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    Além de emocionante, A História de Souleymane demonstra ser possível fazer cinema de excelência com meios modestos, equipe técnica pequena e elenco não profissional Crédito: Divulgação

questões cinematográficas

Odisseia em busca de cidadania

Vida atroz em Paris e dois adendos

Eduardo Escorel | 04 dez 2024_09h30
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Os termos da mensagem de Walter Lima Jr., recebida em 20 de novembro às 06h27, eram inequívocos: “Este filme emocionante com direção de Boris Lojkine é o melhor de todos os filmes apresentados no Festival Varilux de Cinema Francês!” Acima do texto, o título original – L’Histoire de Souleymane – estava superposto à fotografia de um rapaz de olhar perdido com um gorro de lã azul na cabeça, fone branco sem fio no ouvido direito, alça de mochila no ombro esquerdo, usando casaco com capuz de tecido sintético, também azul, deixando entrever por baixo agasalho mais leve, vermelho, com zíper no pescoço.

O 15º Festival Varilux de Cinema Francês, realizado no Rio de Janeiro a partir de 7 de novembro, terminava naquele dia, mas haveria uma sessão de A História de Souleymane no fim da tarde. Vindo de quem veio, segui a indicação e fui assistir ao filme em uma sala lotada. Valeu a pena – saí do cinema com aquela agradável sensação de bem-estar, cada vez mais rara, que se pode ter após ver algo magnífico.

Além de emocionante, conforme Walter escreveu, o filme de Lojkine possui outros méritos. Um dos principais é demonstrar de modo inequívoco ser possível fazer cinema de excelência com meios modestos, equipe técnica pequena e elenco não profissional. Além disso, tão ou mais importante é tratar de questão social contemporânea de extrema gravidade em uma capital específica, mas semelhante à existente em inúmeras metrópoles mundo afora.

Com linguagem realista e estilo documental, A História de Souleymane acompanha situações vividas nas ruas de Paris, durante dois dias, por Souleymane Sangaré (Abou Sangaré), guineense que sobrevive em condições difíceis, fazendo entregas de bicicleta enquanto se prepara para a entrevista da qual dependerá a resposta positiva ou negativa ao seu pedido de asilo.

Na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes deste ano, A História de Souleymane recebeu o Prêmio do Júri e Sangaré ganhou o prêmio de Melhor Ator. Mecânico profissional de 23 anos, morando há seis anos em Amiens, no Norte da França, durante o Festival ele aguardava, como o personagem que interpreta no filme, a resposta ao seu próprio pedido de asilo após três tentativas frustradas.

Lojkine capta com maestria o que ele chamou em declaração ao Le Monde de “o ritmo frenético das entregas”. O trabalho de Souleymane é uma gincana diária na qual precisa superar sucessivos obstáculos. Onipresente, porém, é a preparação para a entrevista decisiva – documentos falsos a obter e biografia forjada para decorar –, da qual dependerá para conseguir legalizar sua situação no país.

Crônica do árduo cotidiano do imigrante para viver e trabalhar na França, a estrutura narrativa circular de A História de Souleymane tem início e termina com o mesmo encontro crucial para legalizar sua estadia, sequência que abrange, ao todo, cerca de 20% dos 92 minutos de duração do filme, sem contar os créditos finais.

No prólogo de dois minutos, primeiro o protagonista está na fila, aguardando a vez de apresentar sua documentação e, em seguida, encontra-se sentado na sala de espera. Após tirar o casaco e limpar o punho da camisa com saliva enquanto outros são chamados, ouve-se uma voz feminina em off dizer: “Sr. Souleymane Sangaré.” Ele responde “sim” e segue uma mulher por um corredor até haver um fade-out e o título L’Histoire de Souleymane surgir em letras brancas sobre fundo preto.

Retomada após 72 minutos do filme com dois planos do prólogo – Souleymane sentado na sala de espera tirando o casaco e, depois, seguindo a mulher pelo corredor –, a sequência prossegue e agora dura ao todo 17 minutos. A entrevistadora informa com polidez o procedimento a ser seguido, inclusive quais são os direitos do entrevistado e avisa que a entrevista está sendo gravada. Após Souleymane ter apresentado sua documentação, a primeira pergunta é: “Por quais países você passou antes de chegar à França?” Segue-se o relato que, a partir de certo ponto, torna-se cada vez mais comovente. Embora seja verdadeiro em parte, quase tudo é forjado e contém pequenas hesitações, incongruências, pausas, respostas pouco convincentes, além de causar incompreensões crescentes até o momento em que a entrevistadora pergunta: “Quem foi que lhe escreveu esse relato?” Desmascarado, ela diz a Souleymane que ele não precisa se preocupar e que “o importante é o que disser a partir de agora. É isso que é importante. Não é tarde demais para mudar. Estou aqui para ouvi-lo. O que aconteceu com você? Qual é a sua história? Por que você foi embora da Guiné?” O que segue é o relato da vida de Souleymane Sangaré contado por ele mesmo.

No breve plano final, Souleymane sai meio aturdido da entrevista sem saber se será aprovado ou recusado, veste o capuz de lã e fecha o zíper do casaco. Ao espectador resta conjecturar sobre a decisão a ser tomada.

“Gosto muito do cinema não europeu”, disse Lojkine ao Le Monde. “Com A História de Souleymane, quis mostrar um homem numa cidade estrangeira hostil. Esticando a corda um pouco demais, será que podemos fazer um filme iraniano na França para mostrar o lado opressivo do sistema visto por aqueles que não são europeus?”

Para Sangaré, conforme disse ao The Guardian, “um dos objetivos do filme é perguntar: o que devemos fazer com as pessoas que passaram anos em território francês e não obtiveram asilo? São pessoas sem documentos, mas que trabalham todos os dias e contribuem para o bem do país… Quando você não tem os documentos você fica sempre assustado, sempre estressado. É impossível andar livremente pela rua ou perseguir seus sonhos.”

A História de Souleymane será exibido no CCBB do Rio de Janeiro nos dias 19 e 20 de dezembro, às 14h e 16h, respectivamente, e deverá ser lançado no circuito comercial em 2025.

 

Exibido também este ano no Festival de Cannes, na mostra Cannes Classics, O Roteiro da Minha Vida – François Truffaut, de David Teboul, foi o único outro filme exibido no Festival Varilux a que pude assistir. Baseado em pesquisa de arquivo valiosa, o documentário, embora interessante, é convencional. Vale por alguns trechos de entrevistas de Truffaut, como o que abre o filme:

“Em 1959, qual era sua principal qualidade?”

“Era mergulhar no desconhecido.”

“Você ainda tem essa qualidade?”

“Não, sou muito mais prudente, eu creio.”

“E por quê?”

“Porque nos tornamos temerosos, não podemos mais confiar no acaso. Nós aprendemos certas coisas e essas coisas que aprendemos tornam o trabalho mais difícil. Temos cada vez mais coisas a controlar. Quanto mais coisas temos a controlar, mais temos a sensação de não controlar o suficiente, o que cria, com certeza, uma inquietação suplementar e novas dúvidas.”

Truffaut em uma das imagens de O Roteiro da Minha Vida (Crédito: Divulgação)

 

Após ter sido exibido no Festival do Rio, em outubro, Os Sonhos de Pepe será lançado amanhã, 5 de dezembro, em cinemas. O frenético documentário de Pablo Trobo não está à altura do seu personagem principal – José “Pepe” Mujica, guerrilheiro tupamaro na década de 1960 e presidente da República do Uruguai de 2010 a 2015. O frenesi visual e sonoro do filme, além do uso excessivo de tomadas aéreas feitas com drone, mais prejudicam do que favorecem o travelogue de Trobo, que passa por Nova York e Tóquio, entre outras cidades. 

Discurso de Mujica transmitido em um prédio de Tóquio (Crédito: Divulgação)

 

Mesmo assim, o que Mujica tem a dizer é digno de atenção, como por exemplo suas palavras que acompanham imagens de ruínas na Síria, resultantes da guerra civil em andamento desde 2011: “No fundo do coração, desejamos ajudar o homem a sair da pré-história. Eu considero que enquanto houver guerra estaremos na pré-história. Enquanto o homem não sair da pré-história e eliminar a guerra como recurso quando a política fracassa, teremos uma longa marcha e desafios. E dizemos isso com conhecimento de causa: conhecemos a solidão da guerra.”

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