Tyszka, no evento em junho, em São Paulo (Imagem: reprodução)
Sobre doenças, caudilhos e mulheres que leem e matam
Relato de uma noite de boa conversa com o escritor venezuelano Alberto Barrera Tyszka
Acabei não falando de Machado de Assis com Alberto Barrera Tyszka.
Havia selecionado um parágrafo de Memórias Póstumas de Brás Cubas para ler no lançamento de A Doença em São Paulo. Achei que a passagem teria algo a ver com o romance do escritor venezuelano. A conversa com Tyszka foi longa e foi boa, mas não encontrei oportunidade para chamar o defunto autor à roda. Fica para a próxima.
A Doença foi lançado em espanhol em 2006. Ganhou o prêmios Herralde, na Espanha, e o prêmio de melhor romance em língua estrangeira da Casa Editorial do Povo, na China. Outro romance do autor, Mulheres que matam, já havia saído no Brasil em 2021, dois anos depois da edição em espanhol. E ainda este ano um terceiro título deve ser publicado no país: Pátria ou morte, de 2015.
Eu ainda não havia lido Tyszka quando Edson Manoel de Oliveira Filho – editor da É Realizações, que publica a ficção do venezuelano no Brasil – me convidou para entrevistá-lo no lançamento de A Doença.
Pedi uns dias para ler os livros antes de aceitar o convite. As primeiras páginas de Mulheres que matam bastaram para me conquistar. A abertura apresenta ao leitor uma mulher nua, no fundo da banheira de um quarto de hotel. “Seus olhos estavam abertos. Sem brilho. Como duas pedras em um copo de água.” A cena estática mas sinistra do cadáver submerso encontra um termo de comparação ao mesmo tempo plácido e inusitado. Objetos fora do lugar: uma mulher de olhos abertos no fundo de uma banheira, pedras em um copo de água.
A suicida no quarto de hotel é uma dentista chamada Magaly Jiménez. Páginas adiante, saberemos que ela fez parte de um clube de leitura que reunia apenas mulheres, um pequeno círculo de conversa sobre livros e problemas pessoais – que acabará se dedicando ao assassinato.
Bem diferente da trama policial do livro posterior, o enredo de A Doença é íntimo – e clínico: no centro da história, está o câncer. Andrés Miranda, o personagem central, é um médico que preza pela total honestidade no diálogo com os pacientes. Não esconde nada. Mas na primeira página do romance, ele recebe os exames de Javier. O diagnóstico é incontornável: carcinoma de pulmão, com metástase no cérebro. Andrés pela primeira vez hesita em dizer a verdade a um paciente – a seu pai.
As duas histórias se passam em Caracas.
Na noite do lançamento – 19 de junho, uma quarta-feira –, o escritor e eu estávamos, por coincidência, vestidos de forma quase idêntica: camisa azul, calça jeans e sapato. Minutos antes do início do evento, Alberto Barrera Tyszka, 64 anos, cabelo e bigode grisalhos, óculos de aro fino, olhava para o público esparso na entrada do auditório da editora, constatando que não chegava a vinte pessoas. Mas ele não parecia decepcionado. Falando em espanhol, preocupou-se em ser entendido. “Voy a tratar de hablar lento”, disse, no início da conversa.
Comecei apresentando A Doença aos presentes. Falei da precisão do título: o câncer de Javier é o cerne do livro. É uma doença terminal, sim, mas nem por isso a narrativa centra-se na morte. Não se trata, eu disse, de uma versão latino-americana de A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. O que está em jogo aqui é o que a doença representa em si mesma, o que ela faz com o doente e com aqueles que o cercam. Perguntei ao autor como ele havia chegado àquela concepção de narrativa. Percebo agora que a questão, no fim das contas, era pedestre: perguntei como ele havia tido a ideia do livro. Mas a resposta desdobrou-se em uma série de considerações instigantes.
“Não tenho nunca demasiado claro o que vou escrever. Não tenho algo deliberado de entrada”, disse Tyszka. O venezuelano definiu-se como um escritor intuitivo. Sabia onde queria chegar com A Doença, mas foi só escrevendo que delineou o percurso dos personagens até esse fim.
Uma circunstância pessoal deixou o escritor sensível ao tema do livro: sua mulher, a jornalista Cristina Marcano, sofre de lúpus. Quando essa condição foi diagnosticada, os dois estavam nos primeiros anos de casamento e pouco sabiam sobre doenças autoimunes. Tyszka passou a ver com olhos críticos certas atitudes comuns em relação à doença: “No Ocidente, ter uma doença começou a ser muito malvisto. Isso vem de antes da pandemia. Talvez tenha sido nos anos 1980, com a Aids, que o corpo começou a ser visto como um lugar de perigo.” Teria se consagrado desde então “essa ideia de que, se alguém adoece, é por culpa própria”.
Em paralelo ao drama de Andrés e Javier, corre a história de Ernesto Durán, que, como o personagem famoso de Moliére, é um “doente imaginário”. Por um tempo, Durán foi paciente de Andrés, até o médico concluir que seus males – angústias indefinidas e uma recorrente sensação de vertigem – não eram clínicos. Inconformado com essa conclusão, Durán escreve longos e-mails a Andrés. E essas mensagens estranhamente se convertem em vetor de contágio: uma pessoa que as lê passa a sofrer os mesmos sintomas do hipocondríaco.
“A palavra e sua capacidade terapêutica”, observou o autor. “Poderia ser um bom tema de autoajuda.”
A autoajuda foi a ponte para a conversa sobre Mulheres que matam.
Há apenas uma menção passageira à política venezuelana em A Doença, obra publicada durante o primeiro governo de Hugo Chávez. A ação de Mulheres que matam já se desenrola sob o tacão do sucessor ungido por Chávez. O desabastecimento e a crise econômica se fazem sentir, e a repressão brutal aos protestos contra a ditadura abalam a vida de duas das cinco mulheres do clube de leitura. Mas o nome de Nicolás Maduro nunca é citado. A opressão que pesa sobre Caracas é atribuída a um impessoal Alto Comando. Tyszka queria esvaziar a importância que se vem dando, na história da América Latina, aos caudilhos.
“Nós, latino-americanos, passamos tempo demais obcecados com a figura de nossos caudilhos”, disse Tyszka, que é coautor, junto com Cristina Marcano, de Hugo Chávez sem uniforme – uma história pessoal, biografia publicada no Brasil pela Gryphus. “E pensamos que, quando os caudilhos desaparecerem, a sociedade vai mudar de forma natural. Isso não ocorreu.” De acordo com o escritor, o carisma e a força pessoal do caudilho seriam dispensáveis para manter os governos autoritários que eles instalaram. As estruturas de poder que eles legam aos sucessores conservariam “uma eficácia e uma crueldade terríveis”, que dispensa o personalismo caudilhista. É dessa forma que Maduro, figura medíocre e desprovida de carisma, estaria mantendo o domínio autoritário sobre a Venezuela.
À sombra do Alto Comando, as mulheres do clube de leitura, inspirado em clubes reais que o autor visitou em Caracas, compartilham suas impressões sobre livros e desabafam seus problemas pessoais. Até que uma delas sugere a leitura de uma obra de autoajuda, ideia que a princípio é recebida com alguma reticência. E é esse livro que conduzirá as leitoras ao assassinato. Há muitas contas a acertar na Venezuela: com o chefe assediador, com a comandante de uma prisão política, com o miliciano que atira em estudantes que participam de protestos.
“Talvez nós, escritores literários, desprezemos a literatura de autoajuda – e a invejemos”, admitiu Tyszka. Desprezo e inveja têm boas razões: autores do gênero vendem bem. Sustentam-se com os livros que escrevem, coisa rara mesmo entre os literatos bem reputados. Radicado na Cidade do México, Tyszka ganhou a vida escrevendo roteiros para televisão, inclusive para as famosas telenovelas mexicanas. Seu romance Rating, sem edição no Brasil, seria, em suas próprias palavras, um ajuste de contas com esse ofício, “uma visão crítica e sangrenta” do mundo televisivo.
À editora mexicana que publicou Mulheres que Matam, Tyszka propôs um pacote duplo: ele escreveria o romance e também o livro de autoajuda que as personagens leem, cujo título apropriadamente brega é Eu te daria a minha vida… mas a estou usando. Não conseguiu levar o projeto a termo. Constatou que preencher páginas e páginas com frases motivacionais e conselhos genéricos é mais difícil do que parece.
A doença também ronda as mulheres que matam: Magaly acompanha a agonia do marido, que sofre de diabetes tipo 1. Pátria ou morte, romance ainda a ser lançado no Brasil, transcorre entre dois marcos médicos da política venezuelana: o momento em que Chávez anuncia que está com câncer, em 2011, e sua morte, em 2013. Os personagens são fictícios, mas a reconstituição da doença do caudilho é rigorosamente factual, garantiu o autor na noite de lançamento. Perguntei se a doença, em sua obra, não funcionaria como uma metáfora da dissolução do país sobre Chávez e Maduro. Ele concordou com a ideia. E acrescentou que El fin de la tristeza, romance que lançou neste ano, leva a metáfora adiante: trata de distúrbios mentais.
Tyszka, que visita a Venezuela regularmente, cultiva expectativas cautelosas em relação às eleições presidenciais de julho, pois a prolongada crise econômica teria levado a “uma deterioração inédita nas bases do chavismo”. Mas ainda que as eleições sejam limpas e a oposição vença, o novo governo teria pela frente o duro trabalho de “desmontar a estrutura do chavismo”, instalada em todas as instâncias do governo e das forças armadas. “Não sou otimista, mas a esperança é irracional”, concluiu.
A conversa avançou além do horário – temo ter comprometido um compromisso que o escritor tinha na mesma noite. Mesmo assim, Tyszka ainda respondeu perguntas da plateia. Solícito, também autografou livros e tirou fotos ao lado dos leitores.
O trecho de Machado de Assis que acabei não citando é do capítulo XXIII, intitulado “Triste, mas curto”. Brás Cubas narra a morte de sua mãe, vítima de cancro no estômago. Esse capítulo tem uma ressonância pessoal para mim: aos 13 anos, perdi minha mãe para o câncer (rememorei essa história em um texto na extinta revista Época). Pela mesma razão, a leitura de A Doença ainda ressoa na minha alma enquanto concluo este texto.
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