Cena de O Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft, filme dirigido por Werner Herzog Foto: Divulgação
Réquiem de Herzog
O legado de Katia e Maurice Krafft & dois adendos
O que distingue dois documentários estreados em 2022, um em janeiro, outro em junho, ambos baseados no mesmo acervo de imagens filmadas por um casal de vulcanólogos franceses? A principal diferença, conforme chegou a ser escrito, seria que Werner Herzog é o diretor de O Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft. Explicação plausível, mas imprópria por desmerecer o covencional, porém meritório Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft, de Sara Dosa, disponível no streaming Disney+. O apelativo título original de Vulcões…, Fire of Love (Fogo do Amor), destaca a história de amor com desfecho trágico do casal Krafft, a ponto de a revista Rolling Stone ter publicado que é a “maior história de amor movida a lava já contada”.
Katia e Maurice morreram, em 1991, junto com 41 pessoas, envolvidos pelo fluxo piroclástico – mistura quentíssima de gás com matéria vulcânica, cinzas e fragmentos de rocha que se desloca em alta velocidade – resultante da erupção no Monte Unzen, localizado na província de Nagasaki, no Japão.
Antes de O Fogo Interior…, Herzog havia dirigido dois documentários sobre vulcões – La Soufrière, filmado na ilha de Guadalupe, em 1977, e Visita ao Inferno, realizado com o vulcanólogo britânico Clive Oppenheimer, em 2016, e disponível na Netflix. Uma sequência de imagens feitas por Maurice é dedicada aos Krafft em Visita ao Inferno e Herzog comenta em off: “Eles eram famosos por filmar imagens incríveis de vulcões, mas isso os obrigava a chegar perigosamente perto da erupção. Perto demais, como acabaria sendo comprovado.”
Ao retomar o mesmo tema em O Fogo Interior…, Herzog abre o prólogo com o plano de uma pessoa vestida dos pés à cabeça com roupa prateada de proteção, diante de uma muralha de lava. Ela se aproxima mais de uma vez do fogaréu que se ergue na cratera; depois, anda em direção à câmera e, em seguida, usando agora um capacete comum, está de costas, à beira da massa incandescente. Ao virar de frente e sorrir para a câmera, descobrimos se tratar de Katia, que parece feliz por estar ali, podendo observar a erupção bem de perto.
Na narração que acompanha as imagens iniciais da abertura, Herzog explica o propósito de O Fogo Interior… no seu tom de voz e ritmo característicos: “Este filme é em memória de Katia e Maurice Krafft… Quase tudo que vamos ver é filmado por eles. Há algo tão inspirador nisso, de tal modo nunca visto antes que me atraiu como cineasta. Eles perderam a vida juntos, filmando o poder dos vulcões. Esse é o legado deles. As vidas e a morte de Katia e Maurice estão documentadas em filmes e livros. E isso aqui não pretende ser outra biografia extensa. O que estou tentando fazer aqui é celebrar a maravilha das suas imagens.” (meu grifo)
Trata-se, portanto, de um filme focado nas próprias imagens com as quais é feito e não um documentário biográfico usual como é o caso de Vulcões…. No filme de Herzog, as imagens têm valor em si mesmas, enquanto no de Dosa servem, em grande parte, para ilustrar a narração em off. O Fogo Interior…, feito “em memória” dos Krafft, é um filme de réquiem para o casal, conforme o título completo indica.
Herzog paga, porém, o preço de manter inalterado até o fim o objetivo que ele mesmo propôs – celebrar a maravilha das imagens. A partir de certo ponto, acaba se deixando levar pela monstruosa beleza das erupções filmadas, e O Fogo Interior… ameaça se tornar uma antologia do legado de Katia e Maurice Krafft, por mais lindo que ele seja.
Sola, por sua vez, tem em Vulcões… a virtude de recorrer a entrevistas de Maurice, filmadas e gravadas, assim como a textos escritos por Katia, na voz de Miranda July. Recurso comum, mas que propicia acesso a declarações e pensamentos dele e dela, o que permite conhecê-los melhor e situa o documentário em nível que explica, por um lado, a renda de cerca de 1,6 milhão de dólares que obteve em bilheteria no mundo e, de outro, a carreira gloriosa em vários festivais desde que estreou no Sundance Film Festival, onde recebeu o Grande Prêmio do Júri e a dupla de editores do filme ganhou o Prêmio de Edição Jonathan Oppenheim.
Maurice conta em off que, “quando se iniciaram na vulcanologia”, Katia e ele “estavam um pouco decepcionados com a humanidade [no período da Guerra do Vietnã]. E como o vulcão é algo maior que o homem, nos dissemos: ‘Eis do que precisamos. Alguma coisa que ultrapassa a compreensão humana.’” “Eu não sou um cineasta”, ele diz. “Eu sou um vulcanólogo errante que é obrigado a fazer filmes para poder vaguear.” A narração comenta, no entanto, que “as filmagens sugerem o contrário, apesar do que Maurice afirma”.
Herzog também discorda de Maurice. Na narração da sequência de O Fogo Interior… no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia, ele afirma: “Cada vez mais, eles se tornam cineastas. De agora em diante, raramente os vemos fazendo ciência. Eles filmam outros fazendo ciência.” Na narração que acompanha a filmagem feita no Havaí, Herzog extrapola em defesa do seu argumento: “Os Kraffts estão cada vez mais atraídos pela magnificência e o mistério do interior da Terra fluindo para a superfície… Eles não são mais vulcanólogos. São artistas que nos levam, a nós espectadores, para um reino de estranha beleza. Essa é uma visão que existe apenas em sonhos. Não há nada mais a dizer. Só podemos assistir admirados.” Herzog admite, porém, que além de fascínio, vulcões causam “desastres terríveis”, como o ocorrido no cume do Nevado del Ruiz, na Colômbia, em 1985.
Katia, em Vulcões…, vai além: “E o mais difícil é quando acontece esse tipo de problema – destruição de vilas, pessoas sinistradas. Aí ficamos envergonhados de nos chamar de vulcanólogos. Nos séculos XVIII e XIX houve grandes catástrofes, houve muitas vítimas e, com frequência, por falta de informação. Mas como isso foi possível na Colômbia, no século XX [quando houve 22 mil mortos], quando todo mundo sabia?”
O Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft será exibido para convidados nesta quarta-feira, 31 de julho, na abertura da 13ª edição da Mostra Ecofalante de Cinema, em São Paulo. Haverá também sessões gratuitas, uma em 1º de agosto, às nove da noite, no Cine Satyros Bijou; outra no sábado, 10 de agosto, às 21h15, no Reserva Cultural – sala 2.
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A mostra No Breu do Tempo: Os Contra-Arquivos no Cinema de Susana de Sousa Dias, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, a partir de 2 de agosto, marcará a estreia brasileira do filme Viagem ao Sol (2021), de Ansgar Schaefer e Sousa Dias.
“Os filmes apresentados pela mostra têm em comum o gesto de retomar e revirar arquivos da era salazarista, transformando-os em ‘contra-arquivos’, reprojetando-os no presente sob nova luz… qual seria o papel do cinema na sua forma de lidar com as memórias de passados ditatoriais (não só o português)?”, pergunta o press release. “Como as ‘memórias fracas’ e os ‘contra-arquivos’, segundo termos da própria Susana de Sousa Dias, poderiam, através do audiovisual, mostrar outros horizontes e caminhos possíveis?”
Para quem, como eu, tiver assistido há pouco a O Fogo Interior… ou lembrar do filme de Herzog, a primeira sequência de Viagem ao Sol surpreenderá porque, nesse caso, a destruição é causada pelo homem em vez de um vulcão. Imagens de arquivo em preto e branco da devastação causada pela guerra são acompanhadas por breves relatos de experiências pessoais de vítimas da atrocidade bélica. Vemos um bombardeio aéreo, explosões, incêndios, fumaça, nuvens de poeira, mãos reconstituindo uma estátua com fragmentos, uma cidade em ruínas, e ouvimos vozes, a maioria femininas, em off dizendo: “Só medo. Havia apenas medo. Não me lembro de nada agradável, eu tinha tanto medo dos incêndios.”
Crianças no convés de um navio, em cena de Viagem ao Sol (Crédito: Divulgação)
As cenas filmadas não ilustram os testemunhos – a imagem e as vozes em off preservam certa autonomia entre si, sem deixar de serem complementares, resultando, de certo modo, em dois filmes simultâneos, um visual e outro sonoro. Essa é a marca identitária da excelência do cinema memorialista de Sousa Dias.
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Começa nesta quarta-feira (31) no CineSesc, em São Paulo, e vai até 14 de agosto, a segunda edição de um evento do qual O Fogo Interior… e Viagem ao Sol poderiam participar. Ambos são demonstrações eloquentes de Amor ao Cinema, nome da mostra do Sesc. Na abertura, com ingressos gratuitos, será exibido A Última Sessão (2021), de Pan Nalin, filme sobre o fascínio do cinema que leva Samay (Bhavin Rabari), menino de 9 anos, a querer se tornar cineasta sem ter noção dos obstáculos que irá enfrentar. Haverá mais duas exibições de A Última Sessão, uma em 11 de agosto, às 20h30, a outra em 14 de agosto, às 18h00.
Samay, interpretado por Bhavin Rabari, em A Última Sessão (Crédito: Divulgação)
A programação completa de Amor ao Cinema está disponível aqui.
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