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    Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, é acusado de assédio moral por uma ex-diretora da entidade Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

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“Chamamos aquilo de Coreia do Norte”

Os relatos de assédio e vigilância na sede da CBF – incluindo uma câmera escondida no restaurante frequentado por funcionários

Allan de Abreu, do Rio de Janeiro | 08 abr 2025_16h34
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A arquiteta Luísa Xavier da Silveira Rosa ficou entusiasmada quando recebeu, em 2020, um convite da CBF para cuidar da construção de catorze centros de treinamento no Brasil. Especializada em arenas esportivas, Rosa havia participado da equipe que projetara os estádios da Copa do Mundo de 2014. Aceitou o desafio e, com parte da verba de 100 milhões de dólares enviada pela Fifa, comprou os terrenos e iniciou as obras.

Pouco tempo depois, Rosa recebeu um convite da Fifa para trabalhar na Copa do Catar. Mas o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, não aceitou seu pedido de demissão. Nomeou-a como diretora de patrimônio da CBF, com salário de 30 mil reais. (O diretor anterior, segundo ela, recebia 92 mil.) Além das obras dos centros de treinamento, a arquiteta passava a ser responsável também pela sede da CBF e pela Granja Comary, em Teresópolis, onde a Seleção treina. Rosa se tornou, naquele momento, a primeira mulher a assumir uma diretoria da CBF. “É muito importante para todos verem que não interessa o sexo, o que importa é o trabalho que você executa”, disse em entrevista, na época.

Foi o começo do seu calvário. Da porta para dentro, a CBF se revelou um ambiente hostil às mulheres. Rosa testemunhou a contratação de prostitutas para atender convidados em eventos da confederação e passou a ouvir “todo tipo de comentário misógino”. Em mensagens de WhatsApp, a arquiteta recebia elogios insinuantes de Arnoldo de Oliveira Nazareth Filho, ligado à Federação Amazonense de Futebol e uma das tantas eminências pardas da CBF, e de Rodrigo Paiva, então diretor de comunicação da entidade. Além disso, ela vivia recebendo “convites indesejados” para almoços e jantares.

As descrições do parágrafo acima constam da ação trabalhista que Rosa moveu contra a CBF, de onde saiu em julho de 2023. Em nota à imprensa divulgada no fim do ano passado, Paiva rebateu a acusação. “Minha trajetória profissional sempre foi marcada por incentivos à desconstrução da cultura do assédio presente no país, a fim de que as mulheres possam desfrutar de um ambiente de trabalho digno, igualitário e livre de discriminações.” Nazareth Filho não se manifestou publicamente. A piauí não conseguiu localizá-lo.

A advogada Cyntia Sussekind Rocha, que assina a ação trabalhista de Rosa, diz que sua cliente não demorou a “perceber que a diretoria que lhe foi dada, em verdade, era apenas uma grande jogada de marketing, pois passou a sofrer várias retaliações, esvaziamento de atribuições e todo tipo de humilhação”. O primeiro esvaziamento aconteceu quando a arquiteta começou a se inteirar dos contratos de manutenção da Granja Comary. Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, logo decidiu que só Nazareth Filho tomaria conta do assunto. Em seguida, o cartola parou de liberar os pagamentos para as obras sob supervisão de Rosa e começou a demitir funcionários sem comunicá-la. (Até hoje, nenhum dos catorze centros de treinamento foi concluído.)

No início de 2023, ao contratar uma vistoria no sistema anti-incêndio do prédio da CBF, a arquiteta fez uma descoberta alarmante: achou uma câmera com captação de áudio escondida sob um detector de fumaça no restaurante do edifício. Ao investigar o caso, Rosa soube que as imagens e áudios eram armazenados em uma central situada em uma saleta contígua ao gabinete de Rodrigues, à qual somente ele tinha acesso. A arquiteta também descobriu uma conversa de WhatsApp entre Ricardo Lima, cunhado de Rodrigues e atual presidente da Federação Bahiana de Futebol, e um funcionário do setor de tecnologia da informação da CBF. Na conversa, o funcionário pergunta:

– Câmeras escondidas no restaurante. Envia para o setor de compras? Boa tarde!

– Boa tarde! Perfeito. Envia, sim – respondeu Ricardo Lima.

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A notícia de que os funcionários estavam sendo espionados caiu como uma bomba. Diretores passaram a se reunir com tevês em volume alto com receio de estarem sendo ouvidos. Um funcionário contratado na época (que continua no emprego até hoje) disse à piauí que, ao receber as boas-vindas, um dos novos colegas de trabalho lhe entregou um bilhete. Dizia: “Cuidado com o que você fala, tem grampo por toda a parte aqui.” Desde então, os funcionários evitam almoçar no restaurante da CBF. “Chamamos aquilo de Coreia do Norte”, resume um funcionário, que falou à piauí sob anonimato para evitar represálias funcionais. Procurado, Ricardo Lima não se manifestou.

No dia 24 de maio, já em tratamento psicológico e com sintoma da síndrome de burnout, Rosa chegou ao limite e denunciou o que se passava à Comissão de Ética da CBF. Em 4 de julho, foi demitida, sob a acusação de ter vazado para a imprensa o conteúdo da denúncia que fez à Comissão de Ética. Na ação judicial contra a CBF, Rosa negou qualquer vazamento, acusou Rodrigo Paiva e Nazareth Filho de assédio sexual, e Rodrigues, de assédio moral. Em agosto passado, a Justiça condenou a entidade a indenizá-la em 60 mil reais. A CBF está recorrendo. Em retaliação, Rodrigues fez uma queixa-crime contra a arquiteta e a advogada, acusando-as de difamá-lo. As duas foram absolvidas. Gamil Föppel, o diretor jurídico, também acusou Rosa de difamação. O processo está em curso.

O caso de Rosa teve impacto no ambiente de trabalho da CBF, que emprega cerca de quatrocentos funcionários, dos quais, estima-se, em torno de 50% são mulheres. Uma pesquisa interna, realizada no fim de 2023, apontou que mais da metade dos funcionários entende que “o ambiente não é seguro e livre, existindo medo por parte das pessoas de falar mais sobre situações, inclusive medo de retaliação ou descrença no sistema” e que “não faria reclamação ou denúncia sobre essas situações nos canais atualmente existentes na entidade”.

Assinantes da piauí podem ler a íntegra da reportagem neste link.