Robinson Barreirinhas, secretário da Receita Federal e homem da confiança de Fernando Haddad. Na reunião, ele disse ao diretor-presidente da Anvisa: “Tenho conversado bastante com o ministro. Eu avisei para ele que eu vinha aqui, e ele também está muito preocupado com isso." Foto: Mario Agra/Câmara dos Deputados
“Talvez a gente possa colaborar”
Áudio revela detalhes da reunião em que o chefe da Receita Federal tentou convencer a Anvisa sobre a legalização dos cigarros eletrônicos
O cigarro eletrônico está proibido no Brasil desde 2009, depois que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o considerou um produto altamente nocivo à saúde pública e que causa dependência em seus usuários. Desde então, numerosos estudos científicos e fatos médicos corroboram essa avaliação. A indústria tabagista, porém, continua a propalar as vantagens dos vaporizadores – ou vapes – como solução ao tabagismo e não tem medido esforços para convencer políticos e outras autoridades da necessidade de legalizar o produto.
Um dos focos desse lobby é o Ministério da Fazenda. No dia 3 de setembro passado, o secretário Especial da Receita Federal, Robinson Sakiyama Barreirinhas, que responde ao ministro Fernando Haddad, recebeu em seu gabinete três representantes da empresa Philip Morris, uma das gigantes da indústria do tabaco. Menos de duas horas depois, às 16h, conversou em seu gabinete com quatro representantes da British American Tobacco (BAT), outra empresa do ramo, que controla a antiga fabricante de cigarros brasileira Souza Cruz.
Terminada a conversa, naquela mesma tarde, às 17h, Barreirinhas atravessou o Eixo Monumental de Brasília a caminho de seu compromisso seguinte: uma reunião, que ele próprio solicitara, na sede da Anvisa. Levava consigo uma folha de papel com dados de apreensão de vapes e três membros de sua equipe. Foi recebido pelo diretor-presidente da agência, o contra-almirante Antônio Barra Torres, também acompanhado de três servidores.
Na conversa, o secretário da Receita Federal tentou convencer Barra Torres das vantagens de legalizar o cigarro eletrônico. O diálogo foi reconstituído em uma reportagem publicada na edição deste mês da piauí, que trata do lobby da indústria tabagista no Brasil. A revista, até então, havia obtido apenas a ata da reunião. Agora, por meio da Lei de Acesso à Informação, conseguiu também o áudio, cedido pela Anvisa, que fornece novos detalhes. A gravação demonstra a insistência de Barreirinhas e o desconforto de Barra Torres durante a conversa.
O secretário da Receita iniciou a reunião dizendo que seria objetivo e que prestaria contas à agência sobre ações relacionadas ao cigarro de tabaco. Fez um preâmbulo rápido e meio confuso sobre o lobby da indústria do tabaco no Congresso, tributação sigilosa, desincentivo ao consumo etc. Em seguida, finalmente chegou ao ponto que o levara até ali: entregou aos diretores da Anvisa os dados sobre cigarro eletrônico e disse que a Receita tem “grande preocupação” com a repressão ao contrabando do produto, cuja venda é proibida pela Anvisa desde 2009. “Nós temos certeza de que estamos enxugando gelo”, avaliou Barreirinhas.
O secretário disse que a proibição “fomenta” o crime organizado, sugerindo a legalização do produto como saída. “Sem querer entrar, evidentemente, na competência da Anvisa, [quero] mostrar nossa preocupação na manutenção da proibição do cigarro eletrônico aqui”, afirmou Barreirinhas, que, em dado momento do encontro, chegou a debater com o presidente da Anvisa questões técnicas sobre a decisão da agência. Diante da insistência do secretário, Barra Torres avisou que aquela reunião não era “o fórum para discutir informação técnica”.
Ao perceber que Barreirinhas persistia no assunto, o presidente da Anvisa manifestou um incômodo: segundo ele, a reunião havia sido solicitada pela Receita para tratar de cigarros, apenas. “O tema que veio para nós foi cigarro [de tabaco], não cigarro eletrônico”, disse Barra Torres. “Inclusive pessoas que poderiam estar aqui não estão porque cigarro é uma coisa e cigarro eletrônico é outra”. Em resposta, Barreirinhas disse ter pedido “especificamente” que o tema fosse cigarro eletrônico. O presidente da Anvisa, então, solicitou que seus assessores corrigissem o tema da reunião para dar mais transparência à agenda pública dos servidores presentes. “Isso [registrar reunião com um assunto e tratar de outro] dá problema até com a LAI [Lei de Acesso à Informação]”, explicou Barra Torres. “Dá a impressão que a gente está escondendo alguma coisa”.
Procurada, a assessoria de imprensa da Anvisa confirmou à piauí que a reunião foi solicitada pela Receita Federal para tratar de cigarros, e não cigarros eletrônicos. A Receita, por sua vez, ao ser questionada sobre esse ponto específico, não respondeu à reportagem.
Ouça o diálogo no vídeo abaixo:
Robinson Barreirinhas é um nome de confiança de Fernando Haddad. Fez carreira como procurador municipal de São Paulo e foi nomeado secretário de Negócios Jurídicos quando Haddad era prefeito. Técnicos da Receita Federal ouvidos pela piauí afirmam que, devido a essa relação de lealdade e confiança, o agora secretário busca qualquer brecha para entregar o aumento de receita que o ministro procura. Críticos mais ácidos de Barreirinhas se referem a ele como “o Ricardo Salles do Lula”, porque o secretário, dizem, está disposto a passar qualquer “boiada” em nome da arrecadação. Os cigarros eletrônicos estão nesse pacote.
Estimativas indicam que a arrecadação de impostos com a venda dos vapes, uma vez legalizados, poderia render 2,2 bilhões de reais por ano. Para um governo que sofre com dificuldades orçamentárias, seria um alívio e tanto. No diálogo que travou com o presidente da Anvisa, Barreirinhas disse: “Tenho conversado bastante com o ministro [Fernando Haddad]. Eu avisei para ele que eu vinha aqui, e ele também está muito preocupado com isso.”
A reunião deixou uma estranheza no ar. Além de ter sido pouco transparente quanto ao tema da reunião, o secretário da Receita Federal procurou a Anvisa para dizer que chefiava um órgão sem condições de cumprir um de seus deveres – isto é, conter o contrabando de vapes. Falava isso para uma agência que não lida nem com tributos, nem com contrabando. Antes de recorrer à Anvisa, Barreirinhas sequer procurou a Polícia Federal – que efetivamente atua no combate ao contrabando – para falar do assunto. (A última reunião que teve com algum representante da pf havia sido em outubro de 2023, segundo sua agenda pública.) O Ministério da Justiça, órgão ao qual a PF é subordinada, já se manifestou favoravelmente à manutenção da proibição do cigarro eletrônico – argumentando, diferentemente de Barreirinhas, que a legalização do produto não resolveria o problema do contrabando.
Ouvidos pela piauí, dois ex-secretários da Receita Federal e um ex-servidor da área de fiscalização de tabaco avaliaram que a atuação de Barreirinhas está fora do protocolo, já que não cabe ao chefe da Receita sugerir a legalização de um produto proibido por um órgão da saúde. Procurado, o Ministério da Fazenda afirmou que a Receita e o Ministério “jamais defenderam a legalização de cigarros eletrônicos”. A nota diz que “o secretário da Receita Federal alerta que é preciso uma intensa campanha de conscientização da população, com redução da aceitação social do cigarro eletrônico, para que os esforços de combate ao contrabando alcancem seus objetivos. Foi esse o mote da reunião com a Anvisa, diálogo que infelizmente ainda não foi adiante”. No áudio da reunião, contudo, nem o secretário da Receita nem o presidente da Anvisa falam em campanha de conscientização sobre vapes.
Antes de enviar a nota, a assessoria de imprensa do Ministério da Fazenda entrou em contato com a piauí por telefone, explicando que as falas de Barreirinhas sobre cigarro eletrônico na reunião haviam sido “descontextualizadas”. A essa altura, a piauí dispunha somente da ata da reunião; o acesso à gravação em áudio foi concedido pela Anvisa no dia 29 de novembro. A piauí voltou a procurar o Ministério da Fazenda desde então, mas não obteve mais resposta.
O conteúdo das duas reuniões que as empresas tabagistas tiveram com Barreirinhas naquele dia continua um mistério, embora seja previsível. A indústria do cigarro está empenhada em legalizar a comercialização de vapes no Brasil – e faz lobby não apenas no governo, mas também no Congresso, onde tem conquistado mais espaço e tenta promover um projeto de lei que dribla a proibição da Anvisa. Assinantes da piauí podem ler a reportagem na íntegra.
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