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    A área destacada com o quadrado vermelho no mapa da Era5 mostra a precipitação diária entre os dias 25 de abril e 6 de maio

questões ambientais

O homem, El Niño e a tragédia climática

Anotações de um estudo internacional que se debruçou sobre as causas das enchentes gaúchas e os desafios do estado - que não são apenas ambientais

| 05 jun 2024_09h46
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O Guaíba é um rio ou um lago? Os problemas decorrentes dessa ambiguidade técnica acerca das águas que avançaram sobre Porto Alegre na pior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul estão entre as anotações de um estudo formulado por treze cientistas do World Weather Attribution, um grupo internacional colaborativo que estuda efeitos de eventos climáticos extremos.

Enquanto o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica o Guaíba como um rio, no Atlas Ambiental de Porto Alegre ele está listado como um lago. Isso faz com que se encontrem brechas legais para ocupação e exploração do solo em seu entorno, conforme as regras mais convenientes (ou seja, as mais permissivas), alertam os pesquisadores. Eles citam como exemplo a instalação de aterros sanitários em áreas próximas ao Rio Gravataí, um de seus afluentes.

Com o título Mudanças climáticas, El Niño e falhas de infraestrutura por trás de grandes enchentes no sul do Brasil, o documento divulgado no final da segunda-feira examina a tragédia hídrica gaúcha, suas causas e consequências. O estado contabiliza até agora 172 pessoas mortas, 44 desaparecidas e cerca de 575 mil desalojadas pelas chuvas mais devastadoras da história do estado.

Os autores estão em quatro países: cinco deles na Inglaterra, no Imperial College de Londres, quatro na Holanda, nas universidades de Haia e Bilt, dois nos Estados Unidos, na Universidade Princeton, e dois no Brasil: Regina Rodrigues, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Lincoln Muniz Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São Paulo. Outros cinco pesquisadores assinam a revisão do relatório: três deles nas universidades holandesas e dois do Brazil Lab, em Princeton: João Biehl e Miqueias Mugge.

Ao longo de 56 páginas, o grupo traça diagnósticos, prognósticos e faz recomendações a respeito das áreas afetadas.

Dois períodos foram analisados: os dez dias que tiveram as três grandes tempestades que resultaram na catástrofe (entre 26 de abril a 5 de maio) e um recorte dos quatro dias dentro dessa fase que concentraram a maior precipitação (entre 29 de abril e 2 de maio).

O relatório está ganhando repercussão por enumerar o quanto dois fatores aumentaram a chance de eventos extremos de chuva acontecerem. 

Um deles é o aquecimento global ou, mais especificamente, o fato de o planeta ter ficado 1,5°C mais quente desde os anos pré-revolução industrial. Por meio de análises estatísticas, a conclusão é que esse fator dobrou as chances de a região ser atingida nessas proporções. E ainda tornou as tempestades entre 6% e 9% mais intensas.

O outro vilão é o El Nino, fenômeno sazonal de aquecimento das águas do Pacífico. Quando se observam separadamente os dois eventos, o cálculo é que o El Niño multiplicou de duas a três vezes a chance de essa temporada de dez dias (com três grandes tempestades) ocorrer, e aumentou sua intensidade entre 4% e 8%. No caso do período concentrado de quatro dias hiperchuvosos, o fenômeno aumenta as chances entre o dobro e o quíntuplo, com uma intensidade 3% a 10% maior.

O El Niño é um fenômeno natural que acontece há milhares de anos, em intervalos irregulares de dois a sete anos. A preocupação dos cientistas é justamente sua sobreposição a efeitos das mudanças climáticas, que potencializam as grandes secas ou grandes inundações dessas fases atípicas.

Um dos pontos de atenção é a perspectiva de que o planeta se aqueça mais 0,5°C dentro de um período breve, de vinte a trinta anos. A não ser que as emissões de combustíveis fósseis “sejam rapidamente interrompidas”, destacam os autores, as chances de chuvas das mesmas proporções dobrarão novamente. As cheias poderão, nesse caso, ir ainda mais longe, e com mais força.

O mapa indica que 90% dos municípios gaúchos relataram impacto severo de condições climáticas extremas e das chuvas fortes

 

O relatório traz um capítulo dedicado a analisar falhas da infraestrutura e outras vulnerabilidades que agravaram a tragédia climática e podem torná-la ainda maior.

“Embora existam leis de proteção ambiental no Brasil para proteger os cursos de água contra as construções e limitar as alterações no uso do solo, elas não são aplicadas nem cumpridas de forma consistente. Isso leva à invasão de terrenos propensos a enchentes, aumentando, portanto, a exposição das pessoas e da infraestrutura aos riscos de inundações”.

É mais enfático, porém, ao falar do Rio Grande do Sul. Além de destacar a ambiguidade regulatória do Guaíba (se é rio ou lago, e as brechas abertas por esse duplo entendimento), o relatório cita o estado como um mau exemplo na legislação, por ser um dos cinco do Brasil que ainda não regulamentaram o Programa de Regularização Ambiental. Registra também um fato recente: a mudança de 480 pontos da lei ambiental em 2020, a pretexto de conciliar o crescimento econômico com a preservação, inclusive com a possibilidade de as empresas fazerem seu autolicenciamento. 

“O segundo capítulo do Código Florestal sobre incentivos à proteção ambiental caiu, deixando indefinidas as regras para áreas de preservação permanente (como margens de rios, topos de morros e encostas, ou seja, locais propensos a inundações e deslizamentos), assim como o veto à derrubada e venda de árvores nativas ameaçadas de extinção”, diz o texto.

O resultado acumulado ao longo do tempo, escrevem, é que “a ocupação e o manejo do solo no Rio Grande do Sul tiveram um impacto significativo nos riscos de inundações, principalmente devido ao amplo desmatamento provocado pela expansão agrícola”. Citando dados do MapBiomas, o estudo enfatiza que 22% da vegetação nativa de florestas, campos e áreas úmidas do estado desapareceram entre 1985 e 2022. A maior parte foi convertida em lavouras de soja.

“A perda é ainda mais acentuada na bacia do Guaíba, sujeita aos maiores impactos de inundações, atingindo 26% (1,3 milhão de hectares) durante esses anos. Essa perda de vegetação diminuiu a capacidade natural da terra de absorção das chuvas, aumentando os riscos de inundações. A urbanização em áreas como a bacia do Guaíba, onde ocorrem atividades agrícolas em grande escala, agravaram os riscos.”

Para piorar, o sistema de comunicação foi falho. “As previsões e avisos de enchentes ficaram disponíveis com quase uma semana de antecedência, mas os avisos podem não ter chegado a todas as pessoas em risco. Talvez o público não tenha compreendido a gravidade dos impactos, ou não soubesse que providências tomar em resposta às previsões. É imperativo continuar melhorando a comunicação sobre os riscos, de modo a levar a ações adequadas para salvar vidas.”

No mesmo capítulo, há um trecho dedicado à relação de amor e ódio de Porto Alegre com o muro da Mauá, implementado em 1974 depois de grandes enchentes na cidade (nenhuma nas proporções da atual). Cita por exemplo a ideia de derrubá-lo para a Copa do Mundo sediada no Brasil, em 2014, para melhorar a paisagem urbana.

Com 2,6 km de extensão, o muro foi feito para suportar a alta das águas do Guaíba em até 6 metros e assim isolar a capital gaúcha. Há relatos, no entanto, de que quando elas chegaram a bem menos que isso, 4,5 metros, vãos na muralha e falhas em motores das comportas permitiram que o alagamento invadisse a área da cidade que deveria estar protegida.

O estudo faz recomendações de que a tragédia ambiental seja vista de forma mais ampla na reconstrução do estado, uma empreitada que deverá consumir 120 bilhões de reais, abordando questões sociais e preparando-se para um futuro que poderá ter eventos climáticos ainda mais violentos.

“Os municípios atingidos por enchentes usualmente precisam de uma década para restaurar o seu nível anterior de atividade econômica, mas é crucial que a recuperação e reconstrução no Rio Grande do Sul seja inteligente em termos climáticos, tendo em conta não só o clima atual, mas também o clima futuro (…)”, escrevem os pesquisadores, para depois ressaltar as dimensões sociais da tragédia ambiental: “Inteligente em termos climáticos significa também gerar novas oportunidades de trabalho para as legiões de pessoas pobres das cidade e das zonas rurais que perderam os seus meios de subsistência, suas pequenas empresas e seus empregos. Isso ajudaria a reconstruir o estado e a desencorajar a fuga de capital humano.”

Algumas medidas planejadas, como a remoção de casas para serem construídas em outras áreas não alagáveis (serão 5 mil só em Muçum, na estimativa da prefeitura local), carecem de cuidado para evitar a gentrificação quando a transformação de uma área urbana a deixa tão cara que se torna inviável para pessoas de renda baixa. As novas regiões reconstruídas com segurança contra inundações irão certamente se valorizar e podem logo se tornar proibitivas para a população pobre, inclusive os que perderam tudo com as chuvas fortes. A estratégia social precisa ser pensada em linha com a ecológica.

O relatório pode ser baixado na íntegra, em inglês, aqui.

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