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    “Tem que ser muito materialista para ouvir a música de Bach e não achar que é uma manifestação de algo superior", diz o maestro Luís Otávio Santos Crédito: Fine Art Images/Heritage Images via Getty Images

questões natalinas

Anjos, tímpanos e trompetes

O percurso da música sacra luterana, que nasceu na Reforma Protestante, foi eternizada por Bach e sobrevive no Natal brasileiro

Kalil de Oliveira Rodrigues, de Florianópolis | 24 dez 2024_08h14
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Numa manhã de domingo recente, o Centro de Florianópolis estava vazio como de praxe. Ouvia-se apenas os passarinhos, enquanto raros pedestres caminhavam em silêncio. Mas uma pequena aglomeração se fazia notar na Rua Nereu Ramos, número 185. O grupo, formado por pessoas de diferentes idades, trocava cumprimentos em frente à Igreja Luterana de Florianópolis. Do lado de dentro, meninas de vestido, meia-calça e laço no cabelo corriam sobre as tábuas de madeira da nave, enquanto os adultos conversavam amenidades.

O pastor – um homem alto, de cabelos brancos e gravata idem – saudou os visitantes, todos fiéis protestantes. “Como vai a saúde?”, perguntou a um idoso de camisa bordô. “Vai bem”, ele respondeu. “Sabe como é: uma coisinha aqui, outra ali.” O religioso sorriu, tocou seu ombro e seguiu em direção ao púlpito. Ao chegar lá, olhou para o mezanino, fez um sinal de positivo com a mão e, de repente, respondendo ao seu comando, sinos irromperam a calmaria do Centro da cidade. Em seguida, oito crianças atravessaram a porta de entrada tocando flautas e se sentaram diante da cruz e dos vitrais. Era o começo do culto.

“Bom dia a todos. Bom dia, também, aos instrumentistas”, disse o pastor, mirando a banda mirim. A certa altura, disse que “a presença de Deus não é material, nem palpável”. O mesmo poderia ser dito da música, que cumpre papel importante naquela igreja. O sermão, no domingo, foi interrompido a cada poucos minutos para dar lugar a uma canção, sempre conduzida pela orquestra de crianças e seguida pelos fiéis, que cantavam as letras apresentadas num projetor. Um barítono se destacou entre eles, fazendo vibratos. Música sacra é indispensável, disse o pastor. “Quando cantamos, Ele está presente.”

O culto durou uma hora. Ao fim, Guda, uma senhora que tocava flauta ao lado das crianças, se levantou e, antes de iniciar a última canção (Noite feliz), anunciou que aquela era sua derradeira participação como responsável pela educação musical da igreja. Parecia emocionada, e fez um apelo para que a missão fosse levada adiante por quem a sucedesse no cargo. “Devemos nos juntar para tocar e acentuar a Palavra. A música fica no nosso coração”, falou, com sotaque alemão do interior de Santa Catarina. Os fiéis aplaudiram.

 

Os luteranos, numerosos na Alemanha e na Escandinávia, são uma minoria entre os evangélicos brasileiros – no Censo de 2010 do IBGE, somavam 1 milhão de fiéis, o equivalente a 0,5% da população de então (é possível que o número seja subnotificado, já que parte expressiva dos evangélicos na pesquisa não especificou sua denominação). Eles estão mais presentes nas regiões que receberam grande fluxo de imigrantes alemães, como o Sul do Brasil. Desde a Reforma Protestante, quando romperam com o catolicismo e se tornaram uma denominação própria, os luteranos transformaram o papel da música na liturgia cristã. Uma tradição que, no Brasil, só costuma vir à tona no Natal.

Há uma diferença entre música sacra e música sacra litúrgica. Esta serve ao ritual religioso, enquanto aquela serve à fruição estética, ainda que seu caráter seja espiritual. Muitos compositores escreveram obras sobre o cristianismo sem terem envolvimento com a religião. Héctor Berlioz compôs, em francês, a Infância de Cristo; Benjamin Britten, em inglês e latim, A Ceremony of Carols. Ambos se consideravam agnósticos. Os luteranos, embora contem com um rico repertório de composições sacras, se destacam pela musicalidade litúrgica.

Martinho Lutero (1483-1546), artífice da reforma, considerava que a música tinha de desempenhar papel educativo nas igrejas. Defender isso não era exatamente uma novidade: durante muito tempo na Idade Média, o canto gregoriano fez parte das celebrações religiosas, que aqui e ali eram pontuadas por intervenções musicais. Os cantos, no entanto, eram todos em latim, assim como as missas e a própria Bíblia. Tinham caráter ornamental, mais do que doutrinário. Lutero propôs democratizar o esquema, estimulando e inclusive compondo músicas em alemão, mais acessíveis à plebe que não sabia latim.

“Tornar o ofício um espetáculo é uma forma de garantir a popularidade”, diz Luís Otávio Santos, maestro especializado em música barroca. Segundo ele, o repertório musical do catolicismo, com o qual Lutero pretendia romper, era festivo e barulhento em demasia. As composições eram grandiosas, épicas. “Chegou a um ponto em que não se distinguia uma missa de uma ópera.” Lutero achava essas composições vazias, porque ninguém as compreendia.

Com o passar do tempo, o luteranismo – que surgiu na atual Alemanha, em 1521, ano em que Lutero foi excomungado da Igreja Católica – adquiriu uma liturgia musical própria. Os diretores musicais das igrejas (chamados de kantor, palavra em alemão derivada do latim cantare) passaram a compor hinos de caráter pedagógico – quase sempre marcados por um tom mais sóbrio e sereno do que os hinos católicos. A música virou para os luteranos um veículo da fé; um “sermão em movimento”, como diz a professora de música da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Yara Caznok. (Os católicos, é claro, acabaram embarcando na ideia, mas só o fizeram depois do Concílio Vaticano II, nos anos 1960. Desde então, o Brasil é pródigo em lançar padres nas paradas musicais, vide as carreiras bem-sucedidas de Fábio de Mello e Marcelo Rossi.)

O kantor, naqueles tempos, era uma figura de destaque na vida pública. Os mais renomados eram capazes de trazer turistas e prestígio cultural às cidades onde regiam, o que, portanto, envolvia interesses econômicos. Em Leipzig, maior cidade da Saxônia, a escolha do kantor cabia ao Conselho Municipal, que em 1723, elegeu para a função um compositor chamado Johann Sebastian Bach.

Até sua morte, em 1750, Bach foi o diretor musical das igrejas de São Tomás, São Nicolau, São Pedro e Nova Igreja, todas localizadas em Leipzig. Além dos hinos luteranos já consagrados àquela altura, ele compôs novas canções com fins litúrgicos. Algumas delas foram consagradas posteriormente pela crítica musical, como A paixão segundo São Mateus, A paixão segundo São João e Oratório de Natal. Na época, não foram apreciadas como obras de arte. A música cumpria uma função prática em solenidades na igreja e na Corte. Só no período clássico, entre os séculos XVIII e XIX, os músicos passaram a pensar na posteridade, escrevendo partituras com orientações exatas sobre a execução e a intensidade com que cada instrumento deveria ser tocado em cada trecho. Beethoven (1770-1827), autor de aproximadamente duzentas partituras, é exemplo disso.

Foi nessa época que Felix Mendelssohn, um jovem pianista luterano, conheceu a obra de Bach por intermédio de seu professor Carl Zelter. Ao travar conhecimento de A Paixão segundo São Mateus, Mendelssohn se entusiasmou e, em 1829, regeu uma orquestra que tocou essa composição na sala de concertos Sing-Akademia zu Berlin – uma instituição laica sediada em Berlim, então capital da Prússia. Ao fazê-lo, mudou o lugar de Bach na história da música.

 

Em dezembros, proliferam composições sacras sobre o Natal. Nos dias 13 e 14, o maestro Luís Otávio Santos conduziu a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e o Coral Paulistano, que interpretaram o Oratório de Natal de Bach no Theatro Municipal. A peça é um clássico que consiste em seis cantatas, escritas para serem tocadas nos domingos que compõem o Tempo de Natal (período celebrado pelas religiões cristãs entre 25 de dezembro e 6 de janeiro). Seu caráter é notadamente pedagógico – o intuito original era que, depois de ouvi-la, o fiel saísse da igreja compreendendo melhor como Jesus nasceu.

O instrumental transparece a intenção: no início da primeira cantata, ouvem-se tímpanos e, pouco depois, trompetes. Yara Caznok, professora da Unesp, explica que o trecho remete à glória, porque esses dois instrumentos eram usados em celebrações marciais na Idade Média. Os trompetes, além disso, são associados aos anjos (que, na verdade, tocam trombetas, inclusive as do Apocalipse). Em linhas gerais, o recado da música, transmitido num agradável tom maior, é que a chegada do menino Jesus é motivo de celebração.

“Tem que ser muito materialista para ouvir a música de Bach e não achar que é uma manifestação de algo superior. As galáxias se movem com Bach, há uma repetição de toda a harmonia do universo. Minha religião é Bach”, derrete-se Santos. Ele diz ter ficado com a impressão de que no concerto do dia 13, no Municipal, havia gente de todos credos (ele próprio não tem religião definida). “Podemos ouvir, executar e amar as obras luteranas de Bach sem termos uma ligação religiosa ou cultural com elas. Acima de tudo, a música é belíssima.”

O Coral Paulistano também fez um concerto de Natal próprio, no dia 18. Desfilou peças de todo tipo, entre elas o coral renascentista O Magnum Mysterium, de Giovanni Gabrieli. “A música coral, até os dias de hoje, bebe na fonte da música sacra e litúrgica”, diz a maestrina Maíra Ferreira, que conduziu o grupo ao lado de Isabela Siscari. “Mas, embora a gente beba dessa fonte, a música sai das igrejas e vai aos palcos com propósito diferente.” Prova disso é que o Coral Paulistano chegou a interpretá-la em agosto deste ano, embora se trate de uma peça natalina. “Temos autorização para transformá-la em música de performance”, justifica Ferreira. “A música de Bach ou de Gabrieli é tão rica e artisticamente bem feita que ela transcende. Qualquer pessoa vai apreciar um Oratório de Natal de Bach, sendo católico, umbandista, luterano ou ateu.”

 

Naquela manhã de culto em Florianópolis, não se ouviu Bach. Poucas igrejas no Brasil dispõem de orquestras e corais capazes de interpretar obras clássicas com o rigor técnico exigido pelas partituras. “Por causa dessas dificuldades de execução, a música de Bach foi transferida para um meio mais acadêmico”, explica Abner Elpino Campos, que já foi kantor e atualmente é coordenador de culto da Primeira Igreja Evangélica Luterana de Toronto, fundada em 1851.

As igrejas eram mais guarnecidas antigamente porque desempenhavam papel mais central na sociedade. Esse protagonismo se diluiu com o passar dos séculos. Era comum, nas primeiras décadas do protestantismo, que um culto se estendesse por quatro horas ou mais. Hoje, quando passa de uma hora, o fiel começa a ficar impaciente, diz Campos. Ele é mestre em música sacra pela Universidade de Toronto e hoje faz um trabalho de curadoria, selecionando as peças que serão executadas em cada culto. “A música apresentada em um concerto tem significado intrínseco. As pessoas que escutam Bach e não têm vivência religiosa terão uma transcendência espiritual. Continua tendo teologia ali. Mas, dentro de uma igreja luterana, ela tem significado contextualizado”, diz. “Lógico que, na sociedade brasileira, é muito raro ter a execução de uma cantata em um culto. A nossa cultura foi se transformando com o tempo.”

Se a intenção de Lutero era que a música fosse doutrinária, era natural que forma e letra se adaptassem às culturas onde aportou o luteranismo. O alemão, predominante entre os primeiros protestantes, é incompreensível para a maior parte dos brasileiros. Por isso os hinos costumam ser cantados em português. 

Algumas composições incorporaram ritmos e instrumentos típicos de gêneros brasileiros. Campos compôs um hino em forma de marchinha; Paulo Ricardo Klaudat Filho, músico luterano, fez um reggae. As duas músicas foram tentativas da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Ielb) de abraçar elementos populares. Campos explica que a Ielb é uma instituição conservadora e, por isso, há certa recusa desses hinos dentro da igreja, embora haja incentivo no âmbito nacional. “Estamos começando com essa experimentação aos poucos.”

A Primeira Igreja Evangélica Luterana de Toronto abriga, segundo Abner Campos, fiéis de mais de duzentas nacionalidades. Não se trata de uma excentricidade no Canadá, país onde, no censo nacional de 2016, os imigrantes formavam 21,9% da população. Campos, por isso, busca incluir hinos em português, espanhol, inglês e alemão. Para acolher um fiel da Tanzânia, adicionou percussões africanas a algumas composições. “Temos, dentro de nós, uma herança rítmica do nosso passado. É importante ter elementos da cultura ao nosso redor porque eles trazem uma noção de pertencimento e identidade.”

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