CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
Fim da violência
Mãe luta para criar o filho que testemunhou um crime brutal
João Batista Jr. | Edição 214, Julho 2024
“Eu estava vivendo no automático.” É assim que Andressa Victoria Fernandes Canhete, de 23 anos, define os meses que passou tendo como principal objetivo lutar pela guarda de seu único filho. Entre setembro do ano passado e maio deste ano, o menino, então com 5 anos, viveu em um abrigo público de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, para o qual foi levado depois de ter sofrido agressões físicas – cometidas, como ele mesmo contou, por seu avô paterno, o militar Adailton Cristiano Leitheim.
Em 15 de setembro, o garoto chegou à escola com o corpo cheio de marcas causadas por uma surra de cinto, o que chamou a atenção das professoras. A direção da escola o encaminhou ao Conselho Tutelar e depois à delegacia. A agressão veio somar-se à tragédia que marcou seus primeiros anos de vida.
Ele é filho biológico de Christian Campoçano Leitheim, que está preso preventivamente desde janeiro de 2023, acusado de agredir sexualmente, espancar e matar a enteada Sophia de Jesus Ocampo, de 2 anos e 7 meses. A mãe da menina, Stephanie de Jesus da Silva, companheira de Christian, também está detida pelo mesmo crime, que atraiu atenção máxima da mídia. Enquanto o foco da imprensa se dirigia para outros assuntos, o menino entrava em outra espiral de violência.
Andressa Canhete separou-se de Christian Leitheim em 2020, pouco depois de registrar um boletim de ocorrência contra ele, por agressão. O menino ficou com o pai. Por intermédio da Defensoria Pública, a mãe tentou obter sua guarda, sem sucesso.
Quando Sophia foi assassinada, e o pai acabou preso, o garoto foi colocado sob os cuidados dos avós paternos. “Eu tinha passado por um momento difícil, depois de ter sido agredida pelo Christian. Entrei em depressão. Então, depois da morte de Sophia, os avós paternos pediram e conseguiram a guarda provisória do meu filho”, conta Canhete.
Ela sequer teve autorização para visitar seu filho durante os nove meses que ele morou com os pais de Christian Leitheim. Depois que o garoto foi retirado da casa dos avós por causa do espancamento, a mãe passou a encontrá-lo uma vez por semana no abrigo.
O menino tornou-se objeto de uma disputa entre mãe e os avós paternos. Pobre e com histórico de depressão, Andressa Canhete precisou provar com laudos médicos e psicológicos que estava apta a exercer a maternidade. O artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”. Na prática, porém, a situação social precária pesa, sim, contra uma mãe solo que luta pelo direito elementar de criar o próprio filho. Ela trabalhou como vendedora e hoje está desempregada. Mora com seus avós e uma bisavó na periferia de Campo Grande. “No dia da audiência, 6 de maio, eu tive de escutar que já sofri de depressão e por isso não poderia ficar com o meu filho”, recorda Canhete. “Foi quando a juíza disse para o advogado dos avós que ele não tinha o direito de me ofender.”
Quando foi proferida a sentença em seu favor, Canhete nem conseguiu chorar. “Disse para mim mesma, enquanto olhava para os avós: ‘Vocês não conseguiram me derrubar.’” A Justiça concedeu a ela guarda provisória de seis meses, que se tornará permanente caso não haja nenhuma intercorrência. Nesse período, os avós paternos podem visitar o neto todas as segundas-feiras, durante duas horas. O avô nega ter agredido o menino.
Ao conviver agora com o filho, Andressa Canhete se deu conta do desafio que tem pela frente: “Ele era uma criança dócil quando o entreguei para o pai. Agora, é outra pessoa.” O garoto foi diagnosticado com transtorno opositor desafiador (TOD), condição que o torna propenso à agressividade, à raiva e à desobediência. “As crises podem vir das formas mais simples, como se eu sugerir que ele vá ao colégio de bermuda e não de calça”, conta a mãe.
O menino foi importante testemunha do que aconteceu com Sophia, que ele considerava sua irmã. Em depoimento à polícia, relatou as brutalidades feitas com a menina: “Foi meu pai, meu pai chutou ela pela rua, chutou ela duas vezes, aí deixou ela machucada.” Chegou a dar detalhes do que viu: “[Ele] Regaçou a perna dela, pegou, fez assim, depois beliscou a perna dela.”
Desde que o garoto passou a viver com a mãe, os avós paternos não o visitam nem telefonam para ele. Sequer apareceram no seu aniversário de 6 anos. “Não vou negar a convivência porque sei que o meu filho gosta deles”, diz a mãe. “Mas não posso fazer nada se não querem ver a criança.”
De presente de aniversário, Canhete deu ao filho massinha de modelar com formas para fazer corações e peixinhos e um quadro onde ele pode desenhar. O menino, que está sendo acompanhado por uma psicóloga, se adaptou bem à nova escola e gosta de jantar fora com a mãe.
“Como advogada, foi uma realização conseguir cumprir a função social do direito, que é proteger a criança e interromper um ciclo de violência”, diz Janice Andrade, que representa Canhete e também Jean Carlos Ocampo da Rosa, pai de Sophia. “E, como mãe, foi emocionante entregar o filho a outra mãe após quatro anos de batalha judicial. Ela teve a sua maternidade usurpada pelo genitor, pela família do genitor e pelo Estado.” Procurado pela piauí, o advogado dos avós paternos, Pablo Arthur Buarque Gusmão, não respondeu.
O julgamento de Christian Leitheim e Stephanie da Silva ainda não tem data marcada. Andressa Canhete não contou ao filho que o pai dele está preso. “Vou dar tempo ao tempo”, diz. “Ele pensa que seu pai está trabalhando em uma fazenda.”
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