CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
Bola parada
Com estádios alagados no Rio Grande do Sul, jogadores ajudam desabrigados
Pedro Tavares | Edição 213, Junho 2024
Passava das três da tarde do dia 6 de maio quando o preparador de goleiros Humberto Flores recebeu o aviso de que o resgate finalmente chegara à residência esportiva do Centro de Treinamento (CT) Hélio Dourado, em Eldorado do Sul, município a cerca de 20 km de Porto Alegre.
É ali que se reúnem as categorias de base do Grêmio. “Se preparem para sair, peguem suas coisas, mas não vai dar pra levar tudo”, avisou Rodrigo Pereira da Rosa, supervisor da residência. Flores levou só uma mochila.
Oito funcionários e cerca de quarenta atletas, a maioria entre 14 e 15 anos, estavam ilhados desde o dia 3 no prédio, um dos poucos espaços do complexo esportivo que não fora tomado pelas águas do Lago Guaíba (ou Rio Guaíba, como os gaúchos o chamam).
Estrela do time profissional do Grêmio, o atacante Diego Costa, que mora em Eldorado, teve papel decisivo na operação de resgate. Logo que as enchentes começaram, ele decidiu permanecer na cidade para auxiliar os moradores. Com seu jipe, recolheu atletas no CT para conduzi-los até o condomínio de luxo onde reside, à distância de 1 km. Fez o percurso de ida e volta mais de dez vezes.
Localizado à margem do lago, o condomínio de Costa tem um píer, no qual barcos providenciados pelo Grêmio aguardavam os ocupantes do CT. Como as estradas estavam interditadas por causa da enchente, o trajeto até a capital do estado só poderia ser feito de barco, pelo Guaíba. Na travessia de cerca de 40 minutos, os barcos passaram ao lado do estádio do time adversário. O Beira-Rio, do Internacional, estava completamente alagado, tal como a Arena do Grêmio, a 13 km dali.
Os jogadores e funcionários do CT desembarcaram em Porto Alegre perto de um iate clube, de onde foram levados até o antigo estádio do Grêmio, o Olímpico, que está desativado – e não foi alcançado pelas águas. Profissionais do clube estavam à espera para recebê-los. “O pessoal já tinha organizado tudo”, conta Flores. Atletas oriundos de outros estados seguiram de ônibus de Porto Alegre até Curitiba, onde tomaram voos para suas casas. Os demais foram acomodados em um hotel.
Flores, de 51 anos, já foi goleiro profissional. Jogava pelo Caxias, time da Serra Gaúcha, quando se aposentou em 2007. Começou então sua carreira na preparação de goleiros. Trabalhou para times do Rio Grande do Sul – inclusive o Grêmio – e depois passou uma temporada em São Paulo. No início de 2020, voltou ao tricolor gaúcho. Mudou-se para Eldorado do Sul em 2021. Desde o ano passado, está trabalhando exclusivamente com a categoria sub-17.
No dia 3 de maio, sexta-feira, ele chegou ao trabalho às sete da manhã, sob a chuva intensa. Logo percebeu que não conseguiria sair do CT. “A água não parava de subir. No final da tarde de sexta, colocamos os jogadores no segundo andar da residência”, recorda.
O local comporta até 120 atletas e estava bem abastecido. Só que a eletricidade na região foi cortada, desligando as geladeiras. O grupo preferiu não acionar o gerador, que estava molhado, para não causar um curto-circuito. “Começamos a fazer as comidas mais rápido, para elas não estragarem”, conta Flores. “A gente acordava, fazia o café, acabava o café e já fazia o almoço. À tarde, a gente limpava tudo.” Essa foi a rotina até o dia 6, segunda-feira, quando Diego Costa chegou com seu jipe.
Na comparação com a maioria dos gaúchos atingidos pelas inundações, o grupo do CT teve sorte, avalia Flores: “Muitos não tiveram a chance de ficar num lugar com um nível de segurança, e com alimentação, como o nosso.”
Grêmio, Internacional e Juventude, os clubes gaúchos que disputam a série A do campeonato nacional, estão engajados nas campanhas para apoiar as centenas de milhares de afetados pela tragédia climática. Nas redes oficiais, são divulgados QR Codes para realizar doações e pontos de coleta de mantimentos. “Temos vários atletas que estão atuando no atendimento às vítimas das enchentes. São iniciativas espontâneas que nos orgulham muito”, diz Alberto Guerra, presidente do Grêmio.
O goleiro tricolor Caíque usou seu jet ski e pequenos barcos para resgatar pessoas ilhadas na Zona Norte de Porto Alegre. Já o goleiro do Internacional, o uruguaio Sergio Rochet, se uniu a uma equipe de cozinheiros em um refeitório na capital gaúcha para ajudar na separação e distribuição de quentinhas para os desabrigados. No Dia das Mães, 12 de maio, Borré e Enner Valencia, atacantes do time colorado, levaram flores para as mães refugiadas em um abrigo no Centro de Porto Alegre. “O Grêmio vai seguir até o fim trabalhando para ajudar a minimizar as perdas e os impactos dessa tragédia”, diz Guerra.
Em meio a todo esse esforço, o futebol foi colocado de lado. As partidas dos clubes gaúchos do futebol masculino e feminino acabaram adiadas até o dia 27 de maio. Ainda assim, os presidentes dos três clubes gaúchos da primeira divisão pressionaram a CBF pela paralisação total do Campeonato Brasileiro masculino por algumas rodadas. Conseguiram o apoio de outros doze clubes do campeonato e a pressão surtiu efeito. Em 15 de maio, a CBF informou a suspensão das rodadas 7 e 8, que aconteceriam no fim do mês. O reinício foi marcado para o dia 1º deste mês.
Tanto no profissional como nas categorias de base, o impacto na agenda desses clubes é grande. Em maio, a equipe sub-17 do Grêmio faria viagens para Argentina, Equador e Rio de Janeiro, todas adiadas. Flores diz que não é esse prejuízo que o preocupa no momento. “No futebol, tem muita gente envolvida em treinamento, logística e atividades do CT. E várias dessas pessoas perderam muita coisa.”