Nem o morto descansa
O furto no túmulo de Nelson Rodrigues
Luiza Miguez | Edição 211, Abril 2024
Sacha Rodrigues acordou com uma quantidade inusitada de ligações e mensagens no celular na segunda-feira, dia 22 de janeiro passado. Era por volta das oito da manhã, e ele ficou ainda mais espantado por ter recebido, de diversos contatos, um mesmo link. “Você assistiu a essa reportagem?!”, perguntava um amigo. Não muito longe dali, também em Laranjeiras, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, ocorria o mesmo com o celular de Crica Rodrigues, prima de Sacha. “O meu WhatsApp estava inundado com mensagens, até de gente que eu não conhecia, uma comoção! E ainda o áudio de uma amiga aos prantos”, ela conta.
O link que tirou o sossego de Sacha e Crica remetia a uma reportagem que noticiava um furto no jazigo da família Rodrigues. Os dois são netos do dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, cujo busto no Cemitério São João Batista havia desaparecido. No vídeo, Flávio Fachel, apresentador do Bom Dia Rio, programa matinal da Rede Globo, fazia um comentário que quase poderia ter figurado em uma das crônicas ferinas de Nelson: “O carioca não tem nenhum minuto de paz, nem depois que morre!”
De blusa escura, “como se fosse para um cemitério mesmo”, Sacha dirigiu-se à delegacia próxima ao São João Batista, em Botafogo. Lá foi informado de que um inquérito sobre o caso já fora aberto – em casos de furto de patrimônio público, o delegado pode tomar essa iniciativa sem que alguém preste queixa. “Sem muito que fazer, fui para o cemitério, para ver aquele lugar vazio. Era só eu e o silêncio ensurdecedor”, lembra.
Ainda em Laranjeiras, Crica se arrumava para também ir ao cemitério quando o telefone tocou. Era uma assistente de Ronaldo Milano, diretor de Cemitérios e Funerárias da Rio Pax, que administra o São João Batista. “Eles me ligaram querendo marcar uma reunião dali a alguns dias”, ela conta. O que Crica tinha para perguntar a eles era o mesmo que os apresentadores repetiam na tevê e que ela recebia nas mensagens no celular: “Como é que alguém rouba um busto de bronze de 45 kg de um cemitério e ninguém tem uma explicação para isso?”
Neto mais velho de Nelson Rodrigues, Sacha é ator e produtor cultural. Com 53 anos, fez sua carreira em torno da obra do antepassado célebre: produziu e atuou em peças como Vestido de noiva e Boca de ouro, e até interpreta o papel do avô. “Já fiz muitos ensaios fotográficos, esquetes, me vestindo de Nelson. Eu tiro a barba, deixo o cabelo curto, coloco uma gravata discreta. Rola uma incorporada, até assusto às vezes.”
Crica Rodrigues também é atriz. Aos 44 anos, dedica-se à obra do avô, mas dentro do espaço acadêmico – é aspirante a uma vaga de mestrado. Ela tinha apenas 1 ano quando o autor de Perdoa-me por me traíres morreu, em 1980, aos 68 anos. “A minha relação sempre foi muito mais com esse avô do busto no cemitério”, diz. “Eu ia com a minha avó ajudar a limpar o túmulo, colocar flores. A gente conversava com ele, lavava atrás das orelhinhas de bronze.”
Ela herdou da avó o cargo de mantenedora do jazigo. Por isso, foi para Crica que o cemitério ligou na segunda-feira, quando o busto desapareceu. Mas a verdade é que a peça já estava desaparecida dias antes. “A gente soube do roubo por um amigo que curte arquitetura tumular”, conta Marconi Andrade, fundador do SOS Patrimônio, um grupo independente que monitora os monumentos históricos da cidade do Rio de Janeiro. Ao saber do furto, Andrade disparou a notícia para os amigos jornalistas. Ele supõe que o busto tenha desaparecido na sexta-feira, dia 19 de janeiro. “A administração da Rio Pax é um desastre. Não fosse a gente denunciando na mídia, nem mesmo a família saberia”, diz.
Tampouco a polícia tinha sido avisada do desaparecimento, relata o delegado Alan Luxardo, responsável pelo caso. “O cemitério não reporta, isso é antigo. A gente também tem muita dificuldade de conseguir a colaboração deles.” Segundo a polícia, são apenas dois vigilantes cuidando de um dos principais cemitérios da cidade. Por ora, a principal hipótese da polícia é de que o busto foi roubado por um grupo que tinha comprador certo, no mercado ilegal de arte.
Os ladrões usaram um acesso direto da comunidade Ladeira dos Tabajaras ao cemitério, numa área do São João Batista que não é iluminada nem guardada por muros ou vigiada por câmeras. A Rio Pax afirmou à piauí que atua ativamente na segurança de seus cemitérios, “inclusive providenciando a instalação de concertinas, para dificultar o acesso de delinquentes”.
No São João Batista, estão enterrados ilustres personagens da história e da cultura: Machado de Assis, Santos Dumont, Carmen Miranda, Dorival Caymmi e Clara Nunes, e ao menos sete presidentes da República, entre outros. O túmulo de Clara Nunes, aliás, já foi depredado. No ano passado, um fã notou o sumiço das argolas de bronze maciço que ficavam nas laterais do jazigo. O furto mais impressionante, ocorrido durante a pandemia, foi o do portão de 200 kg do mausoléu do Marquês de Paraná. O SOS Patrimônio calcula que ataques semelhantes ocorreram em pelo menos trinta túmulos.
“Essa estátua para mim vem como um flerte com a eternidade”, diz Sacha Rodrigues. A família acompanha diariamente as investigações, mas já dá como certo o sumiço completo do busto.
Sasha e Crica lutam agora para que a Rio Pax reponha a peça, nos mesmos parâmetros artísticos do busto que foi furtado. O ator pesquisou os arquivos do jornal O Globo em busca do escultor da obra perdida, para talvez encontrar um molde ou algo do tipo, mas não achou a informação. “É uma missão autoimposta minha de trabalhar com o legado do meu avô, mostrando Nelson Rodrigues para todo mundo que eu puder”, afirma.
Ele já imagina uma reinauguração do busto com uma grande festa: “Quero ir caracterizado, sim!” E o que diria o avô sobre o caso? “Acho que não iria gostar muito de ter uma estátua”, diz Sacha. “O Nelson era um sujeito muito discreto, tranquilo. Dizia que ‘só um morto realmente descansa’.”