela entrevista e desejou-lhe boa sorte. O ministro caiu três meses depois.
As críticas à economia se somavam ao noticiário da Lava Jato, operação que a Globo apoiou sem reservas. O juiz Sergio Moro foi premiado num evento do grupo, e tanto ele quanto o procurador Deltan Dallagnol foram recebidos pelos Marinho. Embora a força-tarefa tivesse relações com todos os veículos de imprensa, a Globo recebia tratamento preferencial. Era avisada com antecedência das operações policiais para que pudesse captar imagens das prisões, esquentando o noticiário. Dilma começou a ver a cobertura da Lava Jato como um instrumento de oposição. “A gente sempre definia o horário de resposta da Dilma em relação ao horário do Jornal Nacional”, diz um ex-auxiliar da presidente. “Era uma preocupação dela que a gente entrasse no JN.”
No jornalismo da Globo, tudo o que se referia à Lava Jato era tratado com Silvia Faria, Ricardo Villela ou Kamel. O apresentador William Bonner, embora editor-chefe do JN, não influenciava diretamente a cobertura de política. “Ele dizia: ‘Nem começa a falar. Vamos poupar meu esforço e o seu. Liga para o Ali. Se ele quiser dar, ele me liga e eu abro espaço aqui’”, conta um ex-repórter da emissora. A relação entre os dois já havia sido mais áspera no passado. Depois, acertaram-se: a autonomia de Bonner terminava exatamente onde começava o poder de Kamel.
Tal poder era usado sem reservas por Kamel no âmbito do jornalismo, mas, ao menos em um episódio, resvalou para o terreno pessoal. Em dezembro de 2016, em meio à guerra na Síria, dois familiares seus vindos daquele país foram retidos na imigração no aeroporto do Galeão, no Rio. Chegaram no Brasil sem a documentação adequada, sem dinheiro e, quando indagados se gostariam de entrar na condição de refugiados, um deles se exaltou, por supor que seria enviado para um “campo de refugiados”. Eles não falavam português. Diante da situação, a Polícia Federal decidiu impedir que entrassem no país e mandou que voltassem no primeiro voo disponível. Avisado da situação, um primo que vive no Brasil pediu ajuda a Kamel. Imediatamente, Kamel acionou a equipe da Globo em Brasília para encontrar uma solução.
A equipe da Globo procurou o governo Temer. À piauí, Michel Temer contou que, assim que foi acionado, recorreu ao seu ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para saber o que poderia ser feito. Moraes, por sua vez, também foi procurado por um jornalista da Globo em Brasília, que transmitiu o contato de Kamel ao ministro, para que falassem em privado sobre o ocorrido. Moraes não encontrou alternativa e os familiares foram obrigados a voltar para a Síria. Diante disso, um dos assessores de Temer me contou ter feito um alerta: “Presidente, o senhor sabe as consequências se a família dele for expatriada…” Por coincidência, uma bomba explodiria no colo do governo meses depois.
No dia 17 de maio de 2017, o colunista Lauro Jardim, de O Globo, publicou que o empresário Joesley Batista gravara Michel Temer sugerindo, na interpretação dos procuradores, que não fossem interrompidos os pagamentos feitos ao então presidente da Câmara, Eduardo Cunha. A frase de Temer entrou para a história: “Tem que manter isso aí, viu?” Quando soube da apuração, Ascânio Seleme, chefe de O Globo, conversou com João Roberto Marinho. Combinaram que a notícia só seria divulgada depois que a delação de Joesley Batista fosse homologada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
No dia em que isso aconteceu, João Roberto ligou para Kamel e alertou-o sobre o que estava por vir. O diretor estava chegando à Livraria da Travessa, no Shopping Leblon, onde sua mulher, Patrícia Kogut, fazia o lançamento do livro dela. Já passava das seis da tarde. Kamel ficou poucos minutos e voltou correndo para a Globo. No caminho, acionou Silvia Faria para que ela coordenasse o material que seria veiculado no JN, usando os áudios originais que embasaram a denúncia de Jardim e que foram enviados aos repórteres da tevê. Pediu que a notícia fosse lida no Plantão da Globo. Até hoje, integrantes do governo Temer suspeitam que a Globo só divulgou a denúncia porque não prestou o socorro desejado aos familiares de Kamel.
É uma suspeita infundada. Kamel nem sabia do caso e, tempos depois, durante um jantar, chegou a perguntar a Seleme quem era a fonte da informação explosiva de Jardim. Seleme disse que não sabia. Kamel espantou-se. Na Globo, sob seu comando, jamais uma informação tão capital, com potencial para derrubar um presidente da República, seria divulgada sem que ele soubesse a fonte. Tinha o hábito de conhecer a identidade das fontes mais graduadas dos repórteres e também dos comentaristas e apresentadores da GloboNews. Era a maneira – adotada por muitos diretores de redação – de avaliar a credibilidade de uma informação.
Por isso, Kamel não aceitou fazer parceria com o jornalista Glenn Greenwald, então no site Intercept Brasil, para divulgar os dados da Vaza Jato, que revelaram as combinações que Moro e Dallagnol tramavam por meio de mensagens no Telegram. As mensagens haviam sido obtidas por um hacker e repassadas a Greenwald. Como não tinha controle sobre a procedência dos dados, Kamel decidiu não entrar na história. “Quando a gente percebeu que não havia como fazer a checagem das informações hackeadas, a gente não quis o material”, relembra Silvia Faria.
O rigor jornalístico da Globo ganhara ainda mais impulso desde o começo do governo de Jair Bolsonaro, um presidente que não precisava flagrar um erro para acusar a Globo de mentir e ameaçá-la com a não renovação da concessão pública. Naquela altura, o jornalismo da empresa já estava sob o comando de Ali Kamel havia quase duas décadas. Os cuidados, além de qualificar o jornalismo, serviam de anteparo para invalidar o discurso hostil de Bolsonaro de que a emissora lhe fazia oposição.
No campo econômico, havia grande convergência entre a linha editorial da Globo e o governo Bolsonaro. O então ministro Paulo Guedes, velho conhecido de João Roberto Marinho, tinha o apoio da emissora – como, de resto, de quase toda a imprensa. Numa entrevista ainda na campanha de 2018, Guedes me contou que conversara com Marinho sobre um eventual governo Bolsonaro. Convenceu-se de que a emissora jamais apoiaria a agenda de costumes do candidato, mas insistiu que encampasse ao menos a parte econômica. Foi mais ou menos o que aconteceu, exceto por uma divergência: as desonerações. Anunciada no governo Dilma, a medida cortava impostos de setores com mão de obra intensiva, como a construção civil, a tecnologia e a mídia.
Por coerência, a imprensa deveria ter torpedeado a iniciativa, já que era mais uma demonstração do ímpeto estatista de Dilma. Aconteceu o contrário. As desonerações foram celebradas, em especial pela Globo. Em Brasília, por meio de seu vice-presidente de Relações Institucionais, Paulo Tonet Camargo, a empresa sempre operava um lobby pesado para que a medida fosse mantida ano após ano. No campo editorial, área sob comando de Kamel, toda a cobertura da tevê e dos veículos impressos era calibrada para expor o quanto o setor produtivo seria forçado a demitir caso o benefício fosse terminado. Guedes discordava das desonerações porque pioravam o quadro fiscal, mas nunca teve força política para mudar as coisas.
O problema, no entanto, nunca foi a economia – era a política mesmo. Mas nada preparou os dois lados para o que veio a público na noite de 29 de outubro de 2019. O Jornal Nacional divulgou que o ex-policial militar Élcio Queiroz, envolvido na morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, fora autorizado a entrar no condomínio Vivendas da Barra, onde fica a casa de Bolsonaro no Rio. Pior: a autorização de entrada aconteceu na noite dos assassinatos. Pior ainda: o porteiro do condomínio informara em depoimento que a autorização viera de alguém dentro da casa de Bolsonaro. Era uma bomba: associava o homicídio mais ruidoso do país com os Bolsonaro, tão afeitos à defesa de milicianos, alguns dos quais eram suspeitos do crime.
Naquela noite, Kamel deixou sua sala no sétimo andar da Globo e desceu para a redação do JN para, nas palavras de um repórter, “comandar o avião embaixo”. Ele só ia à redação quando havia alguma notícia sensível. Era, obviamente, o caso. Fez um pedido aos editores: dar destaque à informação de que, na noite em que o ex-PM entrou no condomínio, o presidente estava em Brasília, e não no Rio. Era um dado relevante, pois eliminava a suspeita de que Bolsonaro autorizara a entrada do suspeito.
As 24 horas que se seguiram à divulgação da reportagem foram inéditas na história do jornalismo da Globo. Começou uma grande contraoperação. O procurador-geral da República, Augusto Aras, se apressou em dar entrevista dizendo que a investigação noticiada pelo JN estava arquivada. De fato, seria arquivada, mas ainda não estava. O Ministério Público convocou uma coletiva de imprensa para avisar que a perícia feita no áudio da portaria – que em geral leva meses e dessa vez foi concluída em duas horas – mostrava que a informação que constava do depoimento do porteiro era falsa: a autorização de entrada não viera da casa de Bolsonaro, mas da casa de Ronnie Lessa, comparsa do ex-PM. O porteiro viria a desmentir seu depoimento depois, numa reviravolta nunca bem esclarecida. Bolsonaro então fez um vídeo espumando contra a Globo e chamando os repórteres de “patifes”, “canalhas” e “porcos”.
No dia seguinte à divulgação do JN , o caso estava arquivado. Tyndaro Menezes, então chefe da equipe de investigação do JN, foi à sala de Kamel para perguntar se, na sua opinião, a equipe havia errado ao noticiar o caso. Kamel negou. Se havia algum responsável, disse, era ele próprio. Em seguida, fez uma nota à redação, detalhando os passos da apuração dos repórteres, que entrevistaram os envolvidos, inclusive o advogado do presidente, Frederick Wassef – que sabia que o áudio do porteiro existia e que se tratava de um engano, mas preferiu não dizer nada aos repórteres.
Na nota, Kamel sugeriu que as fontes próximas do presidente armaram uma arapuca para a Globo. “Por que os principais interessados em esclarecer os fatos, sabendo com detalhes da existência do áudio, sonegaram essa informação? A resposta pode estar no que aconteceu nos minutos subsequentes à publicação da reportagem do Jornal Nacional. Patifes, canalhas e porcos foram alguns dos insultos, acompanhados de ameaças à cassação da concessão da Globo em 2022, dirigidos pelo presidente Bolsonaro ao nosso jornalismo, que só cumpriu a sua missão, oferecendo todas as chances aos interessados para desacreditar com mais elementos o porteiro do condomínio (já que sabiam do áudio).” Wassef, além de não ter desmentido o áudio quando foi entrevistado, ainda passou a ligar insistentemente para repórteres da Globo, ansioso para saber quando a reportagem seria veiculada.
O caso do porteiro – associado aos anos de noticiário sobre impeachment, Lava Jato, delação dos Batista, ameaças de Bolsonaro – produziu transtornos, pressões e contrapressões que acabaram por afetar o jornalismo da emissora. Passou a prevalecer uma abordagem menos incisiva, menos investigativa, com maior foco em prestação de serviços, com protocolos de checagem cada vez mais estritos e menos disposição para o noticiário que move placas tectônicas na República. Uma dezena de repórteres que entrevistei, todos sob a condição de que seus nomes não fossem publicados, avaliam que o jornalismo da Globo ficou mais acanhado nos últimos anos, com menos apetite por reportagens investigativas. Uma das figurinhas de WhatsApp mais populares entre os jornalistas passou a ser uma foto de Kamel acompanhada dos dizeres “NÃO PODE”.
Na política, esse acanhamento coincidiu com a ascensão ao poder do presidente da Câmara, Arthur Lira, um parlamentar que não se contém em quase nada. Constrange jornalistas que publicam reportagens ou comentários que o desagradam. Chega a telefonar diretamente para Paulo Tonet, o vice-presidente de Relações Institucionais da Globo, para queixar-se de reportagens. Numa ocasião recente, chamou um executivo da tevê à sua residência para um café, ocasião em que expôs seu descontentamento com alguns comentaristas de política. Quem cobre o assunto em Brasília diz que o deputado ultrapassa limites inexplorados até mesmo por seu antecessor Eduardo Cunha.
Diante do clima belicoso, embora nenhum comentarista tenha me dito ser cerceado em suas opiniões sobre Lira, vários repórteres da tevê me relataram dificuldades para publicar matérias sobre o deputado. Quando alguma reportagem incômoda vai ao ar, trata-se de repercussão de investigações de outros veículos. Quando a Globo divulgava reportagens sobre o orçamento secreto, por meio do qual Lira mantinha sob sigilo o nome dos remetentes e dos destinatários de recursos públicos, o parlamentar raramente era apontado como o cabeça dessa prática. Na maioria dos casos, a culpa recaía sobre “o Parlamento” ou “o governo Bolsonaro”.
Os temas do Judiciário também recebem cuidado redobrado. Quando estava na direção, Kamel tinha especial interesse por tudo relacionado ao STF. Além de manter um bom relacionamento pessoal com alguns ministros, o jornalista assistia às sessões na TV Justiça e escolhia os trechos a serem usados na cobertura, tal como fazia nos tempos da Rádio Jornal do Brasil. Quando implicava com uma palavra, pedia que a edição fosse refeita, mesmo faltando poucos minutos para a divulgação. “Nos dias de julgamento, as pessoas da redação queriam se matar”, ironiza uma ex-jornalista da tevê em Brasília, que diz suspeitar que Kamel sofra de “TOC severo”.
Um consultor de crises bastante prestigiado em Brasília acha fascinante que a Globo opere como uma orquestra. “Quando as coisas estão bem entre a Globo e um cliente meu, tudo vai bem. A recepção do Ali é boa quando temos de prestar algum esclarecimento, a GloboNews liga 24 horas por dia, O Globo pede entrevista”, diz ele. “Mas quando as coisas vão mal, o Ali nunca tem força editorial para fazer com que nosso argumento prospere, os repórteres somem.”
A agenda política do grupo sempre esteve nas mãos da família Marinho, em especial de João Roberto, o acionista mais afeito à relação com políticos. O papel de Kamel era colocar essa visão em prática de tal forma que não expusesse o chefe, o grupo ou a credibilidade da empresa. Valia-se de uma hierarquia rígida dentro da Globo, em que não há muito espaço para contestação. Com o passar dos anos, e isso é um resultado do trabalho de Kamel, a orquestra estava tão afinada que a regência conseguia operar quase em silêncio. Nada, ou quase nada, precisava ser abertamente dito.
Na primeira semana de janeiro de 2020, Ali Kamel leu uma reportagem sobre a Covid na China publicada no jornal The New York Times. O vírus nem havia chegado ao Ocidente, mas Kamel mandou o link da matéria aos executivos de jornalismo da Globo e, segundo Anita Carnavale, que até 2020 trabalhou como secretária na diretoria da tevê, já deu ordens para comprar máscaras para todos. (Kamel é um hipocondríaco dissimulado. O frasco de álcool na sua mesa, por exemplo, não pousou ali na pandemia. Está lá desde os anos 1990.)
Com a pandemia instalada, adequou a redação ao protocolo do distanciamento social e passou a fazer relatórios diários sobre infectados e internados. O título era sempre o mesmo – Nossos colegas – e começava com a mesma frase: “Atualizo aqui a nossa situação sobre o número de pessoas com sintomas e que foram testadas…” Ligava para os funcionários infectados para saber como estavam. Determinou que a empresa pagasse testes e transporte privado – táxi ou Uber – para quem não tinha carro próprio. Mandou instalar divisórias nas mesas de trabalho e no restaurante da emissora.
O cuidado minucioso teve impacto na imagem de Kamel dentro da Globo. Helio Alvarez, que por mais de vinte anos gerenciou a captação e edição de imagens na tevê, afirma: “Até a pandemia, ele era visto como um cara estranho, meio inacessível. Depois, se mostrou um baita líder. Foi supercauteloso com as equipes e deve ter virado o cara que mais entende de Covid. A Globo só conseguiu fazer a cobertura que fez por causa dele. Acho que essas diretrizes que ele criou salvaram muita gente.” Seu zelo também teve impacto no próprio noticiário da Globo.
Quando Bolsonaro decidiu só divulgar as mortes na pandemia depois do JN, para evitar que o telejornal desse destaque ao número, Kamel agiu rápido. Ordenou que fosse ao ar um Plantão da Globo logo depois da divulgação oficial. Caía no horário da novela, que, aliás, tinha até mais audiência que o JN. Quando o governo quis mudar o critério de cálculo das vítimas, de modo a disfarçar a conta brutal, Sérgio Dávila, diretor de redação da Folha de S. Paulo, teve a ideia de montar um consórcio** de imprensa para levantar os números nas secretarias estaduais de saúde. O g1 tinha musculatura para apurar tudo sozinho, mas Kamel avaliou que, se cada veículo fizesse seu próprio levantamento, o resultado podia ter diferenças que descredibilizariam os números. Daí aceitou a ideia do consórcio.
“A Globo inventou a Margareth Dalcolmo”, diz Merval Pereira, referindo-se à pneumologista e pesquisadora da Fiocruz que, com suas declarações fluentes, claras e didáticas, tornou-se uma celebridade quando o assunto era Covid. “Inventou porque o Ali achava que tinha que ser didático. Ele tem muito essa noção da importância da TV Globo para o país, ele sabe que aquilo é um canhão. E, durante a pandemia, ele usou esse canhão para mobilizar a sociedade. Para orientar. Coisa que o governo não fez. Ele sabia que aquele momento era importante para a TV Globo marcar uma posição.”
Nesse ponto, Kamel conseguiu consensos improváveis, como entre Merval Pereira e Eugênio Bucci, jornalista e professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Segundo o professor, a maior prova da independência da Globo deu-se na pandemia, quando fez um trabalho que, na sua opinião, ainda não teve o reconhecimento merecido até hoje. “Se não fosse isso, a chance de reeleição do Bolsonaro seria maior, e seria uma reeleição por desinformação, não uma reeleição legítima. E aquele momento exigiu coragem institucional da Globo, porque eles ficaram na linha de tiro. Muita gente vai falar mal do Ali Kamel, que ele é de direita. E tudo isso pode até ter fundamento, mas a liderança que ele exerceu no jornalismo precisa ser mostrada.”
As despedidas começaram no mesmo dia do anúncio de sua saída, em 29 de agosto, quando Kamel desceu de sua sala para a redação do JN e foi recebido com aplausos pela equipe. Em dezembro, seu último mês no cargo, houve ao menos duas reuniões por vídeo com as equipes para fazer a passagem de bastão para Ricardo Villela. As duas terminaram virando homenagens ao jornalista que partia, com direito a olhos marejados por parte de alguns apresentadores. Kamel passou a circular mais pela redação e até chegou a ser visto numa incursão inédita ao Globar, um restaurante em frente à Globo frequentado pelo reportariado depois do expediente.
A equipe de jornalismo produziu um vídeo de despedida, reunindo depoimentos. Renata Vasconcellos, editora e apresentadora do JN, fez a declaração mais emocionada. “Eu aprendi com você que a gente pode ser delicado e avassalador nos nossos argumentos”, afirmou. “E aprendi com você que eu sou jornalista”, completou, numa referência indireta às críticas que recebeu no início da carreira por seu passado como modelo.
No dia 2 de dezembro, William Bonner ofereceu um almoço em sua casa, na Lagoa, em homenagem a Kamel. Convidou um pequeno grupo de jornalistas, entre os quais estavam Renata Lo Prete, do Jornal da Globo, Renata Vasconcellos e seu marido, Miguel Athayde, também diretor da Globo, Vinicius Menezes, hoje diretor da GloboNews, e Marcio Sternick, que comanda o jornalismo “da Rio”, como a Globo se refere ao jornalismo local, além de Ricardo Villela, o sucessor.
Kamel deixou suas funções executivas no fim do ano e ficou o mês de janeiro com a mulher no apartamento de Paris. Na volta ao Brasil, passou a exercer seu novo cargo, criado especialmente para ele: coordenador do Conselho Editorial do Grupo Globo. Nesse posto, terá a missão de auxiliar João Roberto Marinho, presidente do conselho, nas questões editoriais, mas sem conexão com a rotina diária das redações. Os editoriais publicados pelos jornais do grupo deixam de ser discutidos pelos diretores de redação com João Roberto e passam a ser despachados com Kamel.
O Conselho Editorial, que se reúne a cada quinze dias, norteia as grandes linhas da cobertura jornalística. Numa decisão recente, deliberou que os veículos do grupo podiam passar a mencionar os nomes de facções criminosas – Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital. A regra tentava evitar dar ares institucionais às organizações criminosas, mas revelou-se inócua. O Conselho decidiu o momento em que os veículos do grupo podiam começar a tratar do tema “impeachment” no governo de Dilma, suspendeu a divulgação de delações premiadas sem homologação da Justiça, retirou os repórteres da Globo do cercadinho do Palácio da Alvorada no governo Bolsonaro, decidiu tratar como “terroristas” os autores da intentona golpista de Oito de Janeiro e – numa decisão mais recente – orientou que os veículos pegassem leve com o novo presidente da Argentina, o direitista Javier Milei, até que ele mostrasse a que veio.
Na sua nova função, Kamel continuará operando em terreno conhecido. Como comandava a joia da coroa do grupo – a tevê –, ele sempre teve tratamento privilegiado no Conselho Editorial em relação aos colegas que dirigiam outros veículos do grupo, como O Globo, o Valor Econômico, o Extra e a CBN. Ao longo dos anos, usou esse poder sem qualquer cerimônia. Com sua influência, combinada com a postura dominadora, nas fofocas de bastidor era impiedosamente chamado de “cardeal Richelieu”, o conselheiro despótico de Luís XIII.
Os inimigos vão um pouco mais longe. Jornalistas que trabalharam na Globo e passaram a escrever para sites ligados à esquerda, como Vermelho.org, Viomundo e Conversa Afiada, gostavam de se referir a Kamel como “Ratzinger”, em referência ao sobrenome de batismo do papa Bento XVI. Com isso, queriam insinuar que, tal como Ratzinger, considerado um cão de guarda da ideologia mais reacionária da Cúria romana, Kamel também exercia controle ideológico sobre a linha editorial dos veículos do grupo – todos eles, e não apenas a tevê.
Nos corredores das redações, seu apelido é “Três”, uma referência às três letras de seu primeiro nome. No início, os chefes usavam o número quase como código secreto, mas logo o apelido se espalhou. Hoje, é hegemônico entre jornalistas, embora ninguém se dirija a ele dessa forma.
A fidelidade de Kamel à Globo e à família Marinho teve requintes de constrangimento. Numa ocasião, chegou a escrever em O Globo um texto exaltando o “bom jornalismo” praticado pela emissora durante a campanha das Diretas Já – uma inverdade nacionalmente conhecida. Mais tarde, quando a Globo finalmente admitiu que tentou ignorar a campanha ou diminuir artificialmente seu alcance, Kamel escreveu um texto justificando o mau jornalismo da época. “Se, por um lado, segmentos da sociedade pressionavam a Rede Globo para se engajar nas manifestações pelas Diretas, por outro a emissora vinha sendo pressionada pelos militares a não cobrir os eventos. Woile Guimarães, então diretor dos telejornais da rede, diz que ministros e generais ligavam para Roberto Marinho, ameaçando até mesmo retirar a concessão para o funcionamento da emissora”, escreveu Kamel no site Memória Globo. No entanto, em parte é mérito seu que a Globo tenha reconhecido erros do passado, como o apoio à ditadura e à própria manipulação da campanha das Diretas.
Em sua carta de despedida enviada aos funcionários, Kamel explicou os termos de sua saída. “São muitos anos exercendo funções de grande responsabilidade, mesmo dividindo-as com equipes maravilhosas. Pesa, e muito, o desejo de ter mais tempo livre com minhas enteadas, Alice e Sofia, e ao lado de minha mulher, Patrícia Kogut, com quem compartilho a vida há tanto tempo, ela própria já tendo desacelerado recentemente a sua vitoriosa carreira jornalística. Mas pesa também a consciência de que quase três décadas em funções de liderança são um tempo excessivo.” Kogut, colunista de tevê de O Globo, anunciou em junho que deixaria o jornalismo diário para escrever a coluna apenas dois dias por semana.
Nos momentos de crise, Kamel chegava na redação às oito da manhã e só saía depois do JN. Durante períodos menos bicudos, chegava às onze e saía na metade do jornal. Já nos últimos tempos, assistia ao JN em casa. Durante os fins de semana, feriados e férias, estava sempre a postos, na hipótese de seu aval ser requerido. Não tirava férias superiores a quinze dias. Numa viagem à Nova Zelândia com a mulher e as duas enteadas, tomou uma decisão surpreendente: saltou de paraquedas. A ousadia de se jogar no ar – justamente o homem que queria controlar tudo – espantou aqueles que ficaram sabendo da aventura. Vestia, enfim, uma camiseta – sem botões.
* O texto original da reportagem informava que a festa dada por Renata Lo Prete foi em comemoração aos seus 59 anos. O aniversário, contudo, era de 60 anos. A informação foi corrigida.
**Esse trecho foi corrigido porque, ao contrário do que dizia a versão original, a ideia da criação do consórcio de jornalistas não foi de Ali Kamel, mas de Sérgio Dávila, diretor de redação da Folha de São Paulo.