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    "A nossa geração pensava politicamente o tempo inteiro, era um pensamento político constante. A política nos unia, daí nasceu o meu interesse em fazer esse tipo de filmes, encontrar certo tipo de pessoas que se casassem comigo do ponto de vista das ideias", disse Farkas, num debate em 2001 Foto: Reprodução/Canal Thomaz Farkas

questões cinematográficas

Thomaz Farkas, cineasta

Algumas palavras em seu centenário

Eduardo Escorel | 23 out 2024_09h00
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É celebrado este ano o centenário de nascimento de Thomaz Farkas – fotógrafo, empresário e cineasta, falecido em 2011, ao qual é dedicada a exposição Thomaz Farkas, todomundo, inaugurada em 19 de outubro no IMS Paulista, com curadoria de Juliano Gomes, Rosely Nakagawa e Sergio Burgi.

Húngaro de nascimento, Farkas se dedicou à fotografia a partir da década de 1930, fez ao menos duas incursões no cinema e, após ter se naturalizado brasileiro, em 1949, assumiu nos anos 1960 a direção da Fotoptica, empresa fundada em 1920 por seu pai, Desidério Farkas.

Depois de realizar o curta-metragem Estudos, em 1950, com o pintor Luiz Andreatini e a colaboração do crítico Rubem Biáfora, Farkas filmou, em 1954, a apresentação de Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba no Parque Ibirapuera (filmagem inédita até 2006, quando foi editada no curta-metragem dirigido por Farkas e Ricardo Dias). Em 1965, produziu três curtas-metragens e um média-metragem. Atuou como codiretor de fotografia em três deles e os quatro foram reunidos no filme Brasil Verdade, lançado em 1968.

Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, Nossa Escola de Samba, de Manuel Horácio Gimenez, Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla, e Viramundo, de Geraldo Sarno, exibidos separadamente, a princípio, em festivais, tratam de temas típicos das visões do Brasil na época – cangaço, samba e futebol –, enquanto o filme de Geraldo aborda migração interna e religiosidade, questões sem a mesma proeminência no âmbito audiovisual naquele momento. Embora tratassem, em parte, de temas estereotipados, todos pretendiam se contrapor à representação visual derivada da ideologia dominante no país a partir da instauração da ditadura em 1º de abril de 1964.

No debate por ocasião do 6º Festival É Tudo Verdade, em 2001, Farkas perguntou: “Por que a gente entrou nessa? Por que a gente fez isso? Vocês podem se lembrar que a geração nossa pensava politicamente o tempo inteiro, era um pensamento político constante. A política nos unia, daí nasceu o meu interesse em fazer esse tipo de filmes, encontrar certo tipo de pessoas que se casassem comigo do ponto de vista das ideias.”

Segundo Capovilla afirmou no texto Feliz Encontro, publicado em 1997 no catálogo da retrospectiva A Caravana Farkas – Documentários – 1964-1980, esses filmes resultaram “do encontro com Thomaz Farkas de cineastas desarvorados pelo golpe de 64. A motivação principal no início, do ponto de vista do Thomaz, era dar trabalho a um bando de cineastas desempregados e perseguidos, pois não há outra explicação para o fato de realizar tal projeto no clima conturbado e inseguro de implantação de uma ditadura”.

Chamada, inicialmente, de Condição Brasileira, a série de dezoito curtas-metragens e um média-metragem, filmada entre 1967 e 1969, teve origem no projeto Nordeste, encaminhado por Geraldo Sarno, em 1966, ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Conforme relato de 2006, publicado em Cadernos do Sertão pelo Núcleo de Cinema e Audiovisual-NAU, Geraldo propôs “flagrar pela imagem alguma coisa daquele mundo. O que se percebia é que havia um mundo em transformação, via-se com clareza que aquele processo da cultura popular estava em transformação… a gente precisava fazer alguma coisa até para preservar a imagem de certas formas [culturais]”. “Qual é o objetivo?”, Geraldo pergunta. “O objetivo”, ele responde, “é pesquisar. O objetivo é didático, é guardar, preservar, na imagem e no som. Na verdade, acho que desejava fazer uma enciclopédia audiovisual da cultura popular nordestina, uma coisa semelhante ao Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo.

Sidnei Paiva Lopes, Paulo Gil Soares, Lauro Escorel e Affonso Beato, em fotografia feita por Farkas durante uma das filmagens de Condição Brasileira, em 1969

 

Da viagem feita ao Nordeste, em janeiro de 1967, por Farkas, Geraldo e Paulo Rufino, resultam quatro filmes, e, na viagem seguinte, feita um ano depois, foi filmado Dramática popular, quinto curta-metragem dessa nova série. O próprio Geraldo admitiu que o “formato dos filminhos é um formato sem nenhuma busca específica de inovação, eles assumem o modelo dos filmes de dez minutos da época, com narração explicativa. Um ou outro foge desse sistema e tem alguma coisa de criação…”. Ainda assim, ele declara que “a intenção era essa mesma, documentar com urgência algumas formas que para [ele] iam se perder, iam se transformar e não seriam mais recuperadas”.

Percebe-se a intenção, da parte de Geraldo, de fazer filmes de resistência à padronização cultural resultante de transformações sociais que iriam se acentuar. À medida que o mercado consumidor nacional se integrava, através das transmissões em rede nacional de televisão, ele previa que “…esse mercado ia destruir as formas artesanais e culturais”.

Quatro dos curtas-metragens de Condição Brasileira foram exibidos pela primeira vez no Festival do Jornal do Brasil, em março de 1971: Casa de Farinha, Visão de Juazeiro, Homem de Couro e Rastejador. Outros cinco filmes da série, reunidos no longa-metragem Herança do Nordeste, foram lançados em 1972 de forma precária, como havia ocorrido com Brasil Verdade.

Depois disso, durante cerca de vinte anos, pouco se viu ou ouviu falar dos curtas e médias-metragens que integram a série Condição Brasileira. Nesse período em que foram sendo esquecidos, um dos filmes de ficção de maior sucesso foi Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues, lançado em 1979. Realizado com premissa básica semelhante à do projeto Nordeste, formulado em 1966 por Geraldo, Bye Bye Brasil conta as peripécias da caravana Rolidei ao cruzar o país fazendo espetáculos. “Um país em transe, nas palavras de Diegues, “onde convivem no mesmo espaço/tempo o moderno e o arcaico, a riqueza e a pobreza, a selva e a poluição, a comédia e a tragédia, numa situação-limite que pode estar anunciando a civilização do século XXI.”

Para celebrar os setenta anos de Farkas, o Museu da Imagem do Som de São Paulo (MIS-SP) promoveu, em 1994, a mostra O cinema cultural paulista, na qual foram exibidos os filmes produzidos a partir de 1964. A pedido de Sérgio Muniz, escrevi naquela ocasião um texto curto para o folheto do evento, ao qual dei o título A Caravana Farkas, referência explícita à célebre Caravana Rolidei de Bye Bye Brasil, uma vez que tanto na expedição para filmar os documentários da série Condição Brasileira, na segunda metade da década de 1960, quanto dez anos depois, na caravana imaginária de Diegues, um dos propósitos era retratar práticas culturais em vias de extinção.

O nome A Caravana Farkas foi adotado de forma ampla, geral e irrestrita, a ponto de provocar certo ressentimento por parecer atribuir a paternidade dos filmes apenas ao Farkas, o que nunca foi minha intenção.

O texto que escrevi com esse título começa assim: “Antes da Caravana Rolidei que Carlos Diegues consagrou em Bye Bye Brasil, houve outra que partiu de São Paulo para esquadrinhar o Nordeste. Foi a Caravana Farkas, fruto da generosidade de Thomaz Farkas.” E esse é o final: “[…] Farkas, mentor e financiador do projeto, merece nosso reconhecimento por sua realização. Quanto a mim, serei sempre devedor a ele e ao Geraldo pela oportunidade de dirigir Visão de Juazeiro, meu primeiro documentário solo, filmado em 1969.”

A partir de 1971, Farkas produziu curtas-metragens dirigidos por Sérgio Muniz, Guido Araújo e Roberto Duarte, o longa-metragem O Picapau Amarelo (1974), de Geraldo, além de outros três dos quais ele mesmo foi também o diretor: Paraíso, Juarez (1971), Todomundo (1978-1980) e Hermeto Campeão (1981).

O capítulo seguinte dessa jornada chegou a parecer que seria o final. Teve lugar doze anos depois da retrospectiva realizada no CCBB do Rio de Janeiro, com o lançamento, em 2009, da caixa Projeto Thomaz Farkas, contendo sete DVDs, reunindo os filmes documentários que ele produziu e realizou. Esgotada a primeira edição de mil exemplares, em vista da crise da mídia física, não há previsão de que volte a ser editada. Note-se que alguns dos filmes estão reunidos com o título Geraldo Sarno: enciclopédia audiovisual de cultura popular.

Eis, porém, que, em 2017, os 37 filmes produzidos por Farkas renascem. Desde então, encontram-se disponíveis online no Canal Thomaz Farkas. Terão sido eternizados?

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