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    Os "índios do Panta", numa fotografia tirada em Osasco e obtida pela Polícia Federal. Segundo os investigadores, o grupo criminoso atuava sob o comando de Delvane Lacerda, o Pantera (ou Panta) Foto: Reprodução/Ministério Público do Estado de São Paulo

questões criminais

Ascensão e queda de um cangaceiro do PCC

Como um criminoso baiano passou de pequenos roubos a assaltos a bancos – e acabou morto numa disputa entre grupos rivais do Piauí

Allan de Abreu, do Rio de Janeiro | 13 ago 2024_09h35
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Foi uma madrugada violenta em Guarapuava, no interior do Paraná. Por volta da meia-noite de 17 de abril de 2022, dezessete homens vestindo coletes à prova de bala e portando fuzis saíram às ruas. Dividiram-se em dois grupos: um cercou o batalhão da Polícia Militar da cidade, colocando dois caminhões em chamas nas saídas de veículos, de modo a atravancar o caminho das viaturas; outro invadiu a sede de uma transportadora de valores. Eles planejavam chegar até o cofre, roubar uma fortuna e fugir em disparada.

Não levaram em conta, porém, que havia policiais fora do batalhão naquela noite, cuidando do patrulhamento rotineiro. Ao serem informados do que acontecia no batalhão, esses PMs se organizaram e fecharam os caminhos que levavam para fora da cidade. Os assaltantes, encurralados, desistiram do roubo e partiram para o confronto. Trocaram tiros por três horas com a polícia. Um agente morreu e dois ficaram feridos, além de um morador. Os criminosos escaparam.

Um deles se chamava Fleques Pereira Lacerda. Tinha 38 anos, era baixinho e parrudo. Integrava o Primeiro Comando da Capital (PCC) e, entre os comparsas, ganhou fama por gostar dos assaltos no estilo “novo cangaço”, em que quadrilhas fortemente armadas invadem cidades pequenas e médias, imobilizam a polícia e explodem cofres de bancos ou de transportadoras de valores. “O Fleques gostava de um roubo a banco do cão, meu amigo. Ele era viciado nisso aí, pô. Ele gostava pra porra”, disse Janes Nogueira da Silva, braço direito do assaltante, em uma conversa telefônica captada pela Polícia Federal. Em maio, a PF desbaratou o grupo criminoso, um dos vários que praticam esse tipo de roubo.

Fleques era dono de um pequeno arsenal de metralhadoras e fuzis, com os quais praticava os roubos. O armamento, relatam os investigadores da PF, era adquirido por meio de pelo menos quatro CACs, sigla que designa caçadores, atiradores desportivos e colecionadores. Por lei, esse grupo tem autorização para possuir armas de fogo. Durante o governo Bolsonaro, que flexibilizou as regras para a aquisição de armas, o número de CACs existentes no Brasil saltou de 117,5 mil para 783,4 mil. Parte desses supostos caçadores, atiradores e colecionadores está abastecendo o crime organizado em diferentes estados.

De acordo com a investigação da Polícia Federal, um dos principais fornecedores da quadrilha de Fleques era Otávio Alex Sandro Teodoro de Magalhães. Registrado como CAC em Piracicaba (SP), Magalhães não só vendia armas de alto calibre como treinava o grupo criminoso, diz o inquérito. Ao revistar a casa dele, em maio, a PF apreendeu armas, munição e até granadas de fabricação caseira (a defesa de Magalhães diz que a acusação de que ele vendeu armas para grupos criminosos é “completamente infundada”).

Um ano depois do roubo frustrado em Guarapuava, a quadrilha de Fleques entrou em ação novamente. Dessa vez, mirou uma transportadora de valores em Confresa, uma cidadezinha de 35 mil habitantes em Mato Grosso. De acordo com a apuração da Polícia Federal, o bando investiu 3,4 milhões de reais na operação, incluindo a compra de carros e armas. Fleques, na última hora, não quis participar do roubo. Deu lugar ao amigo Ronildo Alves dos Santos, o Magrelo, outro experiente assaltante do PCC que, segundo Janes da Silva disse em uma conversa interceptada, estava “quebrado”, precisando de dinheiro.

Deu tudo errado. No cofre da transportadora, havia pouco mais de 1 milhão de reais, menos de um terço do investimento da quadrilha. A fuga foi infernal: 320 policiais perseguiram de perto os criminosos pelo interior do Tocantins. Tudo indica que Fleques, embora não tenha participado do roubo, saiu em resgate do amigo nesse momento. “Meu irmão mais três caras caiu na caatinga”, contou o irmão mais velho de Fleques, Delvane Pereira Lacerda, o Pantera, em um diálogo interceptado pela PF. “Nóis não sabe nem o que aconteceu nessa desgrama aí. Falou que o fuzil dele travou. Baguio do carai aí ó, mano. Entendeu? Só por Deus.” O resgate falhou. Magrelo e dezessete comparsas morreram no confronto com a polícia. Dois integrantes do grupo foram presos.

O fracasso em Confresa enfraqueceu a quadrilha. Ainda assim, meses depois, Fleques já planejava um novo assalto, dessa vez em Redenção, cidade no sudeste do Pará. “Eu tô ajeitando um negócio aqui, mano. Lá em Redenção. Tô vendo aqui se vai dar certo dessa semana pra outra”, disse a um subordinado em novembro do ano passado, via WhatsApp.

Não deu tempo. Fleques foi assassinado a tiros enquanto estava dentro de uma barbearia em Osasco, na Grande São Paulo, no dia 2 de dezembro. Sua morte foi o estopim de uma guerra violenta entre dois grupos criminosos do Piauí: os “brancos” e os “marotos”.

 

Os irmãos Delvane e Fleques nasceram em Buritirama, no Oeste baiano, mas passaram a infância e a juventude em Avelino Lopes, uma cidade pobre de 11 mil habitantes no semiárido do Piauí. Cursaram somente o ensino fundamental, e no início dos anos 2000 se mudaram para São Paulo. Foi quando se envolveram com o crime pela primeira vez. Em 2006, foram presos por roubo, em ocorrências distintas: Fleques, dois anos mais novo que o irmão, assaltando uma loja de tintas em Osasco; Delvane, uma loja de roupas em São Paulo. Um dos comparsas de Delvane morreu em confronto com policiais militares, na ocasião. Os dois irmãos acabaram condenados por roubo e porte ilegal de arma de fogo.

Na cadeia, filiaram-se ao PCC e alargaram a teia de contatos no mundo do crime. Delvane escapou da prisão em Bauru (SP) em agosto de 2009, aproveitando uma saída temporária de Dia dos Pais. Fleques foi solto no ano seguinte por decisão judicial. Por volta dessa época, os dois retornaram juntos ao Piauí e fundaram a primeira filial do PCC no estado.

Logo retomaram a rotina de crimes. Na manhã de 26 de outubro de 2015, Fleques e dois comparsas, todos armados, invadiram a agência dos Correios de Santo Inácio, cidade do interior do Piauí. Ao anunciarem o assalto, foram surpreendidos pelo vigilante da agência, que reagiu e matou a tiros um dos ladrões. Fleques e o outro parceiro revidaram, acertando três disparos no agente, que ficou gravemente ferido. Em seguida, fugiram dali de carro. Minutos depois, no entanto, se viram cercados por uma viatura da PM e foram presos.

Fleques ficou detido por três anos no Piauí. Em setembro de 2018, alegando fortes dores abdominais, foi transferido da penitenciária de Teresina para um pronto-socorro. No caminho, driblou a escolta e conseguiu fugir (a facilidade com que driblava a polícia lhe rendeu o apelido de Raposinha entre os assaltantes de banco). Até ser assassinado em Osasco, cinco anos depois, Fleques não voltou a ser preso, embora tenha sido condenado no episódio de Santo Inácio a trinta anos de prisão por tentativa de latrocínio do vigilante.

Delvane teve uma trajetória mais acidentada. Depois de fugir da prisão em Bauru, foi recapturado em junho de 2011 na casa dos pais em Avelino Lopes, onde morava com um documento de identidade falso, em nome de um irmão gêmeo. Os policiais relataram ter encontrado debaixo de sua cama um revólver Taurus calibre 38. Novamente, em 2013, ele conseguiu escapar da prisão e regressou a Osasco. Foi preso mais uma vez em 2014, ao tentar embarcar em um voo no aeroporto de Guarulhos portando documento falso (nos meses em que ficou em liberdade, Delvane foi acusado pelo Ministério Público de participar de um assassinato em Cajamar, na Grande São Paulo. A ação penal tramita em sigilo).

Apesar da extensa ficha criminal, Delvane deixou a prisão em abril de 2017 e passou a cumprir o restante da pena em liberdade. Três anos depois, foi preso em flagrante em Osasco carregando dois tijolos de maconha numa caminhonete. Condenado a sete anos de prisão, teve a pena anulada por uma liminar do ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em fevereiro de 2023. Na visão do ministro, os policiais agiram ilegalmente ao revistar a caminhonete. Com isso, Delvane deixou a prisão mais uma vez.

O inquérito da PF relata que, nessa época, os dois irmãos passaram a investir em crimes diferentes: enquanto Fleques se especializava em assaltar bancos, Delvane traficava drogas. Comprava o quilo da cocaína a 20 mil reais e revendia a 44 mil na Grande São Paulo e na região de Avelino Lopes, onde os integrantes de seu clã eram chamados de “brancos”. A droga era levada da capital paulista ao Sul do Piauí por mulas – isto é, homens e mulheres que transportavam o entorpecente em viagens de ônibus (num áudio obtido pela PF, Delvane contou a um interlocutor que estava “soltando um moleque pra viajar”).

Com o dinheiro do crime, os irmãos Lacerda enriqueceram. Em um período de seis meses, segundo a PF, Janes Nogueira da Silva, braço direito dos irmãos, movimentou 7 milhões de reais em suas contas bancárias. Parte do dinheiro da quadrilha era lavado por meio de uma loja de autopeças em São Paulo que, embora tivesse somente dois funcionários registrados, possuía capital social de 2 milhões de reais, depositados em dinheiro vivo. Fleques comprou automóveis, uma casa em Xique-Xique, no sertão baiano, e tinha um plano de construir cem quitinetes para alugar em São Paulo, tudo em nome de laranjas.

Nos últimos anos, contudo, outro grupo criminoso vem ameaçando o monopólio dos irmãos Lacerda no Sul do Piauí: os “marotos”. Segundo a Polícia Federal, o grupo é comandado por Joabe da Silva Aguiar, também filiado ao PCC. Nascido em Gilbués (PI)  um ano depois de Fleques, Aguiar passou a juventude em Goiânia e, por isso, é conhecido pelo apelido Véio do Goiás. Competia com os “brancos” na prática de crimes brutais. Em abril de 2013, por causa de uma dívida de 3 mil reais, sequestrou um casal que trabalhava para ele vendendo cocaína. Depois de horas de tortura, em que ambos tiveram braços e pernas quebrados e os dois olhos arrancados, eles foram mortos a tiros e enterrados à beira de uma rodovia. Aguiar foi condenado a 49 anos de prisão em 2015, mas, um ano depois, fugiu da cadeia. Continua foragido, capitaneando os “marotos” contra os “brancos” dos Lacerda.

Fleques, à esquerda, abraçado com o irmão Delvane (Foto: Reprodução/Ministério Público do Estado de São Paulo)

 

 

“O Fleques acabou com a cidade, pô. […] Tem matado gente demais no Avelino”, relatou Janes da Silva a uma mulher não identificada, em uma conversa interceptada pela Polícia Federal. Em novembro de 2023, dias antes de ser morto, Fleques ordenou o assassinato de um “maroto” em Curimatá, município vizinho de Avelino Lopes. “Vamo marcar lá pra nóis dar um bote naquele Pablo lá. De carro mesmo. Entendeu?”, ele disse, num áudio de WhatsApp recuperado pela PF. “Vc tá ligado que pode contar comigo sempre, tendeu, amigo / Tou aqui na quebrada [à] disposição pra nós matar lixo”, respondeu Everaldo Ferreira, o Caçador, um dos mais eficientes sicários do bando de Fleques. A emboscada foi montada, mas, como a vítima não estava em casa naquele momento, os criminosos só atearam fogo na residência.

Quando Fleques foi morto, a guerra escalou de vez. Delvane, seu irmão, jurou vingança. “Só vai ver caixão descendo pro Avelino”, escreveu para Janes. Começou a circular nos celulares da quadrilha uma foto dos “índios do Panta” (abreviação de Pantera), todos armados, em um beco na favela do Areião, em Osasco, além de um áudio atribuído ao grupo: “É nóis, Panta. Vamos arregaçar os pilantra. É os índio, mano. Os índio do Panta.”

As mensagens obtidas pela PF mostram que Janes passou a temer não só o grupo de Aguiar, mas também o de Delvane, que sempre fora seu aliado. “Eu digo que Pantera vai fazer uma bagunça no Avelino. Escuta o que eu tô te falando. Nesse Pantera, nem eu confio nele. Nem eu mesmo quero ficar perto dele”, disse a um interlocutor. Ele decidiu, por isso, passar duas semanas longe do radar de Delvane e de Aguiar, escondido em um resort em Olímpia, no interior de São Paulo. Quando soube onde ele iria se hospedar, a Polícia Federal enviou dois agentes até o clube e, com autorização judicial, instalou uma escuta no quarto do hotel. Sem saber que estava sendo monitorado, o ex-braço direito de Fleques falou abertamente de suas próprias atividades criminosas (“eu não mexo mais com negócio de roubo de banco, esses bagulho de querer dar pau em banco”) e negociou a compra de armas (“é da Taurus, né? Quanto é que tá? Mano, queria ver se eu deixava uma duas pistola pros menino lá na chácara e uma [arma calibre] doze”).

Em fevereiro deste ano, a mando de Delvane, Caçador partiu para o ataque contra o grupo de Aguiar. Viajou até São Raimundo Nonato (PI) e durante o Carnaval matou dois jovens. Um deles era Erinelton Pereira de Sousa, o Netinho, antigo aliado dos irmãos Lacerda. Os “brancos” suspeitavam que ele tinha passado para os “marotos” o endereço da barbearia de Osasco  onde Fleques foi morto. Poucos dias depois, outro integrante do bando de Aguiar foi morto e esquartejado em São Raimundo Nonato. Mais quatro pessoas foram assassinadas naquele mês em Avelino Lopes, dois “brancos” e dois “marotos”. A carnificina só cessou quando a Secretaria de Segurança Pública do Piauí reforçou o policiamento na região e prendeu suspeitos pelos homicídios, entre eles Everaldo Pereira, o Caçador. 

Em 3 de abril, Delvane desabafou em um áudio enviado por WhatsApp a um familiar: “Não tô entendendo mais, cara. Faz quatro mês e um dia que meu irmão morreu. Na verdade, eu nem consegui mais matar ninguém. Eu não consegui mais matar ninguém, cara. Eu não consigo fazer nada mais. Na verdade, eu não sei o que tá acontecendo comigo mais. Tenho que sair daqui.” No mês seguinte, ocorreu o último homicídio de que se tem notícia ligado à guerra entre “brancos” e “marotos”, dessa vez em um bar no Ipiranga, em São Paulo.

Dez dias depois, em 21 de maio, a Polícia Federal e o Ministério Público deflagraram a fase ostensiva da investigação contra a quadrilha de Fleques e Delvane. Treze pessoas foram presas, incluindo Janes da Silva e Otávio Magalhães, dono do registro de CAC suspeito de ter fornecido armas para o grupo criminoso. Delvane havia sido preso dois dias antes em Itapeva, no interior paulista, por um motivo prosaico: teve uma discussão acalorada com a esposa, e o porteiro do condomínio, alarmado com os gritos que ouviu, acionou a Polícia Militar. Os policiais entraram no apartamento do casal e encontraram uma pistola escondida dentro da geladeira. Delvane foi preso em flagrante por posse ilegal de arma de fogo.

Dezessete pessoas, incluindo Delvane, Janes e Otávio foram denunciadas pelo Ministério Público por associação criminosa (os dois últimos também respondem a ação penal por lavagem de dinheiro). Todos estão presos preventivamente. Procurada pela piauí, a defesa de Delvane questionou a legalidade das provas obtidas pela Polícia Federal e disse, por meio de nota, que ele “nega veementemente qualquer envolvimento nos crimes que lhe estão sendo imputados”. A advogada Larah Rainov, que atua na defesa de Janes da Silva, afirmou que a renda milionária de seu cliente é de origem legal, “sendo que já foram juntados aos autos vasta documentação comprobatória nesse sentido”. A piauí não conseguiu contato com a defesa de Joabe da Silva Aguiar.

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