CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2025
Filme de tribunal
O sucesso dos interrogatórios do golpe na TV Justiça
Pedro Tavares | Edição 226, Julho 2025
Câmeras ajustadas, check. Microfones testados, check. Mesas posicionadas, check. Iluminação, check. Ao final do dia 6 de junho, sexta-feira, o set já estava pronto para receber os atores, que só entrariam em cena dali a três dias. O set em questão era a sala de sessões da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no Anexo II do STF, em Brasília. Os atores eram os oito réus do chamado Núcleo 1 da ação penal que trata de uma tentativa de golpe de Estado em dezembro de 2022. Todos viriam acompanhados de coadjuvantes: os advogados. Ministros do STF e procuradores também desempenhariam papéis cruciais no enredo.
A TV Justiça caprichou nos preparativos. Seus profissionais sabiam do interesse que imprensa e público teriam pelos expedientes dos dias 9 e 10 de junho, estrelados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, por civis de seu governo e por membros das Forças Armadas. Era uma ocasião inédita na história do STF: nunca antes os réus de uma ação na Corte haviam sido ouvidos com transmissão televisiva ao vivo.
Às 14 horas do dia 9, segunda-feira, o ministro Alexandre de Moraes, relator da Ação Penal 2668, deu início à sessão com o depoimento do tenente-coronel Mauro Cid. Nas primeiras horas de interrogatório, Denilson Morales, coordenador de Gestão da TV e Rádio Justiça, estava a postos na cabine técnica, conhecida como switcher, de onde comandava todas as câmeras, de forma remota. Por volta das 16 horas, ainda com o depoimento de Cid em andamento, Morales orquestrou uma tomada digna de um bom filme de tribunal.
A certa altura, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, perguntou se Cid sabia de uma suposta ordem de Bolsonaro para que as Forças Armadas permitissem a continuidade dos acampamentos na porta dos quartéis. A câmera, que focava Cid e seu advogado no centro do plano, mudou sutilmente o ângulo e passou a enquadrar também Bolsonaro, no canto direito da tela.
Morales jura que não colocou o ex-presidente em cena de forma intencional. Teria sido só um ajuste para corrigir o enquadramento de Cid, que havia se virado na direção do procurador. Até então de frente para a câmera, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro acabaria ficando de perfil – o que resultaria na tela no que Morales chama de “plano egípcio”, para ele algo inaceitável em transmissões televisivas. “É terrível”, diz. A câmera foi, por isso, reposicionada para continuar enquadrando Cid de frente – o que, de quebra, deu ao espectador a oportunidade de conferir a expressão de Bolsonaro.
Dos 170 funcionários e prestadores de serviços da TV Justiça, mais de sessenta estavam mobilizados para a cobertura dos dois dias de interrogatório. Morales posicionou duas câmeras sobre tripés, em frente à mesa dos réus, para garantir que eles permanecessem sempre em foco. “Isso nunca havia ocorrido antes”, diz o coordenador da TV Justiça. Nas deliberações da Primeira Turma, as câmeras costumam estar voltadas sobretudo para os ministros.
Todo o equipamento empregado na transmissão já pertencia à TV Justiça – não foram feitas novas aquisições para o interrogatório. Além das câmeras que cobriam exclusivamente os réus, havia mais seis em operação, posicionadas nas laterais e no teto. O único cinegrafista presente na sala era o responsável pela chamada “câmera anjo”, que funciona como um sistema de segurança, caso as demais fiquem inoperantes. Ela não precisou ser acionada.
Esse não foi o primeiro momento histórico coberto pela TV Justiça. Em 2012, o julgamento do escândalo do mensalão também foi transmitido ao vivo. Mas, por determinação do então ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, a fase dos interrogatórios dos réus foi conduzida a portas fechadas, nos gabinetes dos ministros, sem câmeras. Agora, Alexandre de Moraes determinou que também essa etapa do processo fosse apresentada pela emissora. Seu receio era de que, caso os interrogatórios não fossem transmitidos, a transparência da ação penal viesse a ser colocada em dúvida.
Não são muitos os países cujas cortes supremas contam com uma emissora exclusiva. No Reino Unido, algumas sessões da Corte são transmitidas ao vivo, sempre em parceria com outras emissoras ou por streaming no Youtube – o Judiciário britânico não tem um canal estatal próprio. Nos Estados Unidos, nenhuma sessão da Suprema Corte é televisionada, mas algumas gravações em áudio são disponibilizadas depois do encerramento. No México, existe desde 2005 o Canal Judicial, atual JusticiaTV.
A TV Justiça nasceu em 2002. A lei que a criou foi sancionada em 17 de maio pelo então presidente do STF, Marco Aurélio Mello. Ele estava ocupando interinamente a Presidência da República, durante uma viagem ao exterior de Fernando Henrique Cardoso e de todos os outros nomes da linha sucessória (o vice-presidente e os presidentes do Senado e da Câmara). A nova emissora não era um projeto consensual entre os ministros da época: muitos temiam a exposição pública das discussões mais acaloradas da Corte.
Denilson Morales fez parte da equipe que inaugurou o novo canal. Em 2011, ele deixou a direção da TV Justiça para trabalhar em outras emissoras estatais. Foi chamado de volta em 2023, quando Luís Roberto Barroso assumiu a presidência do STF. Uma das metas de Barroso era ampliar a audiência da TV Justiça, que em 2022 teve os piores índices entre emissoras abertas e fechadas.
Como coordenador de gestão, Morales busca manter na emissora uma linguagem mais didática, evitando o “juridiquês”. Entre as realizações de que se orgulha, está o lançamento, em agosto do ano passado, do aplicativo TV Justiça +, que traz os programas da emissora separados em diferentes playlists. “No aplicativo tem todo o acervo de sessões plenárias desde 2008”, diz Morales.
A TV Justiça e a Rádio Justiça (esta última lançada em 2004) custam ao Judiciário cerca de 50 milhões ao ano. “É a mais comedida das tevês públicas federais”, afirma Morales, sorrindo. Esse orçamento cobre também o Ponto Jus, uma espécie de subcanal da TV Justiça que desde 2010 divulga conteúdo educativo sobre questões legais. Procurado por quem faz concurso público para cargos no Judiciário, seus programas tornaram-se “campeões de audiência”, na avaliação de Morales.
O saldo de audiência dos interrogatórios de junho passado foi positivo para a TV Justiça. Por volta de 15h30 do dia 10, durante o depoimento de Jair Bolsonaro, mais de 60 mil pessoas acompanhavam a transmissão ao vivo no YouTube. A audiência de uma sessão plenária comum não costuma passar de 2 mil pessoas.
Os dois dias de transmissão tiveram momentos engraçados, que correram as redes sociais na forma de “cortes”. No primeiro dia, Matheus Milanez, advogado do general Augusto Heleno, solicitou a Alexandre de Moraes que a sessão do dia seguinte, marcada para as 9 horas, começasse mais tarde, pois estava com fome e queria ter tempo para jantar e descansar. O pedido foi negado. No dia seguinte, Moraes perguntou ao advogado se ele estava bem alimentado.
Nada supera o diálogo do segundo dia entre Bolsonaro e o ministro mais detestado pelos seguidores do ex-presidente. “Posso fazer uma brincadeira?”, perguntou Bolsonaro. E em seguida convidou Moraes para ser seu vice nas eleições presidenciais do ano que vem. “Eu declino”, respondeu o ministro. Resta ver se o bom humor se manterá no restante do julgamento.
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