Frans Krajcberg no sítio em Nova Viçosa Eduardo Knapp/Folhapress
Doação, ilusão e imbróglio: o destino do acervo de Frans Krajcberg
Sonho do escultor, museu em Nova Viçosa está longe de acontecer, e Tribunal de Contas da Bahia questiona conservação das obras. Algumas chegaram a sofrer infestação de cupins
Uma exposição iniciada em março e encerrada em maio deste ano na galeria Athena, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, reuniu pela primeira vez as obras de dois amigos: o arquiteto e designer José Zanine Caldas, reconhecido pelo seu trabalho com esculturas na madeira, e o escultor polonês naturalizado brasileiro Frans Krajcberg. Eles se conheceram em Paris, em meados dos anos 1960, e Zanine mostrou a Krajcberg seu projeto de transformar Nova Viçosa, município no extremo Sul da Bahia, em uma nova capital cultural brasileira. Ele estava entusiasmado com a beleza natural da região, na qual havia instalado um de seus ateliês. O plano nunca saiu do papel, mas fez com que Krajcberg se apaixonasse pela cidade assim que a visitou, em 1966.
De família judia, Krajcberg nasceu em Kozienice, em 1921. Lutou na Segunda Guerra Mundial pelo exército soviético e perdeu os parentes nos campos de concentração nazista. Estudou engenharia e artes na Universidade de Leningrado (atual Universidade de São Petersburgo), Belas Artes em Stuttgart, na Alemanha, e fixou-se no Brasil em 1948 para viver em São Paulo. Nos anos 1960, mudou-se para Itabirito, no interior de Minas Gerais, onde começou a elaborar suas primeiras esculturas. Após o encontro com Zanine e a descoberta de Nova Viçosa, Krajcberg adquiriu um terreno na região repleta de Mata Atlântica nativa para instalar o seu “Sitio Natura” em 1972. Viveu ali até novembro de 2017, quando morreu vítima de choque séptico após contrair uma pneumonia, aos 96 anos.
Em setenta anos de carreira, ele acumulou um acervo com cerca de 48 mil itens, incluindo esculturas de chão e parede, gravuras, quadros e fotografias, que lhe renderam prêmios como o de melhor pintor nacional da Bienal de 1957, de São Paulo, e o da Cidade de Veneza, durante a Bienal de 1964. Em 2008 ele recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e, no ano seguinte, foi condecorado como cavaleiro da Ordem do Ipiranga, honraria concedida pelo governo paulista na gestão de José Serra (PSDB). Algumas de suas técnicas incluem o manuseio de argila e terra seca coloridos, intitulado “terras craqueladas”, além de obras com Washi (papel japonês mais fino oriundo da casca da árvore). As esculturas, ponto de destaque em sua produção, foram influenciadas pela matéria-prima do Sul baiano, como o manguezal, os cipós e as raízes contorcidas, assim como troncos de árvores chamuscados por queimadas, que eram lapidados com pigmentos naturais que ele próprio criava.
O tom crítico de sua produção, que denuncia a ação humana contra a natureza, se explicitava na decoração do sítio. “Proibida a entrada do homem”, dizia uma placa do local. Ao longo da vida, foi um ativista ambiental. Fez viagens à Amazônia nos anos 1970 e sempre questionou o pouco interesse do brasileiro pela região. “Poucos conhecem o Brasil. Poucos foram à Amazônia. Ela está sendo destruída. A primeira imagem que eu vi foram seis índios mortos, pendurados nas árvores. Ninguém se importa com nada”, disse ele ao jornal Folha de S.Paulo em 2012 – a reportagem com o artista foi publicada após sua morte, em dezembro de 2017.
Seus trabalhos estão presentes em galerias ao redor do mundo, como em Nova York e Moscou. Mas uma parcela do seu acervo, entre 400 e 600 objetos, boa parte dele de esculturas, está longe dos olhos do público, envolvido em um impasse judicial que já dura quinze anos.
Tudo começou em 2009, quando Krajcberg fez um acordo com o governo da Bahia para que seu acervo artístico fosse doado ao poder público após sua morte, sob a coordenação do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, o Ipac, autarquia vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Na escritura de doação, uma de suas exigências era de que a administração se comprometesse a desenvolver, no sítio onde morava, um museu a céu aberto com seus trabalhos. Ele queria fazer de Nova Viçosa uma Inhotim baiana, (referência ao complexo cultural de Brumadinho, em Minas Gerais, fundado em 2006).
Atual diretor do Museu de Arte Contemporânea da Bahia, Daniel Rangel era integrante da Diretoria de Museus (Dimus) e acompanhou as negociações de doação do material ao poder público. Segundo Rangel, Jaques Wagner (PT), governador à época e atual senador pelo estado, demonstrou grande interesse no acervo. “O encontro entre eles foi afetuoso, houve uma aproximação quase cármica. Wagner viu em Krajcberg a figura de um pai, porque ele tambem é descendente de polonês e judeu”, disse Rangel à piaui.
Wagner confirmou à piauí a amizade com o escultor. “Dei a ele o título de cidadão baiano. Desenvolvemos uma relação muito afetiva”, relembrou. A relação era próxima de tal forma que o político abriu processo de licitação em 2011 para contratar uma empresa de segurança patrimonial para vigiar o sítio do escultor. “Havia uma mobilização do governo em torno da proteção dele, do espaço e das obras”, recorda Rangel.
Em março de 2013, durante o segundo mandato de Wagner, foi promulgada uma lei estadual que estabelecia a criação, sob a forma de fundação estatal, do Museu Artístico e Ecológico Frans Krajcberg, em Nova Viçosa. Ficou acertado também que o museu teria um local, algo como uma filial, em Ondina, bairro da capital baiana. Mas nada foi feito desde então e o museu nunca saiu do papel. Wagner afirmou que o espaço em Ondina não era adequado para receber as obras, mas não soube explicar por que o museu em Nova Viçosa fracassou.
Além de Rangel, quem também presenciou as tratativas entre gestão estadual e o artista foi a jornalista Renata Rocha. Ela conheceu Krajcberg em 2007 durante um evento literário e propôs a ele uma reportagem sobre sua história. Ele aceitou a proposta e a convidou para conhecer o sítio em Nova Viçosa. Os dois se aproximaram e o artista, então com 88 anos, pediu a jovem de 26 em namoro. A união durou sete anos. “Nós terminamos em 2016. Ele disse: ‘Quero que você seja feliz e arrume um marido mais jovem, para você conseguir fazer o que me prometeu’”, contou Renata à piauí em janeiro deste ano em sua casa, no bairro de Campo Grande, em Salvador.
A jornalista havia prometido ao ex-namorado que cuidaria do acervo após sua morte. Mesmo com o fim do relacionamento, eles continuaram se encontrando. Aos 95 anos, Krajcberg mantinha a rotina com caminhadas matinais e o diálogo com assistentes para concluir algumas obras. Também gostava de ficar em seu escritório para ouvir o som dos pássaros. Renata, que ambicionava realizar um documentário sobre o escultor, passou a captar imagens dele nesses momentos de reflexão. É um material rico, que mostra o criador em seus últimos meses de vida. Em um registro do dia 6 de agosto de 2016 ele diz o seguinte: “Nunca fui tão apagado como estou agora. Meu museu nunca vai sair. É uma tristeza o que estou passando. Eu podia ter dado [o acervo] a outro estado.”
Desde que a doação ao governo baiano foi concretizada, Krajcberg e seu entorno conviveram com momentos de esperança e frustração. Em julho de 2017, o secretário de cultura da Bahia à época, Jorge Portugal, sob gestão do petista Rui Costa (atual ministro-chefe da Casa Civil), visitou o artista em seu sítio para um ato de compromisso com a construção do museu. Foi uma sinalização do poder público após anos sem nenhuma movimentação. Durante a conversa gravada por Renata, Portugal afirma que o cuidado com o acervo é algo que “a Bahia tem obrigação de dar”. Ao final do vídeo, eles dão as mãos e Krajcberg comemora: “Viva o secretário!” Portugal morreu em agosto de 2020, e nenhuma obra havia começado. Também não houve avanço desde que Jerônimo Teixeira (PT) assumiu o governo estadual em 2022. Procurado pela piauí, ele informou por meio de sua assessoria de imprensa que o assunto deveria ser tratado diretamente com o Ipac.
Insatisfeita com o contexto, Renata compilou arquivos de toda ordem, como escrituras públicas, vídeos e documentos em um dossiê encaminhado ao Ministério Público da Bahia em junho de 2020 para contestar a atuação do governo estadual na manutenção dos objetos do artista. Em paralelo, luta judicialmente para o reconhecimento de sua relação com Krajcberg como uma união estável. Se o pedido for aceito, ela terá maior ingerência nas discussões relacionadas ao acervo em disputa. “Poderei questionar o estado e o Ipac com mais respaldo”, argumenta.
A situação conflituosa ganhou contornos ainda mais dramáticos entre abril e agosto de 2022. O Ipac, responsável pelo acervo após a doação de 2009, retirou as obras do escultor de seu sítio e levou para o Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, em Candeias, no Recôncavo Baiano, para um processo de restauro. No mesmo período, a prefeitura de Nova Viçosa demoliu uma casa de Krajcberg à beira-mar alegando que a residência atrapalhava o caminho dos barcos na rota do porto da cidade.
De acordo com o Ipac, as obras retiradas do sítio estavam degradadas, com infestação de cupins e próximas a roedores, e a limpeza não poderia ser feita em Nova Viçosa por falta de estrutura técnica. Inventariante do acervo de Krajcberg, o advogado Ernani Griffo disse à piauí que considerou a ação do Ipac “um pouco açodada”, mas elogiou a iniciativa do órgão de revitalizar os trabalhos. Ele explicou, no entanto, que o escultor deixou um testamento protocolado em novembro de 2015, em um cartório de Nova Viçosa, reforçando que as obras doadas deveriam ficar no Sítio Natura.
Em dezembro passado, o Ministério Público do Estado da Bahia processou o estado baiano por irregularidades na manutenção do acervo. A ação diz que, caso o governo estadual não cumpra as exigências, como manter os bens de maneira adequada, preservar e difundir a memória do artista e viabilizar a construção do museu, os trabalhos do escultor poderão ser oferecidos a outro estado. Em março, o Tribunal de Justiça da Bahia determinou que a gestão estadual apresente um relatório descritivo das esculturas e determinou que elas devem retornar ao sítio em um prazo de seis meses.
Um mês depois, em abril, foi a vez do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA) se manifestar, após vistoriar as obras no Museu Wanderley de Pinho e visitar o sítio em Nova Viçosa. No primeiro caso, o órgão criticou o fato de que os 582 itens sob restauração estavam em local sem câmeras de segurança e controle de temperatura, mas ponderou que os objetos “se encontram bem cuidados”.
Sobre o sítio em Nova Viçosa, o tribunal concluiu que o estado “falhou em cumprir integralmente os encargos estabelecidos na escritura pública de doação”, que as exigências estabelecidas no documento “não foram adequadamente atendidas”, o que resultou em um “cenário de negligência em relação à preservação e salvaguarda do patrimônio cultural e ambiental deixado pelo renomado artista”. Segundo o TCE, as estruturas do Sítio Natura apresentavam furos no telhado, permitindo a entrada de água e umidade, além do risco de incêndio devido à capacidade inflamável dos materiais usados pelo artista.
O Tribunal argumentou ainda que é preciso criar um plano de gestão que contemple a “preservação, restauração e conservação” do legado de Krajcberg, bem como um um cronograma detalhado de execução das atividades descritas no ato de doação do acervo. Em caso de descumprimento, o TCE sugere o estabelecimento de multa diária de mil reais, que será repassado ao Fundo Municipal de Meio Ambiente de Nova Viçosa.
Questionado sobre as manifestações do Ministério Público baiano e do Tribunal de Contas, o Ipac afirmou à piauí que os órgãos foram motivados por “denúncias falsas promovidas por terceiros, que têm tentado assumir para si a gestão dos bens que foram doados pelo artista ao estado da Bahia” e que não há indícios de irregularidade. O órgão disse que, desde a morte do escultor, em 2017, tem trabalhado na catalogação, higienização e descupinização das obras.
Sobre a construção do museu no Sítio Natura, o Ipac ressaltou que tem dialogado com outras secretarias para “garantir as condições necessárias para a abertura da residência do artista à visitação pública”, mas ressaltou que o processo não é simples, “já que se trata de um local que está a 8 km de Nova Viçosa e é uma reserva de Mata Atlântica, com diversas espécies de animais silvestres, entre elas cobras venenosas”. Ou seja: não há prazo para que o desejo de Krajcberg seja atendido.
Enquanto o acervo é alvo de disputas no Brasil, o instituto que leva o nome de Krajcberg em Paris planeja uma exposição no ano que vem para homenageá-lo no Parc de Bagatelle, localizado no Bois de Boulogne, extremo Oeste da capital francesa. Ele já havia exposto no local em 2005, na primeira edição do Ano do Brasil na França, criado para fortalecer laços econômicos e culturais entre os dois países. Serão cerca de oitenta obras cedidas pelo Ipac temporariamente. O evento também servirá para celebrar o centenário do artista, ocorrido em 2021, mas que foi adiado em decorrência da pandemia, confirmou à piauí Sylvie Depondt, presidente da Association des amis de Frans Krajcberg (Associação dos Amigos de Frans Krajcberg).
Krajcberg morreu no Hospital Samaritano, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e foi cremado no Memorial do Carmo, no Centro. Suas cinzas foram levadas à Bahia e depositadas em uma urna ao pé da árvore que sustentava um dos maiores símbolos de seu Sítio Natura: a casa na árvore. Além dos galpões e dos ateliês, há algumas poucas obras que não foram retiradas de Nova Viçosa, segundo o TCE. Uma imagem do Google Earth deste ano mostra uma das entradas do sítio com troncos contorcidos e pigmentados destacando o portão. Uma plaquinha diz “Museu Franz Krajcberg” (trocaram o S pelo Z).
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