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    Nenhum outro mês de junho teve clima tão quente e seco como o de 2024. As queimadas continuam: em apenas cinco dias, agosto superou o número de focos de incêndio registrado no mês inteiro de julho Foto: Corpo de Bombeiros Militar do Mato Grosso do Sul

anais da crise climática

A mão humana nas queimadas do Pantanal

Secas como a de junho deveriam ocorrer uma vez a cada 160 anos. Segundo um estudo internacional, agora se repetem a cada 35 anos – graças ao aquecimento global

| 08 ago 2024_11h00
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Situado no miolo da América do Sul, o Pantanal é a maior planície alagada contínua do mundo. Toma boa parte do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, alcançando também uma pequena faixa nos territórios de Paraguai e Bolívia. Embora seja uma fábrica de umidade para o continente, o bioma vem sofrendo com temporadas de seca mais severas nos últimos anos, o que facilita a ocorrência de queimadas. Um grupo de cientistas do World Weather Attribution, organização internacional que estuda os efeitos de eventos climáticos extremos, aponta que há um fator determinante para essa mudança: o aquecimento global. Com o planeta cada vez mais quente, secas extremas, como a que se vê hoje no Pantanal, estão se tornando mais recorrentes e colocam o bioma em risco.

Desde janeiro, mais de 12 mil km² foram queimados. É o equivalente a 8% da área do Pantanal, ou quatro vezes o perímetro da cidade de São Paulo. Trata-se de uma temporada atípica de queimadas, não apenas pela intensidade, mas pelo timing: historicamente, o auge dos incêndios na região se dá entre agosto e setembro. Dessa vez, o fogo começou em maio. A diminuição drástica no volume de chuvas este ano antecipou o problema.

Quando se olha para o passado, 2024 é um ponto fora da curva. Mas esse talvez seja o começo de um novo padrão no Pantanal. O grupo que estudou esse fenômeno é composto de dezoito pesquisadores de universidades e institutos meteorológicos do Brasil, Estados Unidos, Suécia, Holanda, Portugal e Reino Unido. O título do artigo, publicado nesta quinta-feira (8), já antecipa a conclusão: As condições quentes, secas e ventosas que tornaram as queimadas no Pantanal 40% mais intensas devido às mudanças climáticas

Para chegar a esse número, os cientistas usaram modelos matemáticos que permitem comparar o desastre atual com um cenário hipotético, em que a temperatura do planeta fosse a mesma da era pré-industrial – ou seja, 1,2°C mais baixa do que é hoje. O cálculo considera a média histórica de chuvas, a umidade e a velocidade do vento para estimar a intensidade das queimadas, a rapidez com que se alastram e a dificuldade de extinguí-las. A conclusão foi de que a principal explicação para um incêndio dessas proporções, similar ao ocorrido em 2020, é o aumento da temperatura no Pantanal e a queda da umidade.

O gráfico mostra como 2024 (a linha preta) foge ao padrão: desde fevereiro, mas sobretudo a partir de junho, a área acumulada de queimadas é muito superior à média histórica da última década

 

Junhos quentes, secos e com ventania intensa como o de 2024 ocorreriam a cada 160 anos, em média, caso ainda vivéssemos na temperatura pré-industrial. Gerações nasceriam e morreriam sem nunca vê-los. Nas circunstâncias atuais, essa frequência é cinco vezes maior: os cientistas estimam que junhos assim tendem a ocorrer a cada 35 anos. Se o aquecimento global subir para a marca de 2°C, o intervalo pode diminuir para 17 anos. 

“A crise climática turbinou as queimadas do Pantanal”, concluiu Clair Barnes, pesquisadora do Grantham Institute, do Imperial College de Londres. “À medida que as emissões de combustíveis fósseis aquecem o clima, a planície úmida vai se esquentando, secando e virando um barril de pólvora. Isso significa que pequenos incêndios podem rapidamente se transformar em incêndios devastadores, independentemente de como foram iniciados.”

Bastaram doze dias, este ano, para que o Pantanal batesse o recorde de focos de incêndio já registrados num mês de junho. Àquela altura, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), havia 733 focos. A série histórica, iniciada em 1998, tinha como pior marca até então o ano de 2005, quando o Pantanal sofreu com 435 focos de incêndio. Em 2020, numa seca severa que chamou atenção do mundo, foram contabilizados 406 focos.

A situação em 2024, portanto, não encontra paralelo na história recente. Foi o mês de junho com a temperatura mais alta e o clima mais seco no Pantanal desde que as medições são feitas, segundo o World Weather Attribution. E as queimadas continuam: em apenas cinco dias, agosto superou o número de focos de incêndio registrado no mês inteiro de julho.

“As queimadas deste ano no Pantanal tem o potencial de serem as piores da história. As temperaturas devem ficar ainda mais quentes em agosto e nos meses seguintes, e há um risco considerável de que o fogo queime mais de 3 milhões de hectares [o dobro do que já queimou]”, explica Filippe Santos, pesquisador da Universidade de Évora, em Portugal, e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele está entre os autores do estudo.

As marcações coloridas correspondem a áreas queimadas do Pantanal. Junho, na cor salmão, responde pela maior parte delas

 

O artigo explica que, embora o aquecimento global explique a gravidade das secas recentes no Pantanal, também há fatores locais contribuindo para esse quadro. É o caso do desmatamento, que não apenas torna a região mais seca como facilita o alastramento das queimadas. “No Pantanal”, explicam os pesquisadores, “mudanças no uso e na cobertura da terra, como a derrubada de vegetação natural para pastagem ou agricultura, contribuem para condições mais secas e aumenta a disponibilidade de vegetações inflamáveis”.

Hoje, segundo os cientistas, os humanos causam, direta ou indiretamente, a maioria das queimadas que se vê no Pantanal. Em alguns casos, os incêndios são criminosos; em outros, são facilitados pelo tipo de ocupação humana na região. O avanço da agricultura e do manejo da terra torna o Pantanal mais propício às queimadas. Raios, que têm o potencial de causar incêndios, são responsáveis por apenas 1% dos casos, diz o estudo.

No começo de julho, enquanto as queimadas estampavam o noticiário, o Senado aprovou o projeto que cria a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF), com regras gerais para o controle e uso seguro da queima de vegetação em áreas rurais do Brasil. A lei agora aguarda sanção do presidente Lula. Caso entre em vigor, dará uma nova camada de proteção às terras do Pantanal e de outros biomas que sofrem com incêndios criminosos

A PNMIF é mencionada no estudo do World Weather Attribution como um exemplo positivo de política pública ambiental. “Promover práticas agrícolas sustentáveis ​​e reduzir o desmatamento nos arredores de ecossistemas como a Amazônia e o Cerrado pode ajudar a manter os padrões de chuvas e reduzir a tendência de secagem”, dizem os pesquisadores.

Eles acrescentam, no entanto, que o desastre em curso sublinha a dificuldade do governo brasileiro de coibir práticas ilegais no Pantanal. Por mais excepcional que seja o ano de 2024 do ponto de vista climático, as queimadas estão se repetindo com maior frequência há décadas, e isso tende a se agravar. “É imperativo que as agências governamentais de todos os níveis atuem rapidamente e se preparem para situações cada vez mais críticas, uma vez que as projeções indicam um aumento de tais eventos”, conclui o estudo.

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