CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
Dedo da discórdia
Duas cidades fluminenses brigam por uma montanha
Clarice Cudischevitch | Edição 216, Setembro 2024
Com mais de 100 mil seguidores, a conta “Visite Teresópolis”, no Instagram, exibe imagens turísticas da cidade serrana. Em 20 de julho, sob o título “Feliz dia do amigo”, apareceram lá duas fotos da mesma montanha. Na imagem com a legenda “Teresópolis”, distingue-se uma agulha rochosa que parece um dedo apontando para o céu – é o pico chamado Dedo de Deus. Na foto ao lado, feita de outro ponto de observação, a mesma montanha surge de uma maneira diferente: não se vê o dedo. A legenda é “Guapimimimi” – referência provocativa a uma cidade próxima, Guapimirim.
Também no Instagram, a conta concorrente faz memes provocando Teresópolis. No ano passado, por exemplo, “Visite Guapi”, com pouco menos de 50 mil seguidores, publicou uma montagem em vídeo em que um menino ria incontrolavelmente, com o pico ao fundo. Uma frase explicava o motivo da gargalhada: “Eu chorando de rir vendo Ladrãosópolis tentando roubar o nosso Dedo de Deus e mentindo para os turistas.”
Há décadas, as cidades de Terê e Guapi – como são carinhosamente chamadas pelos habitantes – disputam a posse do pico de 1 692 metros, marco do montanhismo nacional. O Dedo de Deus é a montanha mais emblemática da Serra dos Órgãos: sua silhueta aparece nas bandeiras não só de Guapimirim e Teresópolis, mas também de um terceiro município fluminense, Magé, e na do próprio estado do Rio de Janeiro.
Nos mapas oficiais, não há discussão: a montanha fica em Guapimirim. Assim reconhecem o IBGE e o ICMBio, que administra o Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Parnaso). Os teresopolitanos alegam, no entanto, que só de sua cidade é possível admirar o dedo pétreo que dá nome ao pico (parte dele pode ser vista do Centro de Guapimirim, mas de um ângulo desfavorável).
A discórdia histórica, que já pautou reportagens na imprensa local, hoje se multiplica na internet. E não só nas redes sociais.
“Há anos que esse artigo é vítima de intermináveis guerras de edições, sempre com essa briga sobre a qual município o monumento pertence”, escreveu, impaciente, o administrador da Wikipédia “Albertoleoncio”, na página de discussão do verbete “Dedo de Deus”, em outubro de 2023. A bronca não deteve a guerra. Até agosto de 2024, a página do pico na enciclopédia colaborativa somava mais de duzentas edições. Usuários empenhados mudam sua localização ora para Guapimirim, ora para Teresópolis. Os mais conciliadores tentam indicar territórios neutros, como a Serra dos Órgãos.
A guerra de edições na Wikipédia abarca outro ponto estratégico para o turismo: o Mirante do Soberbo, de onde se tem a melhor vista do Dedo de Deus. “O Mirante do Soberbo fica no município de Guapimirim, mas insistentemente alteram [o verbete] com informações não verdadeiras, dizendo que o mesmo fica em Teresópolis, município vizinho”, protestou, há dois anos, um usuário da Wikipédia chamado Rafael Coelho, apaixonado defensor dos direitos de Guapimirim sobre as montanhas mais visitadas por turistas e montanhistas.
Guapimiriense de 38 anos, Coelho também é o administrador do site chamado “Visite Guapi”, que se desdobra na conta de Instagram. Ele fez mestrado em turismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), com uma dissertação sobre os novos significados que Guapimirim adquiriu na narrativa turística. “Existe um processo recente em Guapi de redescobrimento de uma identidade territorial muito forte”, diz.
A cidade se emancipou de Magé em 1990 – quase um século depois de Teresópolis, que se desmembrou do mesmo município em 1891. Território originalmente indígena, Guapimirim preservou o nome em tupi, que significa “rio ou nascente pequena dos aguapés”. Localizado ao pé da serra, ainda na Baixada Fluminense, é vista como a irmã pobre da vizinha mais alta e mais rica, que no Segundo Reinado caiu nas graças da corte – Teresópolis foi batizada assim em homenagem à imperatriz Teresa Cristina, mulher de dom Pedro II.
Há uma diferença econômica significativa entre as duas cidades. Teresópolis tem um PIB per capita de 31,8 mil reais, enquanto o de Guapimirim é de 21,9 mil reais. “Quando era pequeno e me perguntavam onde eu morava, respondia ‘Teresópolis’ porque ninguém conhecia Guapi. Era como morar na roça”, diz Coelho. “Se as pessoas não nos conhecem, parece que não existimos.” Foi para divulgar a cidade que ele criou a página “Visite Guapi”, em 2015. No mesmo ano, abriu uma agência de turismo. Agora, trabalha em um livro sobre a história da cidade.
O site apresenta os atrativos de Guapimirim, cujo território abarca outras montanhas conhecidas da Serra dos Órgãos, como Escalavrado e Agulha do Diabo (no entanto, é Teresópolis que se consagrou como a “capital nacional do montanhismo”). Em sua campanha de promoção do torrão natal, Coelho pediu que o site Tripadvisor mudasse a localização das montanhas mais visitadas para Guapimirim, e foi atendido. Ele conta que só passou a apreciar a cidade depois de uma longa temporada no exterior: “Vi o Taj Mahal, a Muralha da China, o Deserto do Saara. Ao voltar, olhei aquela serra e achei o lugar mais lindo do mundo.”
Na internet, a batalha entre Terê e Guapi está cada vez mais grosseira, lamenta Coelho. “O que vem de algumas pessoas de Teresópolis é muito pesado, tipo: ‘A gente dá descarga em Terê e o esgoto cai em Guapi.’”
O administrador da conta “Visite Teresópolis” – que preferiu não ser identificado na reportagem – concorda. Diz que tem recebido “algumas ameaças de haters”, e por isso decidiu dar uma pausa nas provocações (embora a conta tenha publicado em agosto memes sobre a cidade vizinha).
Da perspectiva de Guapimirim, a querela em torno do pico vai além das provocações no Instagram. “Não é só uma montanha. Estamos falando de senso de pertencimento”, afirma Coelho.
Isso é visível em todo o município, do portal de entrada – onde se lê “cidade do Dedo de Deus” – à via principal, que se chama “Avenida Dedo de Deus”. O pico ilustra banners do comércio local, desde imobiliárias até depósitos de bebidas. E o vendedor de água de coco no Mirante do Soberbo, a poucos metros da estátua de Teresa Cristina, quando perguntado “Onde estamos?”, responde com orgulho: “Aqui é Guapimirim.”
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