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    Um Verissimo acanhado entre aplausos, em cena de bastidores do documentário (Imagem: divulgação)

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As paredes da vida privada

Anotações do diretor do documentário Verissimo, que estreia nesta quinta-feira

Angelo Defanti, especial para a piauí | 02 maio 2024_10h07
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Você se lembra. Era uma quinta-feira de 2013. A mesa atravessava o intervalo entre os destroços de um almoço saudavelmente dizimado e a chegada dos primeiros apetrechos para o café que nos salvaria de um coma. 

Num instante estratégico dentro do silêncio que ameaçava nos naufragar, Luis Fernando Verissimo desprendeu a bomba: “O Inter joga no domingo.” Aflorei um desconcerto menos por ser alheio à tabela do campeonato brasileiro, mais porque Verissimo cometia o ato raro de falar. Espero que compreenda, reagi da maneira mais humana que dispunha no momento e epicamente perguntei: “Joga?” Eu colocava trêmulo uma colher a mais de açúcar à altura em que ele treplicava: “Por que você não vem assistir ao jogo aqui no domingo?” O resumo então era: um ídolo saía de seu casulo para me convidar a assistir a seu lado a um jogo do time do qual ele é o torcedor-símbolo. Dissimulando uma síncope, entre um gole e outro de um café doce demais, concordei em voltar no domingo. 

O desfalecimento se escorava num trecho – inofensivo, reconheço, mas que ainda espumava fresco na memória pois tinha lido havia pouco – do livro  Conversa sobre o tempo (no qual Verissimo dialoga com Zuenir Ventura, com mediação de Arthur Dapieve), em que o escritor gaúcho  afirma o seguinte: “Eu sempre tive uma certa preocupação porque eu tenho essa dificuldade de expressão, a introversão e tudo mais. Eu sempre tenho medo de que as pessoas não identifiquem quando eu simpatizo com elas. Eu não consigo me expressar muito bem.” 

Aceito calmo a acusação de que corri o risco de ter misturado lé com cré, mas decidi entender do aceno futebolístico pós-desjejum que, sim, Luis Fernando Verissimo simpatizava comigo, e me estimava a ponto de me querer por perto. Saindo de lá, se num campo verdejante estivesse, por um campo verdejante correria como um donzelo correspondido gritando “Ele gosta de mim! Ele gosta de mim!”. No lugar do campo, da corrida e dos gritos, as primeiras fermentações, ainda indefinidas, de um filme que poderia vir. Pouco me lembro da partida de domingo, perdão, além de ter sido uma tarde agradável. Não sei dizer se o Inter ganhou ou perdeu. 

Da fagulha inicial de quinta, no domingo o filme adquiriria forma, pois vivi exatamente o que Zuenir Ventura pôs em palavras no mesmo Conversa sobre o tempo a respeito do dia em que conheceu os Verissimo: “O que me impressionou muito […] foi a família Verissimo. Um clima afetuoso. Todo mundo se entrosando, conversando, rindo. Muita alegria, muito humor. Aquilo foi o que mais me impressionou naquela noite. Menos, até, o Luis Fernando sozinho e mais esse conjunto da família.” A chave era essa, o todo, não o indivíduo. Fechei com Zuenir e não abri – e eu bem sei que você concorda. 

Sua mulher, Lúcia, a prole adulta, Fernanda, Mariana e Pedro, e você, claro, formam ao redor de Luis Fernando um gracioso cordão de afeto que raramente se vê. Um mar de extrovertidos que flutua o introvertido sem nenhum suor de esforço, um time que funciona coeso sem o fardo da coesão, um relógio de espontaneidade sem a rigidez da engrenagem. Aí o filme. 

Foram mais dois anos de relação antes da coragem de propor o documentário, quase um ano exato antes da efeméride dos 80 anos de Verissimo. Você também lembra? Seriam filmados trinta dias ao redor desta data, motorizados por duas mensagens simples e simultâneas, uma explícita, outra escondida. Na superfície, um documentário sobre um homem pacato azucrinado pela alegria alheia em celebrar por ele uma comemoração que deseja apenas que seja logo vencida para se permitir retornar à sua caverna de timidez. No fundo, a vontade de captar o admirável funcionamento dessa família, algo de impossível alcance a dados biográficos duros, registrar o que uma googlada ou um verbete de enciclopédia jamais dariam conta, colocar o cinema a serviço dos pequenos gestos – uma espécie de apogeu do mínimo que trata o corriqueiro do cotidiano com sua devida grandeza e cria assim um ponto de contato entre observação e observado, utiliza o estratagema de boa parte da obra verissiana para examiná-lo de volta. Mas esses dois entusiasmos sofreram uma mudança de rota. 

Não que as duas mensagens não estejam no filme, lá estão, mas durante as filmagens uma nova coadjuvante emergiu, gritante e discreta, tênue e indriblável: você. Havia uma casa no meio do caminho. 

O senhor pacífico ainda se mostrava para a câmera, idem a família admirável. Porém, sob o seio acolhedor de um mastodonte de doçura que se espreguiçava em cada canto de quadro, ao redor de cada pessoa, você, uma casa, sussurrava para a câmera: “Ei, eu estou aqui.” O que interligava a todos, dos bisavôs aos netos, eram dois moradores a mais de suas dependências que você me jogou aos olhos e que se impuseram como o real tema do filme, tornaram-se trilhos do meu registro: o tempo e a sua irrefreabilidade. Aí sim, o filme. 

Nas imagens, onde eu pensava haver um conjunto, o espaço se impunha em cada detalhe e divulgava sua importância. O que cogitava ser um agrupamento era sempre o registro de um ambiente. As manifestações foram muitas, casa, você não me largou. 

A parede verde-musgo que abraça os cômodos principais e concede à toda imagem uma feição amena. A iluminação por abajures, que muda a perspectiva das sombras e dos rostos, discretamente mais expostos, mas também mais delicados. O excesso de quadros a cravejar as paredes que denotam os seus muitos moradores e a reverência com que se tratam ao não terem removido nenhuma pintura, apenas acrescentado novas. As duas bibliotecas distintas, uma contemporânea e a outra do patriarca que, mesmo morto em 1975, permanece estoica e intocada. A questão que os recintos fazem de ecoar lar, afora o tique-taque resmunguento de um relógio dedicado e incansável. O tempo lateja e é impossível escapar dele, que ninguém se esqueça. 

O recado cunhou-se claro: “Acolhi várias gerações e não pretendo parar.” Oquei, casa, mensagem entendida e acolhida. Avô e neta compactuam na encenação de uma tempestade por entre o seu jardim. Quantas gerações, casa, não se tocaram mediadas pela ficção através dos anos nesse seu mesmo espaço? O mais novo de todos decide conhecer novos ângulos do mundo e gira sem parar, ignorando a consequência da tontura. Como você lhe diria que o mais importante é sair do lugar, mesmo sendo você pura permanência? O avô empreende fisioterapias diárias tentando adiar o inadiável. Quanto você poderia dizer a ele que, apesar de você, casa, seguir de pé, não se freia o declínio de um corpo? Quantas festas como a registrada, cheias de encontros, sorrisos e música, você já sediou? Quantos almoços como o meu e quantas discretas demonstrações de carinho através de convites futebolísticos você testemunhou, casa? Quantas partidas do Inter foram vividas e esquecidas sob os seus domínios? 

Bem como suas paredes, você é o campo verdejante de uma família. Não à toa, você é a primeira imagem do filme. O filme chama-se Verissimo, o sobrenome que une e abriga essas pessoas há muito tempo e continuará a fazê-lo, assim como você. 

Obrigado pela quinta-feira de 2013. 

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