Rios voadores na floresta amazônica Foto: Eduardo Rizzo
Segue o seco
Pesquisa mostra que desmatamento da floresta amazônica torna mais escassos os rios voadores, diminui a quantidade de chuvas e põe em risco modelo hidrelétrico do país
Omamari a é como os povos ianomâmis chamam o espírito do Sol. Quando a floresta é incendiada, eles acreditam que a entidade pousa os pés na copa de árvores e pisoteia as águas que irrigam as colinas, as montanhas e as fazendas de onde vem o fogo, produzindo assim as ondas intensas de calor. “Por isso que todos os xamãs trabalham juntos durante esse tempo (de seca). Chamamos a chuva. Nossos espíritos lançaram jorros d’água sobre as chamas e seus ventos no ataque à fumaça”, escreve o xamã Davi Kopenawa em um dos capítulos do livro O Espírito da Floresta, feito em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert.
A versão científica da crença ianomâmi tem nome: rios voadores. São correntes de ar que partem da Amazônia, margeiam o Leste da Cordilheira dos Andes e transportam umidade para boa parte do Brasil. É o que garante a vazão dos rios e, consequentemente, a irrigação das plantações. Mas isso só acontece, claro, se existirem árvores no caminho. Elas formam um corredor que recarrega essas correntes de ar com umidade e permite a chegada da água a milhares de quilômetros da floresta.
Ao passar por uma área desmatada, essas correntes de ar perdem umidade – já que não têm o corredor formado pelas florestas – e a força das chuvas no trajeto.
Em tempos de seca e queimadas, esses rios voadores secam e se transformam em rios de fumaça. Como se de fato alguém pisoteasse uma mangueira hídrica que move o país. No caso literalmente, já que a hidroeletricidade, cada vez mais ameaçada pela falta de chuvas, é a principal fonte de geração do sistema elétrico brasileiro (60,2% da geração total em 2023).
Nada menos do que 17 das 20 hidrelétricas com maior capacidade no Brasil estão no caminho dos rios voadores, e o impacto da devastação já foi cientificamente mensurado em duas delas. É o que aponta um estudo do projeto Amazônia 2030, uma iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano sustentável para a maior floresta tropical do planeta, e do Climate Policy Initiative (CPI) da PUC-Rio. Intitulada (Des)matando as hidrelétricas: a ameaça do desmatamento na Amazônia para a energia do Brasil, a pesquisa parte da análise de dois casos para explicar por que a água não está chegando aos reservatórios. O relatório contou com apoio financeiro de Instituto Clima e Sociedade (iCS), Itaúsa e Norway’s International Climate and Forest Initiative (NICFI).
Para calcular a influência da floresta na formação dos rios voadores e seu impacto nas usinas hidrelétricas, o estudo toma como base o desmatamento de aproximadamente 690 mil km², acumulado entre 1985 e 2020, no bioma Amazônia. A partir deste dado, os pesquisadores simularam um cenário sem esse nível de desmatamento para estimar o volume de chuva ausente e os respectivos prejuízos.
O primeiro exemplo é a Usina Hidrelétrica Teles Pires, localizada entre os estados de Mato Grosso e Pará. Com início de operação em 2015, ela tem potência de 1.820 megawatts. A unidade já opera todos os meses com perdas entre 2,5% e 10% como resultado do desmatamento e da falta de chuvas. Isso significa uma redução de 118 milhões de reais de sua receita anual e diminuição da oferta de energia para, ao menos, 330 mil pessoas.
Outros exemplos estudados são três usinas da Bacia do Paraná, entre Goiás e Mato Grosso do Sul: Salto, Salto do Rio Verdinho e São Domingos, todas com potência bem inferior (116 mw, 93 mw e 48 mw, respectivamente) à de Teles Pires. De acordo com a pesquisa, elas foram escolhidas não só pela relevância da região na oferta de eletricidade ao país, mas porque têm pouca capacidade de armazenamento de água, o que permite observar o efeito direto da vazão do rio nas instalações. Constatou-se que, entre 2000 e 2022, as perdas de geração de energia tiveram média de 3% e queda de 10% do lucro nas três hidrelétricas, mesmo estando a quilômetros da floresta tropical e do cenário de desmatamento.
As consequências desse esvaziamento são drásticas, a começar pelo bolso do consumidor, que tende a conviver com tarifas cada vez mais altas caso a geração hídrica entre em bandeiras vermelhas devido à estiagem ou – pior – seja substituída por termeletricidade, com severo impacto ambiental da energia produzida a partir de recursos fósseis.
A partir dos dois casos estudados, é possível concluir que o desmatamento na floresta amazônica pode já ter reduzido em até 10% a capacidade de geração de energia no Brasil. “É muito assustador pensar que o desmatamento na Amazônia causa efeito na Bacia do Paraná, a quilômetros dali. Mas o mecanismo é muito claro”, explica Gustavo R. S. Pinto, analista sênior do Climate Policy Initiative (CPI) da PUC-Rio, que assina o relatório com os pesquisadores João Arbache, Luiza Antonaccio e Joana Chiavari.
De fato, o estudo praticamente desenha o fenômeno para quem ainda não entendeu. A começar pelas empresas do setor elétrico, que geralmente concentram as ações sociais nas comunidades do entorno de sua área de atuação, e não no combate ao desmatamento em florestas distantes. O pesquisador classifica esse mapeamento do caminho da água até as usinas como um grande alerta. Mas falta sensibilizar essas companhias. “Poucos dão atenção a questões que acontecem fora da própria bacia hidrográfica. Desconheço discussões em fóruns do setor para discutir o que acontece a mil quilômetros de distância…”
Isso acontece, segundo ele, porque, até pouco tempo, o impacto do desmatamento nos rios voadores não tinha a materialidade que tem hoje. Precisou a fumaça vinda da floresta fechar o céu e provocar doenças respiratórias em São Paulo para que o fenômeno fosse compreendido – e sentido na pele, além do bolso.
Gustavo Pinto explica que a seca dos rios voadores não necessariamente está acoplada à crise das mudanças climáticas. “Mesmo se não houvesse um fenômeno global, o desmatamento estaria afetando a geração de energia. Aquela árvore que ia evaporar a água deixa de existir, e as chuvas não são transportadas.”
O estudo aponta saídas para evitar o colapso. Identificar as categorias fundiárias das áreas de maior interesse das usinas é uma delas. No estudo, elas estão divididas em cinco segmentos: Terras Indígenas (TIs); Unidades de Conservação (UCs); assentamentos da reforma agrária; florestas públicas não destinadas e imóveis privados. Com exceção dos imóveis privados, todas as demais categorias são responsabilidade do poder público. Desta forma, garante a pesquisa, é importante que entidades reguladoras e forças de segurança, como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), Polícias Federal e estaduais, Exército e Força Nacional de Segurança Pública, atuem contra os desmatamentos ilegais.
No caso da Usina Hidrelétrica de Teles Pires, a principal categoria fundiária é a de terras indígenas de etnias como Kayabi, Munduruku e Apiaká. Assim como em outras reservas indígenas, está também sujeita a invasões ilegais de terceiros e desmatamento. O resultado: menos chuva, menos água em reservatório, menos energia limpa e barata. Assim, os pesquisadores reivindicam “atividades de monitoramento e fiscalização pelo poder público para a proteção da floresta”. Ressaltam também que, como as TIs são as áreas mais bem conservadas, “os indígenas devem ser beneficiados por programas de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e doações para garantir o seu modo de vida e reprodução cultural”.
“Essas florestas estão preservadas há milênios. As terras indígenas preservadas prestam um serviço socioeconômico muito importante ao país, mas discussões do tipo no Congresso, por exemplo, praticamente não existem. Imagina como seria a discussão sobre a defesa dos povos indígenas se um representante do tamanho das empresas do setor elétrico sentasse na mesa agora para discutir o que podemos fazer juntos.”. Em setembro do ano passado, o Senado aprovou, em votação relâmpago, o marco temporal, que determina que as terras indígenas devem estar restritas às áreas ocupadas pelos povos na promulgação da Constituição de 1988. Organizações indígenas discordam da tese e dizem que o marco vai inviabilizar novas demarcações. O tema está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal.
Já na Bacia do Paraná a categoria fundiária mais relevante são os imóveis privados, em tese mais distantes do alcance do poder público. Ainda assim há o que fazer. O estudo sugere, por exemplo, linhas de financiamento especiais para agricultura sustentável, incluindo manejo de pastagens, sistemas agroflorestais e integração lavoura-pecuária-floresta nessas áreas. “A pecuária pode ser relevante e produtiva sem precisar desmatar. A escolha é muito clara. A falta de chuva vai afetar esses locais também”, alerta Gustavo Pinto.
O especialista lembra que, em um contexto de transição energética, uma das vantagens comparativas do Brasil frente ao resto do mundo é justamente a capacidade de geração de energia renovável – como se aprende na escola desde cedo. “Indústrias podem querer vir pra cá porque aqui se produz de maneira limpa. Graças aos rios voadores. Sem essa matriz, deixamos de ser atrativos para investimentos.”
Segundo ele, não é impensável um cenário em que as usinas hidrelétricas se tornem obsoletas porque simplesmente não têm mais água para gerar energia. “É um grande risco.”
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