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    Rê Bordosa, um dos principais personagens de Angeli, está completando 40 anos

evento

Na banheira com a Rê Bordosa

Festa em São Paulo celebra os quarenta anos da maior criação de Angeli, autor da primeira capa da piauí e de muitos personagens inesquecíveis

Fernando Beagá | 29 nov 2024_08h22
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Nos últimos meses, o grupo de WhatsApp “cavalaria” ferveu. Nele estão alguns dos maiores cartunistas do Brasil, como Orlando Pedroso, Adão Iturrusgarai e Laerte Coutinho, mobilizados pelo evento 40 Anos de Rê Bordosa A Festa da Porraloca, que acontece amanhã, 30 de novembro, no MIS Experience, em São Paulo. Trata-se de uma grande homenagem ao cartunista Angeli e à sua personagem famosa nos anos 1980 por simbolizar a liberdade das mulheres em um contexto pós-ditadura.

Em uma entrevista à revista Caros Amigos, em 2001, Angeli falou sobre a personalidade de Rê Bordosa: “Conhaque misturado com cerveja, vodca digerida com cocaína, sexo com sentimento de culpa. (…) Era bonitinha quando menina, saborosa na adolescência e hoje usa meias para esconder as primeiras estrias. Mas, mesmo com tudo isso, não se sente diferente das outras mulheres, afinal ir sozinha a um bar dá tanto trabalho quanto criar um filho”.

Além de ser um tributo ao cartunista, é uma oportunidade de levantar recursos para os cuidados com sua saúde. Aos 68 anos, Angeli tem uma condição neurodegenerativa progressiva que altera a capacidade de comunicação verbal e escrita. Os primeiros sintomas apareceram em 2017. “Todo mundo começou a sacar que viriam problemas pela frente. Custos com remédios, fisioterapia, cuidadores”, conta o ilustrador Orlando Pedroso, contemporâneo de Angeli na Folha de S.Paulo

A lista de atrações da Festa da Porraloca remete à relação do cartunista e da personagem com a cena punk paulistana, com shows de Mário Bortolotto e a banda Saco de Ratos, e Fernanda D’Umbra e a Fábrica de Animais, além dos grupos  Os Pitais e A Baderna Baila. Os fãs ainda verão no palco uma performance com direção de Hugo Possolo, um dos fundadores do grupo teatral Parlapatões, em que as atrizes interpretam a “mulher esponja” em suas três fases. Camila Turim fará a Rê Bordosa dos bares, em seu auge junkie; Paula Cohen viverá momentos reflexivos, de ressaca; e Grace Gianoukas mostrará a reta final da personagem, que morre após se casar com o barman Juvenal, um tipo machista que corta suas asas. A morte da personagem foi registrada em uma das capas mais célebres da Ilustrada, caderno de cultura da Folha de S.Paulo, em 1987. Ela explode de tédio na página, quando Angeli decidiu que não queria se tornar refém do sucesso.

“Sempre fui completamente apaixonada pela Rê Bordosa. Ela é carismática, fascinante, uma referência de texto de comédia. Imagine minha alegria quando o Angeli me convidou para fazer a voz dela”, diz Gianoukas, que dublou a personagem no curta Dossiê Rê Bordosa, na série Angeli The Killer e no filme Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente. Quando surgiu a possibilidade de subir ao palco da festa, topou na hora. “O Angeli é a tradução do urbano, do desespero coletivo, do monte de excluídos por uma sociedade hipócrita.”

Além das apresentações e de um bar à altura da homenageada, haverá uma loja no MIS Experience com produtos criados exclusivamente para a festa, como a camiseta com a estampa Livre como Rê Bordosa, da marca Puta Peita. Livros, bonecos e o pingente da Santa Rê (um gracejo com as medalhinhas religiosas) são alguns dos artigos disponíveis. O evento se completa com uma banheira de verdade, onde a personagem estará deitada e ganhará a companhia de quem quiser tirar uma foto.

Angeli anunciou a aposentadoria em 2022, com o avanço das limitações causadas pela doença neurodegenerativa. Grande parte do acervo de sua obra (mais de 2 mil itens) está no Instituto Moreira Salles (IMS), disponível para consulta pública.

Na piauí, ele deixou sua marca como autor da capa da primeira edição da revista. Seu pinguim com boina guevarista se tornou o mascote da publicação e ilustrou todas as capas de aniversário (em outubro) de 2007 a 2020 (com exceção de 2019). 

Outras iniciativas deverão surgir para celebrar a arte de Angeli. Serão oportunidades para novos públicos conhecerem seus personagens, segundo Carolina Guaycuru, artista gráfica e esposa do cartunista. “A arte dele é atemporal. Faremos o que pudermos para que se perpetue. Seus quadrinhos formaram gerações e quebraram paradigmas. O Angeli percebe o que estamos fazendo e acredito que esteja feliz com isso.”

Orlando Pedroso conheceu Angeli na redação da Folha de S.Paulo em 1979. “Eu tive a sorte de ter essa escola, com todos esses caras lá: Glauco [Villas Boas], Laerte… Faziam uma charge na hora, deixavam com o Angeli, que fechava a página, e iam para o bar. Depois de um período no exterior, voltei a encontrá-lo principalmente em eventos. Mas era uma época em que ele já preferia ficar no hotel, trabalhando.” Uma fase em que o Angeli boêmio já havia dado lugar à sua versão workaholic. “Eu não saio da prancheta. É uma obsessão”, reconheceu o próprio no documentário Angeli 24 Horas (2010), de Beth Formaggini. 

Pedroso vai à casa do amigo com frequência — e faz as vezes de cicerone, acompanhando outras visitas. Para o ilustrador, quando Angeli voltou a produzir charges nos anos 1990, depois de um período dedicado exclusivamente às tiras, provocou uma revolução no meio. “Ele virou um filósofo, encontrou outra forma de encarar o humor político, com um acabamento impressionante no desenho. Perto dele, só o Ziraldo conseguiu essa sofisticação.”

Adão Iturrusgarai, o “quarto elemento” de Los 3 Amigos (sucesso do trio Angeli, Glauco e Laerte nascido na revista Chiclete com Banana, nos anos 1980, também publicado nas tiras da Folha de S.Paulo), hoje mora na Argentina, mas participou ativamente das conversas sobre a festa. Em outubro do ano passado, visitou Angeli. “Foi emocionante. Tínhamos um jeito de falar, com vozes de personagens que eram nossos códigos. Teve um flash, um momento ali, que ele me reconheceu”, lembra Adão.

Angeli costumava chamar Adão de “meu filho”. “Ele puxava a orelha e dizia: ‘Você tem que ser mais engraçado, isso aí está uma merda!’ Doía, mas era uma crítica.” O criador da personagem Aline, tira publicada na Folha de S.Paulo, na década de 1990 e afeita à liberdade sexual tal qual Rê Bordosa, afirma que o amigo foi um dos maiores artistas brasileiros do século XX. “Se jogarem em uma nave espacial umas coisas icônicas, como discos dos Beatles, têm que estar ali as revistas do Angeli.”

A cartunista Laerte também costuma visitar Angeli. Não tem certeza se ele a reconhece. “Mas é sempre uma boa notícia quando ele dá sinais ou fala.” Angeli sempre demonstrou grande admiração pela colega e chegou a dizer que, na hora de finalizar uma tira, sempre pensava “o que Laerte faria aqui?”, pois sabia “entortar mais uma ideia”. A criadora de Piratas do Tietê devolve a reverência. “O Angeli é um monstro. Ele, sozinho, criou um Pasquim para a gente. Ele foi um movimento, tinha uma energia de sacar a realidade”. A revista Chiclete com Banana, com seu humor transgressor que soube mirar no comportamento em tempos de hegemonia da crítica política — o que configurava outra poderosa vertente política —, chegou a ter edições com tiragem superior a 100 mil exemplares. 

Companheira nos últimos trinta anos, Guaycuru diz que Angeli “consegue ser feliz, fazer piada, reconhecer uma música”. “Ele tem uma maneira de se expressar que é dele, no tempo dele”, descreve.

Ela está à frente do evento, em parceria com a diretora de criação Christine Caterina, que já havia organizado no ano passado uma festa em torno de Bob Cuspe, outro punk famoso criado por Angeli.

Bob Cuspe foi objeto de estudo do trabalho de conclusão do curso de comunicação social de Caterina, na Faap, em 1992. No processo de pesquisa, ela conheceu Angeli, generoso e colaborativo. Estava diante de um ídolo, que anos depois se tornaria seu vizinho e amigo. Sua agência, a Fresh People, tem um time 100% feminino dedicado à celebração. “Todas as mulheres para quem falei sobre a celebração se emocionaram, porque a Rê Bordosa realmente mexeu com elas naquela época, pela coragem. E precisamos apresentá-la às novas gerações. Tenho certeza de que essas meninas empoderadas de hoje irão se identificar com ela”, diz Caterina.

“40 Anos de Rê Bordosa A Festa da Porraloca”
30 de novembro de 2024, sábado, das 16h às 21h
MIS Experience, na rua Cenno Sbrighi, 250, Água Branca, São Paulo

Ingressos neste link: R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia)

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