CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
Banzé na passarela
Uma disputa em torno de patrocínio divide a SPFW
João Batista Jr. | Edição 211, Abril 2024
Em 29 anos de existência, a São Paulo Fashion Week (SPFW) ajudou a consagrar o talento de estilistas como Alexandre Herchcovitch e Ronaldo Fraga, além de marcas como Osklen e Cavalera. Modelos internacionais já brilharam em suas passarelas, entre elas Naomi Campbell, Kate Moss e Eva Herzigova, sem falar nas brasileiras Gisele Bündchen e Adriana Lima. O evento mais esperado pelo mundo da moda brasileira (que acontece duas vezes ao ano) se tornou ainda uma incubadora de top models: Carol Trentini e Raquel Zimmermann estrearam ali. Nem tudo é glamour, porém. Uma disputa entre os organizadores e estilistas abriu uma crise sem precedentes no evento, que faz sua 57ª edição entre 9 e 14 de abril.
O motivo da disputa é um item vital para a indústria da moda, como para qualquer indústria: dinheiro. Criada e comandada pelo empresário paulista Paulo Borges, a SPFW desde 2018 tem como sócia majoritária a empresa IMM Esporte e Entretenimento, pertencente a um fundo árabe que é também dono do Cirque du Soleil, do torneio de tênis Rio Open e do Rock in Rio. O negócio foi anunciado com fanfarra na época: seria a conversão da semana de moda em um festival, com edições em várias cidades e shows acompanhando os desfiles. Desde o início um evento exclusivo para convidados – varejistas, jornalistas e formadores de opinião –, a SPFW passou a vender ingressos.
A pandemia embolou o mercado, e o projeto de expansão, com os shows e tudo mais, por ora está congelado. O custo da atual edição é de 5 milhões de reais. Para cobrir esse valor, a SPFW encontrou patrocinadores de diversas áreas. Os estilistas arcam com seus próprios custos e também buscam patrocínio. Montar um desfile não sai por menos de 150 mil reais. Era assim, até que algo mudou – e começou o banzé.
No dia 25 de fevereiro, a SPFW enviou um e-mail para todas as 27 marcas que participarão da edição de abril, comunicando que elas estão proibidas de ter patrocínios particulares de uma série de produtos e setores: bancos, itens de beleza, shopping centers, cervejas, amaciantes, carros, água e eletrodomésticos, entre outros. A IMM não quer que, durante os desfiles, sejam exibidas marcas concorrentes dos grandes patrocinadores obtidos por ela para a SPFW – C6 Bank, O Boticário, Ypê e a rede de shoppings Iguatemi.
Os estilistas estrilaram. “Eu amo fazer desfile e reconheço a importância do evento, mas a gente não tem apoio financeiro e nos podam quem pode nos patrocinar”, protesta Walério Araújo, que veste artistas como Sabrina Sato, Ivete Sangalo e Maria Rita e é hoje um dos principais nomes da semana de moda. A SPFW dá uma ajuda de custo para alguns dos criadores, mas Araújo reclama que ela chega tarde: “Vão me dar 15 mil reais um mês depois do desfile. Isso não ajuda na realização.” Apesar disso, Araújo não desistiu da SPFW: vai apresentar um desfile em homenagem a sua mãe, Maria do Carmo, a dona Nenê, que está para completar 95 anos.
Não é o caso de Airon Martin, estilista da Misci, uma das grifes mais prestigiadas do país (as influenciadoras Sasha Meneghel e Malu Borges são suas clientes). A Misci participou de duas edições da SPFW, mas depois desistiu. Martin considera que o bloqueio de patrocinadores inviabiliza a montagem de seu desfile.
Contrariando comentários maldosos que circulam no venenoso mundo da moda, Martin nega que esteja desdenhando de um evento que já lhe deu visibilidade. Ele reconhece a importância da SPFW para o fortalecimento de um dos setores “que mais emprega mulheres no Brasil” e diz que os desfiles são fundamentais para comunicar a coleção e fazer a engrenagem financeira de uma grife girar.
O que ele critica é o desequilíbrio entre os ganhos dos promotores e os das marcas participantes. “Teria que ficar bom para todo mundo, e não apenas para uma das partes”, diz. Martin alerta que as restrições ao patrocínio podem esvaziar a semana da moda. “Se a SPFW tivesse mais estilistas com o poder de comunicação da Misci, ficaria mais forte.”
A estilista Isa Isaac Silva, que estreou na SPFW em 2019, também desistiu de participar da próxima semana de moda. “Existe uma imposição do lugar onde temos que desfilar, e eu gosto de me apresentar em lugares com uma ocupação social”, diz. Mas ela se sente grata pela visibilidade que o evento deu às suas criações. “Deixei de ser marca para virar grife. Se abriu um portal gigantesco para termos mais pessoas racializadas atuando na semana de moda, desde estilistas até a equipe de produção, e não apenas as que trabalham com a faxina e a segurança.”
“É um jogo jogado, com as regras claras”, diz Paulo Borges, em resposta às críticas. O criador da SPFW lembra que, ao contrário do que ocorre em outras semanas de moda, a paulistana não cobra taxa das grifes que integram a programação. A locação – que desta vez se dividirá entre os shoppings Iguatemi e JK –, o cenário, a iluminação e a produção em geral são por conta da organização. “Eles esquecem o quanto gastariam se fossem fazer tudo sozinhos. Só de locação e cenário seriam uns 300 mil reais de largada”, calcula.
Borges conta que um estilista certa vez pleiteou o pagamento de 150 mil reais, alegando que a SPFW “precisava” dele. A proposta não foi aceita. “Parece que voltamos aos anos 1990. As pessoas não pensam mais no coletivo.” Ele esclarece que mesmo o repasse de até 15 mil reais aos estilistas, feito um mês depois do evento, é restrito aos profissionais que, na sua avaliação, precisam mais desse aporte.
O mercado, diz Borges, não anda generoso com quem cria moda. “As multimarcas só recebem as roupas em consignação, e isso afeta demais os estilistas.” Ele também lamenta uma mudança recente nas passarelas: as celebridades estão tomando o lugar das modelos profissionais. É menos oneroso, pois quase todas desfilam de graça para divulgar a própria imagem. Borges avalia que essa prática enfraquece os padrões profissionais da moda. “Hoje, 95% das pessoas que desfilam [no Brasil] não são modelos. Lá fora, as influenciadoras estão na primeira fila, não na passarela.”
Em abril, a SPFW terá dois nomes importantes de volta ao calendário: os estilistas Gloria Coelho e André Lima. Na temporada passada, as entradas custavam entre 200 e 400 reais. Desta vez, não serão vendidos ingressos – o evento voltará a ser exclusivo para a elite da moda.